Capítulo 2

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LUCAS | CAPÍTULO 2- Sobre a parte boa de ser um fantasma

Tearing in my heart when the world falls apart

and it's almost too hard

Tarry in my soul and you help make me whole

when it's all said and done

— Sunny Day Real Estate "Tearing In My Heart"

Lucas estava confuso, perdido; e precisava garantir que não demonstraria nada daquilo para a garota do IML.

Ser um fantasma realmente tinha suas vantagens: podia atravessar paredes, abrir fechaduras, movimentar objetos... se tudo desse errado, se candidataria a uma vaga em casa mal assombrada.

Podia ouvir a garota gritar enquanto desligava o alarme. Por quanto tempo o guarda permaneceria adormecido com aquele escândalo?

Atravessou a parede, chegando em uma sala ampla e fria. Uma das paredes tinha gavetas de metal de cima a baixo. Acendeu as luzes e olhou em volta.

Estar ali o fazia pensar em todos os encontros que tivera com a morte. A mãe. A esposa do irmão. O ex-namorado. Desgraça o seguia por onde andava. Um necrotério seria um bom lugar para assombrar.

A garota se aquietou. O local cheirava a ferro e estava impecável. Abriu as portas enfileiradas pela parede, tentando adivinhar onde ela jazia. Flávia, a ceifadora que lhe deu a informação, disse que os funcionários do IML ficavam sabendo quando um desmorto pararia ali, mas que Lorena era uma exceção e precisava ser removida.

Abrir as portinholas exigia concentração e cada erro o deixava mais exausto do esforço mental. Estava começando a ficar tonto quando escutou um grito esganiçado. Conferiu o nome na etiqueta e puxou a gaveta.

A garota se ergueu no mesmo instante, agarrando o pano branco bem próximo ao corpo. Eles se encararam por vários segundos e caso tivessem fôlego para segurar, o teriam feito.

Instantes depois do choque inicial, Lucas se deu conta da indelicadeza e cobriu o rosto com as mãos, virando-se de costas.

— Me desculpe, eu esqueci que você só teria um lençol — balbuciou ele. Deu uma espiada para garantir que ela havia se coberto antes de virar.

A garota se encolheu, enrolada no pano. Olhou em volta com os olhos apertados e confusos.

Ela era muito baixa, nem gorda, nem magra. Indígena, com a pele de um bege escuro. O cabelo longo e ondulado estava manchado de rosa e roxo.

— O que tá acontecendo? — a voz dela soou fraca. — Quem é você?

Os lábios dele se comprimiram em uma linha fina. O que podia falar? O que se dizia para uma pessoa morta?

Teve pena dela. Alguém deveria tê-la ajudado, guiado, explicado tudo. Não deveria ser ele ali. Não fazia ideia do que dizer a alguém que havia perdido a vida de forma tão trágica e repentina.

Lucas desviou o olhar e se apoiou na parede de gavetas, constrangido. Era mesmo um inútil. O que de bom poderia fazer por ela?

— Meu nome é Lucas — disse ele, sem fazer contato visual. — E você morreu, caso isso não tenha ficado claro.

Ele fez um gesto sem graça para mostrar o ambiente, mas se arrependeu no mesmo instante.

Por que era tão difícil falar com outras pessoas? Se pelo menos tivesse uma gota de auto-estima as coisas seriam mais fáceis.

Era magro e ainda por cima alto, o que lhe dava uma aparência desengonçada. O cabelo preto ondulado estava sempre bagunçado. Uma argola no canto esquerdo da boca e os alargadores pretos. Sua cara de fantasma era ainda mais pálida. Queria pelo menos ter escolhido outra roupa no dia fatídico em que resolveu desencarnar. A blusa de manga comprida e listrada de preto estava desbotada. Começou a enjoar do cinto e da calça apertada com All Stars.

Ele voltou a olhar para a garota que o encarava.

