Como ambas negaram, ele o comeu. E assim, acabada a comida, Bertha sentiu-se livre para voltar ao seu caminho. Queria visitar a boate e talvez sua melhor amiga. Ou melhor dizendo, ex. Talvez ela nem quisesse abrir a porta de sua casa, o tanto de raiva que guardava dentro de seu peito após os acontecimentos de seus dezenove anos.
A casa em que Simone morava atualmente era afastada do centro da cidade, em um bairro considerado de elite. Soube o endereço ao acaso, quando seus pais mencionaram a mudança de vida da antiga vizinha. Agora era rica e tinha uma família linda, como sempre quis, disse sua mãe. Bertha não duvidou por um milésimo de segundo. Sua amiga sempre lutou por seus objetivos e a vida, embora nunca ardilosa, não foi um mar de rosas. O divórcio dos pais quando criança fez com que criasse o anseio de construir o lar perfeito; o que, pelo jeito conseguira.
Constatou que estava chegando no local quando a rua, tomada por buracos metros antes se via plana como se fosse o piso de um salão de festas. Ah, o poder do dinheiro. Ter a capacidade de arrumar a própria rua era privilégio para poucos. Poucos que possuíam muito.
Pôde ver as casas aumentando de tamanho gradativamente a cada passo dado. Feitas por arquitetos e engenheiros de renome, deliciavam os olhos dos que passavam por lá. Bertha deu um sorriso presunçoso. Embora não gostasse de se gabar, este era um momento que não podia ignorar: sua casa na Capital era dez vezes maior que qualquer uma delas. Coitados, achavam-se os reis de Villa Alva, porém, fora da cidadezinha, eram como formigas; perto dos grandes, eram facilmente abocanhados ou pisoteados. Com exceção de Simone. Simone não era daquela maneira. Era o que esperava, ao menos...
Quando chegou perto da casa descrita, deu uma bela fitada nas câmeras de segurança ao seu redor. Tanta segurança em uma cidade tão pequena? Passou pelo portão, tocou a campainha e esperou. Suas mãos estavam suadas e a garganta trancou rispidamente, resultado do nervosismo que lhe acompanhava. Quando uma pequena garotinha de no máximo cinco anos abriu a porta, olhou para a calçada atrás de suas costas e pensou quanto tempo levaria para atravessar o portão novamente e fugir. Mas não fez isso.
― Oi, a Simone está? ― pediu Bertha, forçando sua voz a sair.
A garota, dotada de cabelos dourados em um corte acima do ombro, se pôs a gritar “mãe”, incessantemente.
Por fim, uma mulher morena, aparentemente jovem, apareceu na fresta da porta. Ficou ali, taciturna, por uma fração de momento.
― Olá. ― disse ela, fria como uma rajada de vento.
― Oi, Si. ― murmurou, os gestos restritos, sem saber o que fazer e que atitude era a correta a se tomar.
― Júlia, essa é sua dinda Bertha. ― falou, a mão pousando sobre o ombro da criança.
― Júlia?! ― exclamou, levando as duas mãos à boca. ― Não vai me dizer que essa moça crescida era aquele bebezinho lindo?
― Perdeu muita coisa, não? ― falou Simone, com comedimento.
Simone era uma velha amiga. Moravam na mesma rua muito antes de Thomas se juntar à vizinhança e ela se firmar em um casamento abastado. A diferença de dois anos de idade nunca foi um problema. Esse, na verdade, era a divergência de ideias. Enquanto Simone queria casar e ter filhos o quanto antes, nos planos de Bertha estava aproveitar até o último minuto. Simone conseguiu realizar o seu e casou aos vinte e um anos, com uma filha de já um ano de idade. E, pelo Bertha conseguia escutar de dentro da casa, mais um acabara por vir.
― Não me diga que... ― não conseguiu concluir a frase.
― Quando você foi embora eu descobri que estava grávida novamente. Gêmeos.
― Loiros, como o pai?
― Não, estes são morenos como eu. ― mandou a filha ir separar os irmãos, que pelos berros brigavam.
― Por que não me contou? Você tinha meu número, era só ligar! ― exclamou, sorridente. As palavras seguintes vieram como um balde de água fria.
