O real mundo virtual

2.7K 25 3
                                    

Todas  as manhãs, Luciana saía da cama sacudida pelo pai, mal conseguia acordar com a xícara de café quente e ia para a escola como um zumbi. Zumbi . Era assim que o pai a chamava quando se chocava com sua palidez de inimiga do sol e das atividades ao ar livre, quando a criticava pelo excesso de peso, quando não entendia por que ela não queria sair com os amigos.

Sempre que percebia o pai exasperado por vê-la recusar os convites para sair, Luciana respondia calmamente: -Não quero fazer o que todo mundo faz! Estou me lixando para o que os outros pensam, não gosto de sair de casa e pronto!

-Mas isso não é normal na sua idade, Luciana!

- E daí? Não quero ser normal!

-Pois deveria querer ser uma adolescente normal e saudável, sem essas olheiras de poucas horas de sono, sem ir para a escola se arrastando e se arriscando a repetir o ano!

-Eu odeio a escola,você sabe! e pouco me importa se eu for reprovada! Vai ser até bom! Quem sabe vocês desistem de me fazer estudar e me deixam em casa, fazendo o que eu mais amo, que é ficar plugada no computador!

-Você pode repetir o ano duzentas vezes, mas da escola você não vai sair! E não adianta fazer essa resistência absurda, a ponto de mal falar com seus colegas!- Leandro gritava, impaciente.

-Não estou a fim de conversar com ninguém daquela escola! Meus amigos virtuais são muito mais interessantes!

Pai e Filha cansavam de repetir os mesmos argumentos, mas um não conseguia aceitar o ponto de vista do outro. Da turma de Luciana, Alzira e Leandro conheciam apenas duas colegas que , ás vezes, se reuniam para fazer trabalhos em grupo. Contives para ir ao cinema, fazer um lanche ou ir a festas, de tanto ser recusados,tornaram-se praticamente inexistentes: os amigos desistiram de insistir.

Entretanto, a menina tinha mais de quinhentos amigos na rede de relacionamentos, com os quais trocava mensagens , conversava animadamente e passeava nos ambientes virtuais dos jogos on-line. O conceito de amizade era um tema recorrente de conversa entre ela e seus pais, mas as opiniões eram tão divergentes que eles não conseguia, chegar a um denominador comum.

- Para que serve ter quinhentos amigos na rede se você não sai com nenhum deles, não os convida para vir aqui em casa e não é convidada para ir á casa deles? - questionava Leandro.

-Quando eu tinha a sua idade, andava em bando, minha casa era o ponto de encontro de grupo, Sua avó já cansou de comentar isso com você . Combinávamos de fazer piquenique na praia,passear á tarde no parque , andar de roda-gigante, montanha-russa e trem-fantasma. Nos divertíamos pra valer! - agregava Alzira.

-Eu também me diverto muito com meus amigos da rede, vocês não entendem porque só usam o computador para trabalhar!- retrucava Luciana.

- Amizade com gente que você nem conhece? Amigo é a pessoa com quem a gente se encontra, conversa, troca confidências...- mãe insistia.

- Amizade de verdade a gente cultiva, sabe que pode contar com pessoa nos momentos difíceis, não dá para ser amigo de quinhentas pessoas!- completava Leandro.

- Ai, caramba , essa definição de amizade é antiga, de antes de criarem o computador! Eu me encontro com meus amigos no ambiente virtual, viajamos , vamos a shows, sentamos na lanchonete para jogar conversa fora, tudo o que se faz com os amigos na vida que vocês insistem em chamar de real ! Aliás , para nós , amigo nem precisa ser uma pessoa de verdade, pode ser um avatar que interage com o nosso, aí gente conversa, passeia pelos cenários dos jogos, cria intimidade, mesmo que seja tudo inventado! - argumentava Luciana, impaciente com a dificuldade dos pais para entender a realidade do mundo virtual.

Os avatares que Luciana construía para representá-la eram muito diferente dela : magros, altos,cabelos curtos e com cores e cortes exóticos, roupas ousadas e coloridíssimos . Em sua fotos no site de relacionamento, ela esta irreconhecível: sorridente, com uma blusa vermelha e brincos de argola, os cabelos longos penteados para trás, realçando o rosto... Muito diferente da Luciana das roupas escuras e largas com que ela procurava esconder os quilos a mais, do cabelo desalinhado encobrindo as orelhas e a testa, do sorriso raro e contido. Em seu perfil , descrevia-se como simpático, sociável, de bem com a vida. Outra pessoa . A filha que os pais adorariam ter.

A Face OcultaOnde histórias criam vida. Descubra agora