1ª Parte - Capítulo 1

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1864

Uma semana depois de sua chegada ao Rio de Janeiro, Maria Luísa se preparava para seguir até a Santa Casa da Misericórdia, localizada no Largo da Misericórdia. Em sua bagagem, trouxera o conhecimento técnico necessário para a prática da enfermagem, ao concluir o curso na Escola de Treinamento Nightingale e Lar para Enfermeiras do Hospital Saint Thomas, em Londres.

A jovem deixou escapar um suspiro ao contemplar a paisagem pela janela da carruagem. Do lado de fora, uma chuva fina caía e ela ouviu a batida suave dos pingos d'água contra o vidro da janela. Olhou diretamente para o seu pai e notou que sua atenção estava voltada para o jornal, acompanhando as últimas notícias sobre a política e a economia local. Olhou para a janela novamente, constatando que a chuva havia parado e que, além do vidro, o céu estava parcialmente coberto. A jovem estava perdida em pensamentos, quando o marquês levantou a cabeça e notou que ela esfregava as mãos uma na outra, aparentando um crescente nervosismo.

― Está ansiosa, não é mesmo? ― indagou, perscrutando-a com evidente curiosidade.

― Eu não consegui dormir direito na noite passada, meu pai ― respondeu, deixando escapar um suspiro cansado. ― O fato é que eu não sei se as Irmãs de Caridade e os demais enfermeiros serão receptivos às novas oportunidades de aprendizagem ― acrescentou, com voz insegura, ao baixar os olhos.

Alisou o avental preso à saia do vestido de um branco imaculado e impecavelmente limpo, de mangas compridas e colarinho engomado. Embora não existisse um uniforme padrão, fizera questão de utilizar uma touca de babados, amarrada sob o queixo para manter os cabelos presos e a cabeça parcialmente coberta.

― É claro que a sua presença irá causar certa estranheza inicial, mas acredito que em pouco tempo, você será bem-quista, e todos eles darão a devida importância às aulas que ministrará nas dependências da Santa Casa, minha filha ― ponderou, passando a mão em sua longa barba branca.

O marquês era um homem firme, e sua aparência garantia que tivesse presença. O rosto dele era anguloso, marcado por linhas na testa que revelavam anos de dedicação aos meandros da política e dos negócios do café. Tinha o cabelo grisalho curto e liso, mas branco perto das têmporas.

O pai passava uma imagem de solidez e imponência, mas mesmo com suas palavras carregadas de convicção e firmeza, Maria Luísa ainda não se sentia confiante o suficiente para dissipar seus temores.

Na escola de enfermagem, todas as alunas eram submetidas a uma disciplina muito rígida, mas apropriada ao trabalho. Havia a distinção das futuras enfermeiras de acordo com a classe social. As de classe social mais elevada, chamadas de Lady Nurses, eram preparadas para exercerem atividades de supervisão, direção e organização do trabalho em geral. As mulheres pertencentes à classe social inferior, eram mais preparadas para o trabalho manual, embora todas tivessem adquirido a habilidade do cuidado direto, adotando sempre uma postura de obediência e submissão aos profissionais de saúde a que estariam subordinadas.

― Sei das dificuldades que enfrentarei, mas estou muito aflita ― retrucou, em tom de incerteza.

― E mesmo sabendo que enfrentará toda sorte de adversidades, você ainda está convicta de que tem vocação para a prática da enfermagem? ― o pai questionou, perscrutando-a com evidente curiosidade. ― Ainda há tempo de desistir dessa sandice ― voltou a falar de forma ríspida. ― Isso não é condizente com a nossa classe social...

Maria Luísa sabia que o que o pai mais desejava era que ela casasse e tivesse uma vida inerente à classe a que pertencia, mas também sabia que o seu papel na sociedade estava além de servir apenas como esposa. Tentou conter suas emoções, mas foi impossível. As lágrimas correram silenciosamente por seu rosto ao interromper a fala do pai.

A HerdeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora