A INIMIGA DO SOL

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o domingo de carnaval começou radiante: calor,mar com poucas ondas,águas transparente, céu azul. Alzira e Leandro acordaram ás seis da manhã para fazer uma caminhada a passos rápidos no calçadão de Copacabana. Para eles, esse era o melhor modo de começar o dia, mesmo em fins de semana e feriados. Mas não para a filha deles, Luciana,de 13 anos, que toda noite ficava até tarde entretida com jogos on-line, conversando com os amigos pelo computador, e detestava acordar cedo. 

 Quando voltaram da caminhada, a mãe de Alzira, que viera de Belo Horizonte passar a semana de Carnaval com eles, já estava acordada, preparando suco de laranja para o café da manhã. Sabia que a filha e o genro chegariam para tomar uma chuveirada, vestiriam as fantasias de odalisca e de pirata e pegariam o metrô até o centro da cidade, onde, ás 9 da manhã,aconteceria a concentração de um bloco que tocava marchinhas tradicionais. foi o que aconteceu. lá , os dois , animadíssimos, encontraram alguns amigos e se divertiram observando fantasias criativas: a mulher-bomba enrolada em panos negros com a cartaz '' vou explodir de alegria!'', a jovem com uma bunda de plástico por cima da bermuda, o senhor careca e barrigudo com uma tiara na cabeça e roupa de bailarina , a senhora com um chapéu enorme imitando uma caneca de cerveja, a mulher com uma saia feita de tubos de papel higiênico.Muitas crianças no colo dos pais, algumas assustadas com o som de bumbos, trombones e tubas e com a multidão que rapidamente lotou a rua estrita, antes de o bloco começar a circular pelo centro da cidade. Gente de todas as idades, com perucas coloridas, óculos enormes,colares, pulseiras e muita animação.

-Oi, tia, cadê a Luciana?

 Alzira surpeendeu-se quando Bruna a pegou pelo braço. Não a tinha visto no bloco, com a avó que adorava sambar.

-Você não conhece sua amiga ,Bruninha? Ela detesta Carnaval!

-Falei com ela ontem. Já faz um tempão que a gente não se vê, já cansei de convidar para um monte de programas , ela sempre inventa uma desculpa para não sair de casa! Na verdade, o único convite que ela aceita de vez em quando é se encontrar comigo na padaria do papai para comer aquele pão doce irresistível...

-É , a gente também insiste para que pelo menos ela vá á praia nos finais de semana,mas nem isso, em pleno verão está branca como a neve, parece inimiga do sol!

Por volta de uma da tarde,caminharam até a estação de metrô mais próxima. Estava lotado, com gente fantasiada indo para os blocos da Zona Sul e muitas pessoas com roupas de praia, os termômetros marcando 35 graus. Ao descer, ainda andaram mais três quadras,as ruas de Copacabana cheias, a praia colorida com uma barraca ao lado da outras, os ambulantes fazendo a festa com as vendas de bebidas. bonés , cangas e enfeites carnavalescos. Entraram em casa felizes , suados e cansados . Leandro foi para  chuveiro, para depois entrar na cozinha com a mulher e preparar um peixe assado com legumes para o almoço.

- E aí,mãe ,Luciana já acordou?

Dona Vera olhou para Alzira sobre os óculos, parando de picar maçãs e peras para salada de frutas: -Claro que não, ainda é cedo para ela! Não conhece sua própria filha?

   Alzira deu um longo suspiro:

   -Não sei mais o que dizer nem o que fazer para convencer essa menina de que está perdendo os melhores anos da vida dormindo até tarde e enfiada nesse maldito computador! Precisava ver a animação da garotada no bloco: havia ate criancinhas de 2 anos dançando no colo dos pais!

-Cada um aproveita a vida do seu jeito, minha filha! Luciana acha a maior graça ,é lá que ela se diverte, paquera, faz amigos . Mas nem você nem o Leandro conseguem entender isso...

-Gosta de computador e de comida... Reparou como engordou desde o Natal? Vive comendo bobagens:pipoca,biscoitos,balas,bolos, tudo o que não presta. Faz várias coisas ao mesmo tempo: tecla,come,ouve música, fala pelo celular e , ainda por cima, jura que consegue se concentrar para fazer o dever de casa no meio dessa confusão toda !

- Calma, minha filha, você , desde pequena, tem mania de fazer drama! Luciana não está gorda, está cheinha . Você também, nessa idade, não gostava de fazer os deveres e tirava notas baixas! Não precisa se preocupar tanto! Chegou do bloco tão alegre, agora está com essa cara...

