Apaixonar-se e desapaixonar-se

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"Meu caro amigo, estou lhe enviando um pequeno trabalho do qual se poderia dizer, sem injustiça,
que não é cabeça nem rabo, já que tudo nele é, ao contrário, uma cabeça e um rabo, alternada e
reciprocamente. Suplico-lhe que leve em consideração a conveniência admirável que tal
combinação oferece a todos nós - a você, a mim e ao leitor. Podemos abreviar - eu, meus
devaneios; você, o texto; o leitor, sua leitura. Pois eu não atrelo interminavelmente a fatigada
vontade de qualquer um deles a uma trama supérflua. Retire um anel, e as duas partes desta
tortuosa fantasia voltarão a se unir sem dificuldade. Corte em pedacinhos e vai descobrir que cada
um deles tem vida própria. Na expectativa de que alguma dessas fatias possa agradá-lo e diverti-lo,
ouso dedicar-lhe a cobra inteira."
Foi assim que Charles Baudelaire apresentou Le spleen de Paris a seus leitores. Que pena. Não
fosse por isso, eu gostaria de escrever esse mesmo preâmbulo, ou um parecido, sobre o texto que segue.
Mas ele o escreveu e só me resta citá-lo. Evidentemente, Walter Benjamin enfatizaria na última sentença
a palavra "só". E eu também, pensando bem.
"Corte-a em pedacinhos e vai descobrir que cada um deles tem vida própria." Os fragmentos que
fluíam da pena de Baudelaire tinham. Se os dispersos retalhos de pensamento reunidos a seguir também
terão, não cabe a mim decidir, mas ao leitor.
A família dos pensamentos está repleta de anões. É por isso a lógica e o método foram inventados
e, depois de descobertos, adotados pelos pensadores de idéias. Pigmeus podem esconder-se e acabar
esquecendo sua insignificância em meio ao esplendor de colunas em marcha e formações de batalha.
Cerradas as fileiras, quem vai notar o tamanho diminuto dos soldados? E possível reunir um exército de
aparência extremamente poderosa alinhando-se para o combate fileiras após fileiras de pigmeus...
Só para satisfazer os viciados em metodologia, talvez eu devesse ter feito o mesmo com estes
fragmentos. Mas como não tenho tempo para levar a cabo essa tarefa, seria tolice de minha parte pensar
primeiro na ordem das fileiras e deixar a convocação para o final...
Pensando bem: talvez o tempo de que disponho pareça curto demais não por minha idade
avançada, mas porque, quanto mais velho você é, mais sabe que os pensamentos, embora possam parecer
grandiosos, jamais serão grandes o suficiente para abarcar a generosa prodigalidade da experiência
humana, muito menos para explicá-la. O que sabemos, o que desejamos saber, o que lutamos para saber,
o que devemos tentar saber sobre amor ou rejeição, estar só ou acompanhado e morrer acompanhado ou
só - será que tudo isso poderia ser alinhado, ordenado, adequado aos padrões de coerência, coesão e
completude estabelecidos para assuntos de menor grandeza? Talvez sim - quer dizer, na infinitude do
tempo.
Não é verdade que, quando se diz tudo sobre os principais temas da vida humana, as coisas mais
importantes continuam por dizer?
O amor e a morte - os dois personagens principais desta história sem trama nem desfecho, mas
que condensa a maior parte do som e da fúria da vida - admitem, mais que quaisquer outros, esse
tipo de devaneio/escrita/leitura.
Para Ivan Klima, poucas coisas se parecem tanto com a morte quanto o amor realizado. Cada
chegada de um dos dois é sempre única, mas também definitiva: não suporta repetição, não permite
recurso nem promete prorrogação. Deve sustentar-se "por si mesmo" - e consegue. Cada um deles nasce,
ou renasce, no próprio momento em que surge, sempre a partir do nada, da escuridão do não-ser sem
passado nem futuro; começa sempre do começo, desnudando o caráter supérfluo das tramas passadas e a
utilidade dos enredos futuros.
Nem no amor nem na morte pode-se penetrar duas vezes - menos ainda que no rio de Heráclito.
Eles são, na verdade, suas próprias cabeças e seus próprios rabos, dispensando e descartando todos os
outros.
Bronislaw Malinowski ironizava os difusionistas por confundirem coleções de museu com
genealogias. Tendo visto toscos utensílios de pederneira expostos em estojos de vidro diante de
instrumentos mais refinados, eles falavam de uma "história das ferramentas". Era, zombava Malinowski,
corno se um machado de pedra gerasse um outro, da mesma forma que, digamos, o hipparion deu origem,
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na plenitude do tempo, ao equus caballus. Os cavalos podem derivar de outros cavalos, mas as
ferramentas não têm ancestralidade nem descendência. Diferentemente dos cavalos, não têm uma história
própria. Pode-se dizer que elas pontuam as biografias individuais e as histórias coletivas dos seres
humanos, das quais são emanações ou sedimentos.
Quase o mesmo se pode dizer do amor e da morte. Parentesco, afinidade, elos causais são traços
da individualidade e/ou do convívio humanos. O amor e a morte não têm história própria. São eventos
que ocorrem no tempo humano - eventos distintos, não conectados (muito menos de modo causal) com
eventos "similares", a não ser na visão de instituições ávidas por identificar - (por inventar) -
retrospectivamente essas conexões e compreender o incompreensível.
Assim, não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E não se pode
aprender a arte ilusória - inexistente, embora ardentemente desejada - de evitar suas garras e ficar fora
de seu caminho. Chegado o momento, o amor e a morte atacarão - mas não se tem a mínima idéia de
quando isso acontecerá. Quando acontecer, vai pegar você desprevenido. Em nossas preocupações
diárias, o amor e a morte aparecerão ab nihilo - a partir do nada. Evidentemente, todos nós tendemos a
nos esforçar muito para extrair alguma experiência desse fato; tentamos estabelecer leis antecedentes,
apresentar o princípio infalível de um post hoc corno se fosse um propter hoc, construir uma linhagem
que "faça sentido" - e na maioria das vezes obtemos sucesso. Precisamos desse sucesso pelo conforto
espiritual que ele nos traz: faz ressurgir, ainda que de forma circular, a fé na regularidade do mundo e na
previsibilidade dos eventos, indispensável para a nossa saúde mental. Também evoca uma ilusão de
sabedoria conquistada, de aprendizado, e sobretudo de uma sabedoria que se pode aprender, tal como
aprendemos a usar os cânones da indução de J. S. Mill, a dirigir automóveis, a comer com pauzinhos em
vez de garfos ou a produzir uma impressão favorável em nossos entrevistadores.
No caso da morte, o aprendizado se restringe de fato à experiência de outras pessoas, e portanto
constitui uma ilusão in extremis. A experiência alheia não pode ser verdadeiramente aprendida como tal;
não é possível distinguir, no produto final da descoberta do objeto, entre o Erlebnis original e a
contribuição criativa trazida pela capacidade de imaginação do sujeito. A experiência dos outros só pode
ser conhecida como a história manipulada e interpretada daquilo por que eles passaram. No mundo real,
tal como nos desenhos de Tom & Jerry, talvez alguns gatos tenham sete vidas ou até mais, e talvez alguns
convertidos possam acreditar na ressurreição - mas permanece o fato de que a morte, assim como o
nascimento, só ocorre uma vez. Não há como aprender a "fazer certo na próxima oportunidade" com um
evento que jamais voltaremos a vivenciar.