— Sei de alguém que pode ajudar — ele disse. — Me ajudou, pelo menos, mais ou menos.

— E o que é você? Isso é o inferno ou algo assim?

— Não, é só o necrotério — Lucas respondeu.

— O quê...? — A garota parecia confusa, o que era o natural e esperado em uma situação daquelas.

Ela ajeitou o pano em volta do corpo e começou a andar pela sala, entre as mesas, olhando para o chão. Lucas não pôde deixar de perceber o estado em que ela estava depois de ser atropelada. Uma pessoa desavisada seria capaz de dizer que aquela era uma garota viva comum e não uma zumbi. Era incrível como seu corpo havia regenerado.

— Você está morta — Lucas repetiu.

Ela o encarou e revirou os olhos.

— Não tenho sinais vitais e acordei em uma geladeira. É, acho que percebi que estou morta.

Ignorou o tom na voz dela. Sabia muito bem que não era fácil descobrir que você não tem mais nada pela frente.

— Me disseram que você é um zumbi — disse ele. —Ainda tem o seu corpo. As pessoas podem te ver como se estivesse viva e tudo o mais. Acontece com algumas pessoas que morrem.

— Um zumbi? E o que é você, por acaso? Eu também estou te vendo.

— Eu sou só um fantasma, nada muito emocionante.

Lorena começou a rir. Perguntou-se se era um dos estágios do luto. As risadas pareciam um sinal de que ela estava saindo do estágio da negação para o de raiva.

— Então você está me dizendo que eu sou um zumbi e você é um fantasma? — ela soltou um misto de bufada com riso — Você só pode estar tirando com a minha cara. Essa é a coisa mais imbecil que já me disseram. Se você dissesse que estamos, sei lá, na fila de espera do Céu, eu teria até pensado em acreditar. Até parece! Zumbis e fantasmas! O que vem depois? Fadinhas? Unicórnios? Dragões? Vampiros? Sereias!

— Lorena... — disse ele bem baixo — Acho que você deveria parar de gritar. Tem um—

— Eu vou parar de berrar quando eu quiser parar de berrar!

Lucas travou onde estava, apontando para a porta. Alguém se aproximava a passos apressados.

A porta se abriu com violência e teve poucos segundos para registrar o guarda de arma em punho, disparando involuntariamente com o susto.

A bala atravessou o corpo de Lucas e foi se alojar na testa de Lorena. Ela cambaleou vários passos para trás, levando a mão à cabeça com horror.

— O que é que você está fazendo? – gritou ela para o homem.

Não houve resposta alguma do guarda. Estava em choque. Lucas não sabia se pelo fato de ter atirado em alguém ou se por esse alguém ainda estar de pé.

Ele olhava fixamente para Lorena, que o olhava de volta com uma expressão de quem voltaria a gritar.

— Acho que ele está em choque — observou Lucas. — A gente deveria aproveitar e sumir daqui depressa.

— Por que ainda estou viva? — perguntou ela, com o dedo no furo da bala, ignorando o guarda e se olhando no reflexo de uma das gavetas.

— Mas você não está viva — respondeu Lucas.

— Oi, eu sou um zumbi! Tiros na cabeça me matam!

— Você não é um personagem de filme, Lorena. É só uma coisa que não está nem viva nem morta.

— E como você sabe meu nome?

— A etiqueta enorme no seu pé responde à pergunta?

Lucas se aproximou do guarda que continuava com o braço esticado segurando a pistola. As pernas dele tremiam. Derrubou a arma da mão dele. Queria poder fazer alguma coisa mais emocionante, como atirá-lo longe com seus poderes da mente.

— Deveríamos sair daqui antes que ele volte a si.

Lorena se agachou, arrancou a etiqueta do pé e a rasgou em milhares de pedaços. Lucas deu de ombros, a segurou pelo braço e a arrastou para fora. Ela resmungou e praguejou durante todo o trajeto.

DesmortosOnde histórias criam vida. Descubra agora