- Eu não faço drama,mamãe, você é que acha que nada é grave, que tudo se resolve com o tempo! O Leandro também se preocupa. A Luciana é impermeável aos nossos argumentos, diz com a mair convicção que o mundo virtual é muito mais interessantes do que essa nossa vidinha real, vê se pode?

-Talvez ela tenha razão...-disse dona Vera, pensativa. Ainda vestindo a camisola cor-de-rosa estampada com coelhinhos saltitante, Luciana entrou na cozinha, os olhos semicerrados, os passos cambaleantes, como se fosse sonâmbula:

-Oi... Bom dia...

-Boa tarde! Já passa das duas e você ainda não acabou de acorda, menina? -Leandro olhou sério para a filha enquanto abria a porta do forno para colocar um pouco mais de azeite em cima do peixe, o delicioso cheiro das ervas se espalhando pela cozinha. Luciana foi direto para a geladeira , abriu o congelador , pegou o pote de sorvete de goiabada com queijo e encheu sua caneca com generosa porção.

-A comida já está praticamente pronta, minha filha! Que ideia é essa de comer a sobremesa antes da refeição? Além do mais, sua avó fez uma salada de frutas deliciosa, que não engorda tanto!- A voz de Alzira estava no tom de censura que mais irritava Luciana.

-Ai , mãe , que porre! O dia mal começou e você já está reclamando!

- Em primeiro lugar, o dia começou há muito tempo,menina! Seu e eu já fomos á praia , pegamos o metrô até o centro da cidade, sambamos no bloco e encontramos muitos jovens se divertindo,inclusive a Bruna , que mandou um beijo para você. Em segundo lugar, você deveria se olhar bem no espelho para ver que está gorda e pensar duas vezes antes de se entupir de soverte!

 Luciana voltou para o quarto resmungando: - Não sei quem inventou essa regrinha idiota de comer sobremesa depois da refeição! Com esse calor, soverte é muito melhor do que peixe assado!

Começou a ler as mensagens e os blogs dos amigos que estavam se divertindo no Carnaval, alguns com várias fotos já colocadas. Um dos amigos inventou uma fantasia de preto velho: ele e mais cinco tiveram a paciência de pintar todo o corpo, cabelos e sobrancelhas , e desfilaram com cachimbo no canto da boca e cajado. Hilário. Outro saiu fantasiado de mendigo, as roupas esfarrapadas, todo sujo como se tivesse ficado uma semana sem tomar banho. Hilário também. Ela escreveu alguns comentários engraçados, mas pensou: ''Odeio Carnaval, não entendo como meus pais e meus amigos gostam de ficar dançando no meio da multidão com esse calor horroroso''.

Em seguida, entrou na comunidade virtual ''Meus pais não me entendem!'' para ler as novas mensagens postadas por centenas de participantes cujos pais também os chamavam de ''zumbis'' e ''inimigos do sol'', travando intermináveis batalhas entre ''certos e errado'', ''verdade e mentira'', incapazes de perceber a riqueza dessa rede de trocas de ideias, confidências e informações que, para Luciana , eram mais importantes do que tudo aquilo que ensinavam na escola e que , segundo ela, não servia para coisa alguma na vida.

- Filha , a comida está pronta, venha almoçar! - Leandro gritou lá da cozinha, esperando que Luciana ouvisse.

Silêncio. A porta do quarto fechada, ela com os fones ouvindo as músicas preferidas que baixava da internet. Assim que viu o pai entrar, minimizou as telas para que ele não visse nem as mensagens dos participantes da comunidade nem as fotos dos amigos carnavalescos: com certeza, ele a censuraria, mais uma vez, por não gostar de sair de casa.

-Não estou com fome, pai! Muito calor para comer coisas quentes! Já almocei o sorvete.

-Tudo bem, você não é obrigada a comer, mas pelo menos fique conosco. Sua avó vai embora daqui a dois dias, depois só na Semana Santa se a gente for para Belo Horizonte, e você quase não conversou com ela. Quando não está dormindo,desaparece nesse buraco negro cibernético e mal olha para a cara da gente!

-Tá bom, tô indo...- resmungou ,bocejando. Levantou-se e foi se arrastando até a sala, onde a mesa estava posta. Entediada, a mão no queixo, ela aparentemente acompanhava a conversa, mas na verdade planejava a cidade que estava construindo em um jogo do computador, em que não havia escolas nem estudantes de coisa alguma.


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