O amor parece desfrutar de um status diferente do de outros acontecimentos únicos.
De fato, é possível que alguém se apaixone mais de uma vez, e algumas pessoas se gabam - ou se
queixam - de que apaixonar-se ou desapaixonar-se é algo que lhes acontece (assim como a outras pessoas
que vêm a conhecer nesse processo) de modo muito fácil. Todos nós já ouvimos histórias sobre essas
pessoas particularmente "propensas" ou "vulneráveis" ao amor.
Há bases bastante sólidas para se ver o amor, e em particular a condição de "apaixonado" como -
quase que por sua própria natureza - uma condição recorrente, passível de repetição, que inclusive nos
convida a seguidas tentativas. Pressionados, a maioria de nós poderia enumerar momentos em que nos
sentimos apaixonados e de fato estávamos. Pode-se supor (mas será uma suposição fundamentada) que
em nossa época cresce rapidamente o número de pessoas que tendem a chamar de amor mais de uma de
suas experiências de vida, que não garantiriam que o amor que atualmente vivenciam é o último e que
têm a expectativa de viver outras experiências como essa no futuro. Não devemos nos surpreender se essa
suposição se mostrar correta. Afinal, a definição romântica do amor como "até que a morte nos separe"
está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical
alteração das estruturas de parentesco às quais costumava servir e de onde extraia seu vigor e sua
valorização. Mas o desaparecimento dessa noção significa, inevitavelmente, a facilitação dos testes pelos
quais uma experiência deve passar para ser chamada de "amor": Em vez de haver mais pessoas atingindo
mais vezes os elevados padrões do amor, esses padrões foram baixados. Como resultado, o conjunto de
experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito. Noites avulsas de sexo são
referidas pelo codinome de "fazer amor".
A súbita abundância e a evidente disponibilidade das "experiências amorosas" podem alimentar (e
de fato alimentam) a convicção de que amar (apaixonar-se, instigar o amor) é uma habilidade que se pode
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adquirir, e que o domínio dessa habilidade aumenta com a prática e a assiduidade do exercício. Pode-se
até acreditar (e freqüentemente se acredita) que as habilidades do fazer amor tendem a crescer com o
acúmulo de experiências que o próximo amor será uma experiência ainda mais estimulante do que a que
estamos vivendo atualmente, embora não tão emocionante ou excitante quanto a que virá depois.
Essa é, contudo, outra ilusão... O conhecimento que se amplia juntamente com a série de eventos
amorosos é o conhecimento do "amor" como episódios intensos, curtos e impactantes, desencadeados
pela consciência a priori de sua própria fragilidade e curta duração. As habilidades assim adquiridas são
as de "terminar rapidamente e começar do início" das quais, segundo Soren Kierkegaard, o Don Giovanni
de Mozart era o virtuoso arquetípico. Guiado pela compulsão de tentar novamente, e obcecado em evitar
que cada sucessiva tentativa do presente pudesse atrapalhar uma outra no futuro, Don Giovanni era
também um arquetípico "impotente amoroso". Se o propósito dessa busca e experimentação infatigáveis
fosse o amor, a compulsão a experimentar frustraria esse propósito. É tentador afirmar que o efeito dessa
aparente "aquisição de habilidades" tende a ser, como no caso de Don Giovanni, o desaprendizado do
amor - uma "exercitada incapacidade" para amar.
Um resultado como esse - a vingança do amor, por assim dizer, sobre aqueles que ousam desafiarlhe
a natureza - seria de se esperar. Pode-se aprender a desempenhar uma atividade em que haja um
conjunto de regras invariáveis correspondendo a um cenário estável e monotonamente repetitivo que
favoreça o aprendizado, a memorização e a manutenção dessa simulação. Num ambiente instável, fixar e
adquirir hábitos - marcas registradas do aprendizado exitoso - não são apenas contraproducentes, mas
podem mostrar-se fatais em suas conseqüências. O que é mortal para os ratos dos esgotos urbanos -
aquelas criaturas inteligentíssimas capazes de aprender rapidamente a distinguir comidas de iscas
venenosas - é o elemento de instabilidade, de desafio às regras, inserido na rede de calhas e dutos
subterrâneos pela "alteridade" irregular, inapreensível, imprevisível e verdadeiramente impenetrável de
outras criaturas inteligentes - os seres humanos, com sua notória tendência a quebrar a rotina e derrubar a
distinção entre o regular e o contingente. Se essa distinção não se sustenta, o aprendizado (entendido
como a aquisição de hábitos úteis) está fora de questão. Os que insistem em orientar suas ações de acordo
com precedentes, como aqueles generais conhecidos por lutar novamente sua última guerra vitoriosa,
assumem riscos suicidas e não favorecem a eliminação dos problemas.
É da natureza do amor - como Lucano observou há dois milênios e Francis Bacon repetiu muitos
séculos depois - ser refém do destino.
No Banquete de Platão, a profetisa Diotima de Mantinéia ressaltou para Sócrates, com a sincera
aprovação deste, que "o amor não se dirige ao belo, como você pensa; dirige-se à geração e ao
nascimento no belo". Amar é querer "gerar e procriar", e assim o amante "busca e se ocupa em encontrar
a coisa bela na qual possa gerar". Em outras palavras, não é ansiando por coisas prontas, completas e
concluídas que o amor encontra o seu significado, mas no estímulo a participar da gênese dessas coisas. O
amor é afim à transcendência; não é senão outro nome para o impulso criativo e como tal carregado de
riscos, pois o fim de uma criação nunca é certo.
Em todo amor há pelo menos dois seres, cada qual a grande incógnita na equação do outro. É isso
que faz o amor parecer um capricho do destino - aquele futuro estranho e misterioso, impossível de ser
descrito antecipadamente, que deve ser realizado ou protelado, acelerado ou interrompido. Amar significa
abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo
num amálgama irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no ser:
aquela liberdade que se incorpora no Outro, o companheiro no amor. "A satisfação no amor individual
não pode ser atingida sem a humildade, a coragem, a fé e a disciplina verdadeiras", afirma Erich Fromm -
apenas para acrescentar adiante, com tristeza, que em "uma cultura na qual são raras essas qualidades,
atingir a capacidade de amar será sempre, necessariamente, uma rara conquista" 1
.
E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso
imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados,
receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de
amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a "experiência amorosa" à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas
essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço.
Sem humildade e coragem não há amor. Essas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e
contínuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e não-mapeada. E é a esse território que o amor
conduz ao se instalar entre dois ou mais seres humanos.
Eros, como insiste Levinas2
, difere da posse e do poder; não é nem uma batalha nem uma fusão - e
nem tampouco conhecimento.
