Na minha rua havia um gato. Um gato preto. Não tinha riscas, nem manchas, só uns olhos grandes de esmeralda. E era preto. Só preto. De tão negro que era, confundia-se com a noite, pareciam dois olhos muito esverdeados a flutuar ao luar minguante. Passava despercebido por entre os outros gatos pretos da minha rua, mas naquele gato, havia algo diferente. Não sei se era por ser o mais negro ou o com os olhos mais brilhantes, mas distinguia-se aos meus...
A noite na minha rua é muito escura, e é fácil para os gatos pretos se camuflarem no breu da noite. A minha rua é pouco movimentada, principalmente depois do pôr do sol. Não há muitos carros a circular depois do dia acabar. Mas na minha rua, os gatos tendem a desaparecer quando chocam com as luzes brilhantes dos carros dos condutores desprevenidos...
Na minha rua havia um gato. E esse gato foi atropelado mesmo à frente da minha casa. Um acidente deveras trágico. Mesmo assim, um tempo depois, levantou-se e desapareceu na noite, ainda a coxear. Perdeu uma das suas sete vidas. Isso pôs-me a pensar.
É um mito urbano, um gato ter sete vidas. Talvez por realmente serem uma espécie de ser celestial, como muitos acreditam ser, talvez por serem tão inconsequentes que precisam de mais do que uma só vida. Mas se alguém ou algo criou o gato e depois a nós, porque é que a ele deu sete vidas e a nós só nos deu uma?
Era outra vez de noite na minha rua. Tinham passado alguns dias desde o acidente, e o gato preto continuava por lá a deambular com os outros gatos pretos. Mas esta noite, na minha rua, havia um grupo de miúdos a passar, e encontraram o gato no beco do lado de minha casa. Começaram a tentar agarrá-lo, e ele arranhou-os, em defesa. Os miúdos muniram-se então de pedras, grandes e pequenas, redondas e pontiagudas. Rodearam o gato, e o pior aconteceu. Quando se foram embora, o animal não se mexia. Mesmo assim, um tempo depois, levantou-se e correu para os arbustos da casa vizinha. Tinha perdido outra das suas vidas.
Não sabia quantas ainda lhe restavam, mas sei que esta lhe tinha sido tirada injustamente. Não há quem possa ter o papel de juiz na vida. Decidir quem vive e quem perece. Não é um direito, muito menos um dever que possa ou deva ser simplesmente dado ou ganho. Não é certo, tão pouco justo.
Havia um gato na minha rua e agora já não há. Encontrei-o no dia em que não se voltou a levantar, depois de se ter abrigado, num dia de inverno, debaixo da carrinha dos Correios, que ainda tinha o motor quente. Afinal, também os gatos morrem. Será que ele estava convencido que era imortal? Depois de tantos acidentes e outros não tão acidentes, acreditava mesmo que o mundo se regia com ele no meio? Era inconsequente? Egocêntrico? Ou tinha apenas sido iludido? Tinham-lhe mentido? Contaram-lhe as Histórias nas quais foi induzido e persuadido a acreditar. Viveu por sete vezes as grandezas, mas no fim, acabou enganado. Conheceu-as a todas, até à última (de que agora os outros gatos têm conhecimento), sem saber se ou qual viria a ser aquela terminante.
O mundo é um lugar tão feio, tão triste, em que todos somos todos, mas nós não somos ninguém. Ninguém me perguntou o nome, nem eu perguntei o vosso, mesmo assim, compeliram-se a ouvir a história deste Gato Preto que Havia na Minha Rua, que pode ou não ser verdadeira, que pode ou não ter alguma vez existido. Ninguém me perguntou o nome do gato ou o dos miúdos que lhe atiraram pedras, porque isso não é importante, mas sabem que o gato foi enganado em vida, sabem que os miúdos são maus e também sabem que eu fiquei do lado, o cobarde a assistir da janela, enquanto o gato sofria nas trevosas mãos do mundo. Porque ninguém é julgado pelo nome, mas pelas ações. E o mundo é um teatro, uma tragédia, em que temos os atores e os espectadores cujos nomes não interessam, apenas os papéis em cena. E o mundo é feio, triste, porque ninguém sabe como lutar por ele e defender o que o "nós" poderia vir a ser.
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CONCEITOS
Short Story"Conceitos" é uma coleção de contos que explora a complexidade da vida humana através de histórias interligadas sobre amor, perda, esperança e transformação. Desde a busca de Elena pela Canção da Lua, que realiza desejos a um alto custo, até à jorna...