O sopro da noite embalava os cabelos negros enquanto na boca pairava um toco de cigarro, quase findo. Em um momento a jovem moça se contentava em gargalhar, noutro apenas fechava os olhos e deixava suas narinas absorverem o cheiro que exalava a liberdade. Havia transcendido os limites que ela mesma havia imposto, naquela noite. Não fumava, não bebia, não sorria... Passara os últimos anos calculando seus gestos em meio à monotonia da cidade grande, sem dar atenção aos desejos mais profundos de sua alma. Se é que tinha uma, questionou-se em um ponto de sua história. Agora ela podia afirmar que sim. Possuía uma alma, finalmente renovada em meio aos velhos ares de sua terra natal.
A acanhada cidade continuava irritantemente igual a quatro anos atrás. As estátuas da praça com suas pichações, o chafariz sem uma gotícula de água, o banco com a tinta amarela descascando ― até pôde reparar em sua antiga assinatura na madeira deteriorada. Tudo da mesma maneira que havia deixado.
Irônico. Sua vida ficou inacabada por lá. Ao sair das limitações territoriais de Villa Alva, mudou drasticamente; tanto suas roupas como sua postura. Não por vontade própria, mas sim pelos outros. “Saia muito curta, decote exagerado, maquiagem excessiva. Foi arrumada por uma criança de seis anos?” foram as primeiras palavras de seu agente. Doeu, mas não demorou a sarar, notando que deixou de ser desejada vulgarmente para ser respeitada. E isso a engrandeceu. Seu ego subiu e o amor próprio também, mesmo sabendo que era apenas uma máscara, um disfarce. A verdadeira Bertha ainda estava presa em algum lugar lá dentro, só esperando uma brecha para se libertar. E naquele dia, apareceu a oportunidade.
Algumas crianças passavam com sorvetes na mão, acompanhadas dos pais. Estes a fitavam intrigados, sabendo quem ela era, mas não acreditando que depois de tantos anos ela resolvera finalmente trazer um pouquinho de sua fama para os vinte mil habitantes da cidadezinha. Já a moça apenas sorria. Não podia negar que este reconhecimento lhe trazia satisfação. Afinal, agora era Bertha Barreiro, atriz de renome no cinema nacional e, quiçá, internacional.
Sem vontade de enfrentar o fluxo intenso que agora vinha das lanchonetes e restaurantes, sentou no cimento que circundava o chafariz e concluiu que se o reservatório estivesse cheio de água, a chance de se molhar seria gigantesca, já que, mesmo sentada, cambaleava, sentido o efeito do álcool a abraçar rapidamente. Há quanto tempo não ficava bêbada? Por quantos anos ficou sem abrir uma carteira de cigarro? Lembrando que esta continuava em seu bolso da calça jeans, ergueu-se um pouco para a alcançar. Não ficou feliz ao notar que todos os cigarros já haviam acabado.
― Vejo que velhos hábitos nunca mudam. ― escutou uma voz, longínqua. O farfalhar das folhas esmagadas evidenciava uma aproximação. Ficou um pouco assustada, afinal, não sabia se os índices de violência da cidade haviam aumentado ou continuavam os mesmos. Porém, ainda que seu corpo inteiro tremelicasse, ela não se moveu. Era sua cidade! Não iria a lugar algum.
O som logo virou uma sombra, a sombra virou um vulto e este virou um homem. Congelou.
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Pretério Imperfeito
RomanceÉ tão fácil jogar sua vida pro alto e dizer "chega". Mais fácil ainda é ir embora, sem dar explicações a ninguém, e recomeçar. Um novo amor, uma nova postura, uma nova ambição. O difícil é retornar ao mesmo lugar que você rejeitou, reconhecer as mes...