Eros é "uma relação com a alteridade, com o mistério, ou seja, com o futuro, com o que está
ausente do mundo que contém tudo o que é..". "O pathos do amor consiste na intransponível dualidade
dos seres". Tentativas de superar essa dualidade, de abrandar o obstinado e domar o turbulento, de tornar
prognosticável o incognoscível e de acorrentar o nômade tudo isso soa como um dobre de finados para o
amor. Eros não quer sobreviver à dualidade. Quando se trata de amor, posse, poder, fusão e desencanto
são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
Nisso reside a assombrosa fragilidade do amor, lado a lado com sua maldita recusa em suportar
com leveza a vulnerabilidade. Todo amor empenha-se em subjugar, mas quando triunfa encontra a
derradeira derrota. Todo amor luta para enterrar as fontes de sua precariedade e incerteza, mas, se obtém
êxito, logo começa a se enfraquecer - e definhar. Eros é possuído pelo fantasma de Tanatos, que
nenhum encantamento mágico é capaz de exorcizar. A questão não é a precocidade de Eros, e não há
instrução ou expedientes autodidáticos que possam libertá-lo de sua mórbida - suicida - inclinação.
O desafio, a atração e a sedução do Outro tornam toda distância, ainda que reduzida e minúscula,
insuportavelmente grande. A abertura tem a aparência de um precipício. Fusão e subjugação parecem ser
as únicas curas para o tormento. E não há senão uma tênue fronteira, à qual facilmente se fecham os
olhos, entre a carícia suave e gentil e a garra que aperta, implacável. Eros não pode ser fiel a si mesmo
sem praticar a primeira, mas não pode praticá-la sem correr o risco da segunda. Eros move a mão que se
estende na direção do outro - mas mãos que acariciam também podem prender e esmagar.
Não importa o que você aprendeu sobre amor e amar, sua sabedoria só pode vir, tal como o Messias
de Kafka, um dia depois de sua chegada.
Enquanto vive, o amor paira à beira do malogro. Dissolve seu passado à medida que prossegue.
Não deixa trincheiras onde possa buscar abrigo em caso de emergência. E não sabe o que está pela frente
e o que o futuro pode trazer. Nunca terá confiança suficiente para dispersar as nuvens e abafar a
ansiedade. O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável.
O amor pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que ele encobre essa
verdade com a comoção do desejo e do excitamento. Faz sentido pensar na diferença entre amor e morte
como na que existe entre atração e repulsa. Pensando bem, contudo, não se pode ter tanta certeza disso.
As promessas do amor são, via de regra, menos ambíguas do que suas dádivas. Assim, a tentação de
apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar. E o fascínio da procura de uma
rosa sem espinhos nunca está muito longe, e é sempre difícil de resistir.
Desejo e amor. Irmãos. Por vezes gêmeos; nunca, porém, gêmeos idênticos (univitelinos).
Desejo é vontade de consumir. Absorver, devorar, ingerir e digerir - aniquilar. O desejo não
precisa ser instigado por nada mais do que a presença da alteridade. Essa presença é desde sempre uma
afronta e uma humilhação. O desejo é o ímpeto de vingar a afronta e evitar a humilhação. É uma
compulsão a preencher a lacuna que separa da alteridade, na medida em que esta acena e repele, em que
seduz com a promessa do inexplorado e irrita por sua obstinada e evasiva diferença. O desejo é um
impulso que incita a despir a alteridade dessa diferença; portanto, a desempoderá-la [disempower].
Provar, explorar, tornar familiar e domesticar. Disso a alteridade emergiria com o ferrão da tentação
arrancado e partido - quer dizer, se sobrevivesse ao tratamento. Mas são grandes as chances de que,
nesse processo, suas sobras indigestas caiam do reino dos produtos de consumo para o dos refugos.
Os produtos de consumo atraem, os refugos repelem. Depois do desejo vem a remoção dos
refugos. É, ao que parece, como forçar o que é estranho a abandonar a alteridade e desfazer-se dacarapaça dissecada que se congela na alegria da satisfação, pronta a dissolver-se tão logo se conclua a
tarefa. Em sua essência, o desejo é um impulso de destruição. E, embora de forma oblíqua, de
autodestruição: o desejo é contaminado, desde o seu nascimento, pela vontade de morrer. Esse é, porém,
seu segredo mais bem guardado - sobretudo de si mesmo.
O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado. Um impulso
centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que "está lá
fora". Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa, como no caso do desejo. Amar é
contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o eu é, pedaço
por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz
respeito a auto-sobrevivência através da alteridade. E assim o amor significa um estímulo a proteger,
alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago e ao mimo, ou a - ciumentamente - guardar, cercar,
encarcerar. Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a ordem. Mas também pode
significar expropriar e assumir a responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício resultando em
exaltação. O amor é irmão xifópago da sede de poder -nenhum dos dois sobreviveria à separação.
Se o desejo quer consumir, o amor quer possuir. Enquanto a realização do desejo coincide com a
aniquilação de seu objeto, o amor cresce com a aquisição deste e se realiza na sua durabilidade. Se o
desejo se autodestrói, o amor se autoperpetua.
Tal como o desejo, o amor é uma ameaça ao seu objeto. O desejo destrói seu objeto, destruindo a
si mesmo nesse processo; a rede protetora carinhosamente tecida pelo amor em torno de seu objeto
escraviza esse objeto. O amor aprisiona e coloca o detido sob custódia. Ele prende para proteger o
prisioneiro.
Desejo e amor encontram-se em campos opostos. O amor é uma rede lançada sobre a eternidade, o
desejo é um estratagema para livrar-se da faina de tecer redes. Fiéis a sua natureza, o amor se empenharia
em perpetuar o desejo, enquanto este se esquivaria aos grilhões do amor.
"Seus olhos se cruzam na sala lotada; o brilho da atração está lá. Você conversa, dança, ri,
compartilha um drinque ou uma piada, e quando se dá conta um dos dois pergunta: 'Na sua casa
ou na minha?' Nenhum dos dois está a fim de nada sério, mas de algum modo uma noite pode virar
uma semana, depois um mês, um ano ou mais" - observa Catherine Jarvie (no Guardian Weeken).
Esse resultado inesperado do lampejo do desejo e da noite de sexo destinada a aplacá-lo é, na
expressão de Jarvie, "um meio-termo emocional entre a liberdade do encontro e a seriedade de um
relacionamento significativo" (embora a "seriedade" como lembra ela a seus leitores, não impeça que um
"relacionamento significativo" termine em "dificuldades e amarguras" quando um dos parceiros "mantém
o compromisso de levar a relação adiante enquanto o outro está ávido por caçar em outras pastagens"). As
soluções de meio-termo - como todos os outros arranjos "até segunda ordem" num ambiente fluido no
qual amarrar o futuro é algo tão irrealizável quanto apreciado - não são necessariamente ruins (na
opinião tanto de Jarvie quanto da dra. Valerie Lamont, psicóloga e especialista por ela citada). Mas
quando "você se comprometer, mesmo que sem entusiasmo", "lembre-se de que pode estar fechando as
portas a outras possibilidades românticas" (ou seja, renunciando ao direito de "caçar em novas pastagens",
ao menos até que o parceiro reivindique esse direito antes de você).