― Acorda, Bertha. Você só se importava com você e sua importante carreira. Se é que não continua assim. ― rolou os olhos.
Desfazendo o sorriso que continha no rosto, fitou-a, a boca aberta, sem saber o que responder. Por fim, saiu o óbvio.
― Fiz tudo por meu pai, você sabe.
― Bobagem! ― falou, aumentando o tom de voz, soando ameaçadora. ― Virou uma vadia porque quis. Não envolva seu pai nisso. ― não era mais a Simone simpática que parecia na frente da filha.
― Você acha que eu ficaria nua em um bar com velhos repugnantes porque quero?! ― enfatizou a última palavra.
― Não no início. ― Simone fechou a porta, tentando evitar que os ruídos da briga das duas chegassem aos ouvidos das crianças. ― Mas depois, ah, depois que Thomas apareceu fez por puro prazer. Provocá-lo com outros homens era seu esporte.
― Você está se ouvindo?! ― gritou Bertha. ― Enlouqueceu?
As palavras traziam dor à Bertha. Talvez por possuírem um resquício de verdade. Será que ela era assim? Uma megera? Divertia-se tanto provocando Thomas que esqueceu os objetivos que a levaram a pisar naquela boate, em primeiro lugar?
― Deixe-me terminar. ― gesticulou Simone, para que Bertha não a interpelasse. ― E sabe o que é pior? É que você o provocou, provocou, provocou, e depois descartou feito lixo o pobre coitado.
― Coitado? ― sem conseguir se controlar, gargalhou. Uma risada cruel, que por um segundo fez com que ela se esquecesse da parcela de culpa que possuía em toda aquela situação desonrosa. ― Ele me traía com uma garota a cada esquina e eu sou a indiciada dessa história?
― Ele te traía porque você agia feito uma vagabunda no bar. ― Simone sentiu a mão débil de Bertha sobre sua face em um baque repentino. No primeiro instante, a ardência lhe corroeu. Logo em seguida, porém, não sentia nada mais que pena. ― Vamos, bata. Mas isso não vai fazer com que se torne menos verdade. Ele te amava, e na primeira oportunidade você o trocou por dinheiro e fama.
― Eu fiz o que foi melhor para o meu pai! Vou ter que desenhar agora?
― Diga-me, então, quantos dos seus milhões foram para ele. Ele não aceitou, certo? E você sempre soube que ele não aceitaria. Ele nunca sairia de Villa Alva, nem que os melhores médicos estivessem na cidade vizinha. E mesmo assim continuou alegando os mesmo motivos. “Fiz tudo o que fiz para o meu pai”. Passou do tempo de passar por boazinha, querida amiga.
― Você não me conhece. ― embora por fora quisesse continuar a discussão, provando que estava com a razão, por dentro era vítima de uma fragilidade intensa. Será que não havia ninguém que pudesse lhe apoiar? Nenhuma mão amiga para lhe acalentar ou simplesmente sorrir por seu retorno?
― Conheço sim. Desde os seus cinco anos de idade. E até os seus dezenove tudo continuava igual. Foram neles em que você se tornou uma egoísta.
― Eu não vou ficar aqui ouvindo suas asneiras. ― disse, as lágrimas descendo pela pele nívea, brilhando ao reflexo da luz solar.
― Bertha, querida, o que aconteceu com você? ― segurou o ímpeto de entregar a morena um lenço para que a mesma limpasse o motivo de sua vergonha. ― Por que você deixou de ser aquela minha garota doce? Você fez muita falta a todos, mas a verdade é que nem ligava. Não sabe como foi para Thomas. Estava desolado.
― O que aconteceu com Thomas? ― o nome que surgira novamente na conversa das duas fez com que deixasse o orgulho para trás.
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Pretério Imperfeito
Lãng mạnÉ tão fácil jogar sua vida pro alto e dizer "chega". Mais fácil ainda é ir embora, sem dar explicações a ninguém, e recomeçar. Um novo amor, uma nova postura, uma nova ambição. O difícil é retornar ao mesmo lugar que você rejeitou, reconhecer as mes...