Uma observação brilhante, uma avaliação sóbria: você está numa situação de escolha obrigatória.
Desejo e amor são e/ou.
Mais observações brilhantes: seus olhos se cruzam na sala, e quando você se dá conta... O desejo
de brincar juntos na cama se insinua do nada, e não precisa bater muito à porta para que o deixem entrar.
Talvez de modo inusual num mundo obcecado pela segurança, esse tipo de porta tem poucas fechaduras,
se é que chega a tê-las. Nada de circuito fechado de televisão para examinar detidamente os intrusos e
distinguir os gatunos dos visitantes de boa-fé. Verificar a compatibilidade dos signos (como nos
comerciais televisivos de uma marca de telefones celulares) pode resolver o problema.
Dizer "desejo" talvez seja demais. É como num shopping: os consumidores hoje não compram
para satisfazer um desejo, como observou Harvie Ferguson - compram por impulso. Semear, cultivar e
alimentar o desejo leva tempo (um tempo insuportavelmente prolongado para os padrões de uma cultura que tem pavor em postergar, preferindo a "satisfação instantânea"). O desejo precisa de tempo para
germinar, crescer e amadurecer. Numa época em que o "longo prazo" é cada vez mais curto, ainda assim
a velocidade de maturação do desejo resiste de modo obstinado à aceleração. O tempo necessário para o
investimento no cultivo do desejo dar lucros parece cada vez mais longo - irritante e insustentavelmente
longo.
Os administradores de shopping centers não têm sido agraciados com esse tempo por seus
acionistas, mas tampouco desejam que as decisões de compra sejam tomadas por motivos nascidos e
amadurecidos ao acaso, nem deixar seu cultivo nas mãos leigas dos consumidores. Todos os motivos
necessários para fazê-los comprar devem nascer instantaneamente, enquanto passeiam pelo shopping.
Também podem ter morte instantânea (por suicídio assistido, na maioria dos casos), uma vez concluída a
tarefa. Sua expectativa de vida não precisa ser maior do que o tempo gasto pelos consumidores vagando
entre a entrada e a saída do shopping.
Nos dias de hoje, os shopping centers tendem a ser planejados tendo-se em mente o súbito
despertar e a rápida extinção dos impulsos, e não a incômoda e prolongada criação e maturação dos
desejos. O único desejo que pode (e deve) ser implantado por meio da visita a um shopping é o de repetir,
vezes e vezes seguidas, o momento estimulante de "abandonar-se aos impulsos" e permitir que estes
comandem o espetáculo sem que haja um cenário predefinido. A curta expectativa de vida é o trunfo dos
impulsos, dando-lhes uma vantagem sobre os desejos. Render-se aos impulsos, ao contrário de seguir um
desejo, é algo que se sabe ser transitório, mantendo-se a esperança de que não deixará conseqüências
duradouras capazes de impedir novos momentos de êxtase prazeroso. No caso das parcerias, e
particularmente das parcerias sexuais, seguir os impulsos em vez dos desejos significa deixar as portas escancaradas
"a novas possibilidades românticas" que, como sugere a ora. Lamont e pondera Catherine
Jarvie, podem ser "mais satisfatórias e completas".
Com a ação por impulso profundamente incutida na conduta cotidiana pelos poderes supremos do
mercado de consumo, seguir um desejo é como caminhar constrangido, de modo desastrado e
desconfortável, na direção do compromisso amoroso.
Em sua versão ortodoxa, o desejo precisa ser cultivado e preparado, o que envolve cuidados
demorados, a árdua barganha com conseqüências inevitáveis, algumas escolhas difíceis e concessões
dolorosas. Mas, pior que tudo, impõe que se retarde a satisfação, sem dúvida o sacrifício mais detestado
em nosso mundo de velocidade e aceleração. Em sua reencarnação radical, aguçada e sobretudo compacta
como impulso, o desejo perdeu a maior parte de tais atributos protelatórios, enquanto focalizava mais de
perto o seu alvo. Tal como nos comerciais que anunciavam o surgimento dos cartões de crédito, agora não
precisamos esperar para satisfazer nossos desejos.
Guiada pelo impulso ("seus olhos se cruzam na sala lotada"), a parceria segue o padrão do
shopping e não exige mais que as habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal
como outros bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores
treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma só vez, "sem preconceito" É, antes de mais
nada, eminentemente descartável.
Consideradas defeituosas ou não "plenamente satisfatórias", as mercadorias podem ser trocadas
por outras, as quais se espera que agradem mais, mesmo que não haja um serviço de atendimento ao
cliente e que a transação não inclua a garantia de devolução do dinheiro. Mas, ainda que cumpram o que
delas se espera, não se imagina que permaneçam em uso por muito tempo. Afinal, automóveis,
computadores ou telefones celulares perfeitamente usáveis, em bom estado e em condições de
funcionamento satisfatórias são considerados, sem remorso, como um monte de lixo no instante em que
"novas e aperfeiçoadas versões" aparecem nas lojas e se tornam o assunto do momento. Alguma razão
para que as parcerias sejam consideradas uma exceção à regra?
As promessas de compromisso, escreve Adrienne Burgess, "são irrelevantes a longo prazo"4
.
E ela prossegue explicando: "O compromisso é uma conseqüência aleatória de outras coisas:
nosso grau de satisfação com o relacionamento; se nós vemos uma alternativa viável para ele; e se levá-lo
adiante nos causaria uma perda importante em matéria de investimentos (tempo, dinheiro, propriedades em comum, filhos)." Mas, segundo Caryl Rusbult, "especialista em relacionamentos" da Universidade
da Carolina do Norte, "esses fatores têm altas e baixas, da mesma forma que os sentimentos de
compromisso'.
Um dilema, de fato: você reluta em cortar seus gastos, mas abomina a perspectiva de perder ainda
mais dinheiro na tentativa de recuperá-los. Um relacionamento, como lhe dirá o especialista, é um
investimento como todos os outros: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que poderia empregar para
outros fins, mas não empregou, esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também que aquilo que
perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de alguma forma, sendo-lhe devolvido - com lucro. Você
compra ações e as mantém enquanto seu valor promete crescer, e as vende prontamente quando os lucros
começam a cair ou outras ações acenam com um rendimento maior (o truque é não deixar passar o
momento em que isso ocorre). Se você investe numa relação, o lucro esperado é, em primeiro lugar e
acima de tudo, a segurança - em muitos sentidos: a proximidade da mão amiga quando você mais
precisa dela, o socorro na aflição, a companhia na solidão, o apoio para sair de uma dificuldade, o consolo
na derrota e o aplauso na vitória; e também a gratificação que nos toma imediatamente quando nos
livramos de uma necessidade. Mas esteja alerta: quando se entra num relacionamento, as promessas de
compromisso são "irrelevantes a longo prazo".
É claro. Relacionamentos são investimentos como quaisquer outros, mas será que alguma vez lhe
ocorreria fazer juras de lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para sempre, nos bons e
maus momentos, na riqueza e na pobreza, "até que a morte nos separe"? Nunca olhar para os lados, onde
(quem sabe?) prêmios maiores podem estar acenando?
A primeira coisa que os bons acionistas (prestem atenção: os acionistas só detêm as ações, e é
possível desfazer-se daquilo que se detém) fazem de manhã é abrir os jornais nas páginas sobre mercado
de capitais para saber se é hora de manter suas ações ou desfazer-se delas. É assim também com outro
tipo de ações, os relacionamentos. Só que nesse caso não existe um mercado em operação e ninguém fará
por você o trabalho de ponderar as probabilidades e avaliar as chances (a menos que você contrate um
especialista, da mesma forma que contrata um consultor financeiro ou um contador habilitado, embora no
caso dos relacionamentos haja uma infinidade de programas de entrevistas e "dramas da vida real"
tentando ocupar esse espaço). E assim você tem que seguir, dia após dia, por conta própria. Se cometer
um erro, não terá direito ao conforto de pôr a culpa numa informação equivocada. Precisa estar em alerta
constante. Se cochilar ou reduzir a vigilância, problema seu. "Estar num relacionamento" significa muita
dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e
verdadeiramente seguro daquilo que faz - ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso.
Parece que esse dilema não tem uma boa solução. Pior ainda, que ele está impregnado de um
paradoxo do tipo mais desagradável: não apenas a relação falha em termos da necessidade que deve-ria (e
esperávamos que pudesse) cumprir, mas torna essa necessidade ainda mais afrontosa e exasperante. Você
busca o relacionamento na expectativa de mitigar a insegurança que infestou sua solidão; mas o
tratamento só fez expandir os sintomas, e agora você talvez se sinta mais inseguro do que antes, ainda que
essa "nova e agravada" insegurança provenha de outras paragens. Se você pensava que os juros de seu
investimento em companhia seriam pagos na moeda forte da segurança, parece que sua iniciativa se
baseou em falsos pressupostos.
Isso significa problemas e nada mais que problemas - mas não todo o problema. Comprometerse
com um relacionamento, "irrelevante a longo prazo" (fato de que ambos os lados estão cientes!) é uma
faca de dois gumes. Faz com que manter ou confiscar o investimento seja uma questão de cálculo e
decisão. Mas não há motivo para supor que seu parceiro ou parceira não deseje, se for o caso, exercitar
uma escolha semelhante, e que não esteja livre para fazê-lo se e quando desejar. Essa consciência
aumenta ainda mais sua incerteza - e a parte acrescentada é a mais difícil de suportar. Ao contrário de
uma escolha pessoal do tipo "pegar ou largar", não está em seu poder evitar que o parceiro ou parceira
prefira sair do negócio. Há muito pouco que você possa fazer para mudar essa decisão a seu favor. Para o
parceiro, você é a ação a ser vendida ou o prejuízo a ser eliminado - e ninguém consulta as ações antes
de devolvê-las ao mercado, nem os prejuízos antes de cortá-los.
Por todos os motivos, a visão do relacionamento como uma transação comercial não é a cura para
a insônia. Investir no relacionamento é inseguro e tende a continuar sendo, mesmo que você deseje o
contrário: é uma dor de cabeça, não um remédio. Na medida em que os relacionamentos são vistos como
investimentos, como garantias de segurança e solução de seus problemas, eles parecem um jogo de cara-
15
ou-coroa. A solidão produz insegurança - mas o relacionamento não parece fazer outra coisa. Numa
relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à
ansiedade.
Se não há uma boa solução para um dilema, se nenhuma medida aparentemente sensata e efetiva
consegue fazer com que a saída pareça ao menos um pouco mais próxima, as pessoas tendem a se
comportar de modo irracional, aumentando o problema e tornando ainda menos plausível resolvê-
lo.
Christopher Clulow, do Instituto Tavistock de Estudos Matrimoniais, outro especialista citado por
Adrienne Burges, conclui: "Quando se sentem inseguros, os amantes tendem a se portar de modo nãoconstrutivo,
seja tentando agradar ou controlar, talvez até agredindo fisicamente - o que provavelmente
afastará o outro ainda mais." Quando a insegurança sobe a bordo, perde-se a confiança, a ponderação e a
estabilidade da navegação. À deriva, a frágil balsa do relacionamento oscila entre as duas rochas nas
quais muitas parcerias esbarram: a submissão e o poder absolutos, a aceitação humilde e a conquista
arrogante, destruindo a própria autonomia e sufocando a do parceiro. Chocar-se contra uma dessas rochas
afundaria até mesmo uma boa embarcação com tripulação qualificada - o que dizer de uma balsa com
um marinheiro inexperiente que, criado na era dos acessórios, nunca teve a oportunidade de aprender a
arte dos reparos? Nenhum marinheiro atualizado perderia tempo consertando uma peça sem condições
para a navegação, preferindo trocá-la por outra sobressalente. Mas na balsa do relacionamento não há
peças sobressalentes.
O fracasso no relacionamento é muito freqüentemente um fracasso na comunicação.
Como observou Knud Løgstrup - inicialmente o insinuante evangelista da paróquia de Funen,
mais tarde o estridente filósofo da ética da Universidade de Aarhus -, há duas "perversões divergentes" à
espreita do comunicador imprevidente ou descuidado 5
. Uma delas é "o tipo de associação que, devido à
preguiça, ao medo ou a uma propensão à acomodação no relacionamento, consiste simplesmente em
tentar agradar um ao outro enquanto se continua fugindo do problema. Com a possível exceção de uma
causa comum contra uma terceira pessoa, não há nada que promova mais uma relação confortável do que
a louvação mútua". Outra perversão consiste em "nosso desejo de mudar os outros. Temos opiniões
definidas sobre como fazer as coisas e sobre como os outros deveriam ser. Essas opiniões carecem de
critério, pois, quanto mais definitivas, mais necessário se torna que evitemos ser confundidos por uma
compreensão excessiva daqueles que devem ser mudados".
O problema é que essas perversões são, muito freqüentemente, filhas do amor. A primeira delas
pode resultar do desejo de paz e conforto, como está implícito na afirmação de Løgstrup. Mas também
pode ser, e com freqüência é, o produto do respeito amoroso pelo outro: eu amo você, e assim permito
que você seja como é e insiste em ser, apesar das dúvidas que eu possa ter quanto à sensatez de sua
escolha. Não importa o mal que sua obstinação possa me causar: não ousarei contradizer você, muito
menos pressionar para que você escolha entre a sua liberdade e o meu amor. Você pode contar com a
minha aprovação, aconteça o que acontecer... E já que o amor não pode deixar de ser possessivo, minha
generosidade amorosa é baseada na esperança: aquele cheque em branco é um presente do meu amor, um
presente precioso que não se encontra em outros lugares. Meu amor é o refúgio tranqüilo que você
procurava e de que precisava mesmo que não procurasse. Agora você pode sossegar e suspender a
busca...
Eis aí a possessividade amorosa - mas uma possessividade que procura realizar-se por meio do
autocontrole.
A segunda perversão vem de se deixar a possessividade amorosa correr livre e raivosa. O amor é
uma das respostas paliativas a essa bênção/maldição da individualidade humana, que tem como um de
seus muitos atributos a solidão que tende a advir da (como insinua Erich Fromm 6
, seres humanos de
todas as idades e culturas são confrontados com a solução de uma única e mesma questão: como superar a
separação, como alcançar a união, como transcender a vida individual e encontrar a "harmonia com o
todo"). Todo amor é matizado pelo impulso antropofágico. Todos os amantes desejam suavizar, extirpar e expurgar a exasperadora e irritante alteridade que os separa daqueles a que amam. Separar-se do ser
amado é o maior medo do amante, e muitos fariam qualquer coisa para se livrarem de uma vez por todas
do espectro da despedida. Que melhor maneira de atingir esse objetivo do que transformar o amado numa
parte inseparável do amante? Aonde eu for você também vai; o que eu faço você também faz; o que eu
aceito você também aceita; o que me ofende também ofende a você. Se você não é nem pode ser meu
gêmeo siamês, seja o meu clone!
A segunda perversão tem também outra raiz, fincada na adoração que o amante tem pelo ente
amado. Em sua introdução a uma coletânea de textos intitulada Philosophies of love 7
, David L. Norton e
Mary E. Kille contam a história de um homem que convidou alguns amigos para um jantar em que estes
conheceriam "a perfeita encarnação da Beleza, Virtude, Sabedoria e Graça - em suma, a mais adorável
mulher do mundo": Mais tarde no mesmo dia, à mesa do restaurante, os convidados "se esforçaram para
esconder seu assombro": seria aquela "a criatura que superava Vênus, Helena e Lady Hamilton em
beleza"? Por vezes é difícil separar a adoração do ser amado da auto-adoração. Pode-se observar um traço
de um ego expansivo e no entanto inseguro, desesperado por confirmar seus méritos incertos por meio de
seu reflexo no espelho, ou, melhor ainda, num retrato lisonjeiro, cuidadosamente retocado. Não é verdade
que uma parte de meu singular valor foi repassada para a pessoa que eu (lembrem-se: eu, a minha pessoa,
exercendo a minha vontade e o meu arbítrio soberanos) escolhi - que recolhi na multidão de anônimos e
comuns para ser minha, somente minha, companheira? No brilho ofuscante da pessoa escolhida, minha
própria incandescência encontra seu reflexo resplandecente. Ele aumenta, confirma e endossa a minha
glória, levando consigo, aonde quer que vá, notícias e provas dela.
Mas será que posso estar seguro? Eu estaria, caso não houvesse dúvidas agitando-se naquela
escura masmorra do inesperado onde as tranquei na vã esperança de nunca mais ouvir falar nelas.
Aflições, apreensões, receios de que a virtude possa ser imperfeita, a glória fantasiosa... de que a distância
entre eu tal como sou e o verdadeiro eu que anseia por vir à tona, mas ainda não conseguiu, precisa ser
negociada - e isso é uma exigência exorbitante.
Meu ser amado poderia ser um quadro no qual minha perfeição fosse retratada em toda a sua
magnificência e esplendor - mas será que as nódoas e manchas também não apareceriam? Para limpá-las
- ou escondê-las, caso sejam pegajosas demais para serem apagadas -, é necessário lavar e preparar a
tela antes de se iniciar o trabalho de pintura. E depois observar cuidadosamente para garantir que traços
das antigas imperfeições não venham a surgir de seu esconderijo debaixo de sucessivas camadas de tinta.
Cada momento de sossego é prematuro - restaurar e pintar de novo, sem folgas...
Esse esforço incessante é também um trabalho de amor. O amor explode de energia criativa, que
inúmeras vezes é liberada numa explosão ou fluxo contínuo de destruição.
Nesse processo, o ser amado transformou-se numa tela - em branco, de preferência. Suas cores
naturais empalideceram, de modo a não se chocar com a figura do pintor, nem desfigurá-la. O pintor não
precisa indagar da tela como esta se sente, lá embaixo, sob toda aquela tinta. As telas de lona ou de linho
não apresentam relatórios voluntariamente - embora as telas humanas por vezes o façam.
Pode ser amor num lampejo, amor à primeira vista; mas o tempo, longo ou curto, deve transcorrer
entre a pergunta e a resposta, a proposta e sua aceitação.
O tempo transcorrido nunca é tão curto a ponto de permitir que aquele que perguntou e aquele que
respondeu permaneçam, no momento em que chega a resposta, os mesmos seres que eram quando o
relógio foi posto para funcionar. Como diz Franz Rosenzweig, "a resposta é dada por uma pessoa
inevitavelmente diferente daquela a quem foi feita a pergunta, e ela é dada a alguém que mudou desde
que perguntou. É impossível saber a profundidade dessa mudança" 8
. Fazer a pergunta, esperar a resposta,
ser indagado, esforçar-se para responder - isso é que fez a diferença.
Ambos os parceiros sabiam que a mudança estava ocorrendo e lhe deram boas-vindas.
Mergulharam de cabeça em águas inexploradas. A oportunidade de se abrirem à aventura do
desconhecido e do imprevisível era a maior das seduções do amor. "O primeiro alívio da tensão no jogo
encantado do amor geralmente vem quando os amantes se chamam um ao outro pelo primeiro nome. Esse
ato se coloca como a solitária garantia de que os passados dos dois indivíduos serão incorporados aos seus presentes." E - permitam-me acrescentar - a presteza em incorporar futuros compartilhados aos
presentes individuais parcialmente compartilhados, parcialmente separados. O futuro que se segue a essa
incorporação diferirá, forçosamente, do presente, tal como este difere do passado. João será João e Maria,
Maria será Maria e João.
Odo Marquard falou, não necessariamente com ironia, do parentesco etimológico entre zwei e
Zweifel ("dois" e "dúvida") e insinuou que o elo entre essas palavras vai além da simples aliteração. Onde
há dois não há certeza. E quando o outro é reconhecido como um "segundo" plenamente independente,
soberano - e não uma simples extensão, eco, ferramenta ou empregado trabalhando para mim, o
primeiro - a incerteza é reconhecida e aceita. Ser duplo significa consentir em indeterminar o futuro.
Franz Kafka observou que somos duplamente distintos de Deus. Tendo comido da árvore do bem
e do mal, nós nos distinguimos Dele, enquanto o fato de não termos comido da árvore da vida O distingue
de nós. Ele (a eternidade, na qual se abraçam todos os seres e seus feitos, em que tudo que pode ser é, e
tudo que pode acontecer acontece) está próximo de nós. Fadado a permanecer secreto - eternamente
além de nossa compreensão. Mas sabemos disso, o que não nos permite ter sossego. Desde a fracassada
tentativa de erigir a Torre de Babel, não podemos deixar de tentar e errar e fracassar e tentar novamente.
Tentar o quê? Rejeitar essa distinção, rejeitara negação do direito aos frutos da árvore da vida.
Prosseguir tentando e fracassar nas tentativas é humano, demasiadamente humano. Se a alteridade é,
segundo Levinas, o derradeiro mistério, o absolutamente desconhecido e o totalmente impenetrável, isso
não pode ser uma ofensa e um desafio - precisamente por ser divino: barrando o acesso, negando o
ingresso, inatingível e eternamente além do nosso alcance. Mas (como Rozenberg insiste em nos lembrar)
"o ilimitado não pode ser alcançado por meio da organização... As coisas mais elevadas não podem ser
planejadas. Imediatez é tudo para elas".
Imediatez para quê? "O discurso é amarrado ao tempo e por ele nutrido... Não sabe de antemão
onde vai terminar. Segue o exemplo de outros. De fato, vive em virtude da vida de outro... Na conversa
real, alguma coisa acontece." Rosenzwelg explica quem é esse "outro", por cuja vida vive o discurso de
modo a que alguma coisa possa acontecer na conversa: esse outro "é sempre um alguém bem definido"
que não tem "apenas ouvidos, como 'todo o mundo, mas também uma boca".
É exatamente isso que faz o amor: destaca um outro de "todo mundo" e por meio desse ato
remodela "um" outro transformando-o num "alguém bem definido, dotado de uma boca que se pode ouvir
e com quem é possível conversar de modo a que alguma coisa seja capaz de acontecer.
E o que seria essa "alguma coisa"? Amar significa manter a resposta pendente ou evitar fazer a
pergunta. Transformar um outro num alguém definido significa tornar indefinido o futuro. Significa
concordar com a indefinibilidade do futuro. Concordar com uma vida vivida, da concepção ao
desaparecimento, no único local reservado aos seres humanos: aquela vaga extensão entre a finitude de
seus feitos e a infinidade de seus objetivos e conseqüências.
"As relações de bolso" explica Catherine Jarvie, comentando as opiniões de Gillian Walton, do
Guia Matrimonial de Londres 9
, são assim chamadas porque você as guarda no bolso de modo a
poder lançar mão delas quando for preciso.
Uma relação de bolso bem sucedida, diz Jarvie, é doce e de curta duração. Podemos supor que seja
doce porque tem curta duração, e que sua doçura se abrigue precisamente naquela reconfortante
consciência de que você não precisa sair do seu caminho nem se desdobrar para mantê-la intacta por um
tempo maior. De fato, você não precisa fazer nada para aproveitá-la. Uma "relação de bolso" é a
encarnação da instantaneidade e da disponibilidade.
Não que o seu relacionamento vá adquirir essas assombrosas qualidades sem que algumas
condições tenham sido previamente atendidas. Observe que é você quem deve atendê-las - outro ponto
favorável a um relacionamento "de bolso", sem dúvida, já que é você e só você que está no controle, e
nele permanece por toda a curta vida dessa relação.
Primeira condição: deve-se entrar no relacionamento plenamente consciente e totalmente sóbrio.
Lembre-se: nada de "amor à primeira vista" aqui. Nada de apaixonar-se... Nada daquela súbita torrente de
emoções que nos deixa sem fôlego e com o coração aos pulos. Nem as emoções que chamamos de "amor"
nem aquelas que sobriamente descrevemos como "desejo". Não se deixe dominar nem arrebatar, e acima
de tudo não deixe que lhe arranquem das mãos a calculadora. E não se permita tomar o motivo da relação em que você está para entrar por aquilo que ele não é nem deve ser. A conveniência é a única coisa que
conta, e isso é algo para uma cabeça fria, não para um coração quente (muito menos superaquecido).
Quanto menor a hipoteca, menos inseguro você vai se sentir quando for exposto às flutuações do mercado
imobiliário futuro; quanto menos investir n o relacionamento, menos inseguro vai se sentir quando for
exposto às flutuações de suas emoções futuras.
Segunda condição: mantenha-o do jeito que é. Lembre-se de que não é preciso muito tempo para
que a conveniência se converta no seu oposto. Assim, não deixe o relacionamento escapar à supervisão do
chefe, não lhe permita desenvolver sua lógica própria e, especialmente, adquirir direitos de propriedade
- não deixe que caia do bolso, que é seu lugar. Fique alerta. Não durma no ponto. Observe atentamente
até mesmo as menores mudanças naquilo que Jarvie chama de "subcorrentes emocionais" (obviamente, as
emoções tendem a se transformar em "subcorrentes" quando deixadas livres das amarras do cálculo). Se
notar alguma coisa que você não negociou e para a qual não liga, saiba que "é hora de seguir adiante". É o
tráfego que sustenta todo o prazer.
Mantenha o bolso livre e preparado. Logo vai precisar pôr alguma coisa nele e - cruze os dedos
- você vai conseguir...
A seção "Espírito dos relacionamentos" do Guardian Weekend vale ser lida toda semana, mas é
melhor ainda ler várias edições de uma vez.
A cada semana ela oferece conselhos sobre como proceder diante de um "problema" que, cedo ou
tarde, a maioria dos homens e mulheres (principalmente leitores do Guardian) deve -mais propriamente
espera - enfrentar. A cada semana um problema; mas depois de uma seqüência de semanas o leitor
dedicado e atento pode obter bem mais do que algumas habilidades específicas em matéria de política de
vida, que podem ser úteis em situações específicas que surgem quando se lida com problemas específicos;
habilidades que, uma vez adquiridas e combinadas, podem ajudar a criar os tipos de situações para cujo
manejo foram concebidas, assim como a identificar e localizar os problemas para cujo enfrentamento
foram planejadas. Um leitor regular e dedicado que seja abençoado com uma capacidade de memorização
por um tempo maior do que uma semana pode desenhar e preencher um mapa de vida completo no qual
os "problemas" tendam a aflorar, registrar um inventário total desses problemas e formar uma opinião
sobre sua relativa freqüência ou raridade. Num mundo em que a seriedade de algo é representada apenas
por números, e portanto só pode ser apreendida dessa maneira (a qualidade de um sucesso musical pelo
número de discos vendidos, de um evento ou performance públicos pelo número de espectadores de
televisão, de uma figura pública pelo número de pessoas presentes ao seu enterro, de intelectuais na
opinião do público pelo número de citações e referências), a elevada freqüência com que alguns
"problemas" retornam à coluna, semana após semana após semana, é a prova de sua relevância para uma
vida de sucesso, e assim da importância das habilidades concebidas para enfrentá-los.
Desse modo, vendo-se os relacionamentos pelo prisma da coluna "Espírito dos relacionamentos",
o que um leitor fiel pode aprender sobre a importância relativa das coisas e das técnicas para lidar com
elas?
O leitor pode ter uma série de dicas úteis sobre os lugares onde podem ser encontrados, em
quantidades maiores que o usual, parceiros para possíveis relacionamentos, assim como sobre as situações
em que é mais provável que estes possam ser convencidos ou persuadidos a assumir esse papel. E ele ou
ela deve saber que iniciar um relacionamento é um "problema" - ou seja, apresenta uma dificuldade que
produz confusão e ocasiona tensões desagradáveis que, para serem enfrentadas e afastadas, tornam
necessária certa dose de conhecimento e know-how. Isso pode ser aprendido -sem muito esforço, apenas
seguindo-se regularmente, semana após semana, a versão de espírito do relacionamento do Guardian
Weekend.
Essa não será, contudo, a principal versão passível de se capilarizar e enraizar na visão de vida e
de política de vida do leitor regular. A arte de romper o relacionamento e dele emergir incólume - com
poucas (se é que alguma) feridas infeccionadas que exijam muito tempo para cicatrizar e muito cuidado
para se evitar os "danos colaterais" (tais como o afastamento de amigos, ou o surgimento de círculos nos
quais não se é bem-vindo ou em que se preferiria não entrar) - bate de longe a arte de constituir
relacionamentos, pela pura freqüência com que se expressa.
Se Richard Baxter, o inflamado profeta puritano, fosse em vez disso o profeta da estratégia
existencial adequada para a líquida vida moderna, ele provavelmente diria de tais relacionamentos o que
19
disse sobre a aquisição de bens externos e o cuidado com eles - que "devem apenas cair sobre os
ombros como um manto leve que pode ser posto de lado a qualquer momento", e que se deve ter o maior
cuidado para que não se transformem, inadvertida e sub-repticiamente, em "caixas de aço".. Não se levam
riquezas para o túmulo, advertia o santo-profeta Baxter seu rebanho, reforçando o senso comum daqueles
que viviam suas vidas como servos do além-túmulo. Não se levam relações para o próximo capítulo,
advertiria o especialista seus clientes, fazendo coro às premonições transformadas em certezas de pessoas,
ensinadas pela experiência, que tiveram as vidas fatiadas em episódios e que vivem como servas dos
episódios futuros. É provável que seu relacionamento se rompa bem antes do fim do capítulo. Mas se isso
não acontecer dificilmente haverá outro. Com certeza, não um capítulo a ser saboreado e desfrutado.
O surpreendente sucesso de EastEnders*
transmite uma mensagem aparentemente diferente...
O encantado/viciado público cresce, da mesma forma que a autoconfiança dos roteiristas,
produtores e atores. Essa telenovela parece ter atingido um público-alvo que outras desprezaram ou
perderam, e continuam perdendo. Qual o segredo?
A maioria dos relacionamentos em que os personagens de EastEnders se envolvem parece tão
frágil quanto qualquer outro que os espectadores conhecem a partir de suas próprias frustrações ou dos
relatos de advertência de outras pessoas (incluindo as mensagens que aparecem semanalmente na coluna
"Espírito dos relacionamentos"). Dificilmente algum dos vínculos estabelecidos pelos personagens de
EastEnders consegue sobreviver ao fluxo regular dos episódios por mais que alguns meses - por vezes
duram apenas umas poucas semanas - e, entre os relacionamentos fracassados, são poucos e bem
espaçados os que terminam por "causas naturais" Para os espectadores dotados de melhor memória,
Albert Square, ou simplesmente a Praça, deve ser vista como o túmulo dos relacionamentos humanos...
Envolver-se em relacionamentos como os de EastEnders não é absolutamente fácil. Exige esforço
e habilidades consideráveis, que muitos personagens infelizes não possuem e que são características
inatas de apenas uns poucos (embora algumas vezes também se faça necessária certa dose de sorte,
distribuída esparsamente e ao acaso). Os problemas não terminam quando os casais passam a viver juntos.
Os quartos compartilhados podem ser um local de alegria e diversão, mas raramente de segurança e
sossego. Alguns deles são palcos de dramas cruéis, cheios de escaramuças verbais que resultam em brigas
aos socos e (se o casal não se separa antes) amplas hostilidades com desfecho semelhante ao de um Cães
de aluguel. Belas cerimônias de casamento não ajudam; festas só para homens ou só para mulheres não
põem fim ao Desconhecido, repleto de riscos e propenso a acidentes, e os aniversários de núpcias não são
novos inícios que estimulem os casais a fazer "algo totalmente diferente", apenas pequenos intervalos
num drama sem cenários nem textos definidos.
A parceria é somente uma coalizão de "interesses confluentes" e, no mundo fluido de EastEnders,
as pessoas vêm e vão, as oportunidades batem à porta e desaparecem novamente logo após serem
convidados a entrar, as fortunas aumentam e diminuem, e as coligações tendem a ser flutuantes, frágeis e
flexíveis. As pessoas procuram parceiros e buscam "envolver-se em relacionamentos" a fim de escapar à
aflição da fragilidade, só para descobrir que ela se torna ainda mais aflitiva e dolorosa do que antes. O que
se propunha/ansiava/esperava ser um abrigo (talvez o abrigo) contra a fragilidade revela-se sempre como
a sua estufa...
Milhões de fãs e espectadores habituais de EastEnders assistem e balançam a cabeça em
concordância. Sim, sabemos disso tudo, já vimos isso tudo, já vivemos isso tudo. O que aprendemos com
a amarga experiência é que essa situação de ter sido abandonado à própria sorte, sem ter com quem contar
quando necessário, quem nos console e nos dê a mão, é terrível e assustadora, mas nunca se está mais só e
abandonado do que quando se luta para ter a certeza de que agora existe de fato alguém com quem se
pode contar, amanhã e depois, para fazer tudo isso se - quando - a roda da fortuna começar a girar em
outra direção. É impossível predizer os resultados de nossa luta - e a luta em si cobra o seu preço.
Diariamente se exigem sacrifícios. É difícil que se passe um dia sem uma desavença ou troca de sopapos.
Esperar até que a deusa escondida (como você deseja ardentemente acreditar e tão apaixonadamente acredita) bem lá dentro do parceiro consiga romper a couraça maligna e enfim se revele pode levar
mais tempo do que você é capaz de agüentar. E enquanto você espera há muita dor para sentir, lágrimas
para verter e sangue para derramar...
Os episódios de EastEnders são repetições, três vezes por semana, daquilo que é o nosso
conhecimento do dia-a-dia. Reafirmações regulares e confiáveis para a pessoa insegura: sim, esta é sua
vida, e a verdade sobre a vida de outros como você. Não entre em pânico, vá levando, e não se esqueça
nem por um momento de que isso vai acontecer - pode estar certo. Ninguém está dizendo que seja fácil
transformar as pessoas em parceiras do destino, mas não existe alternativa senão tentar, repetidamente.
Essa não é, porém, a única mensagem que EastEnders leva à sua casa três vezes por semana, e
graças à qual o programa se tornou e permanece tão obrigatório para tantas pessoas. Há também uma
outra. Caso você tenha esquecido, existe uma segunda linha de trincheiras naquele infinito campo de
batalha existencial, um último fosso defensivo pronto para ser usado contra os extravagantes caprichos da
sorte e as surpresas que aquele mundo de rosto impenetrável mantém guardadas na manga da camisa. As
trincheiras já foram cavadas para você antes que você mesmo começasse a cavar a sua; estão esperando
que você pule para dentro delas. Ninguém vai lhe fazer perguntas, questionar o que você fez para obter o
direito de pedir socorro e ajuda. Não importa o que tenha feito, ninguém lhe recusará a entrada.
Há os Butcher, os Mitchell, os Slater, os Clan, a cujo grupo você pertence sem jamais ter se
juntado a ele nem pedido para entrar. Você não precisa fazer absolutamente nada para se tornar "um
deles" - embora não haja muito o que possa fazer para deixar de ser. Eles estarão prontos a fazê-lo
lembrar, caso você esqueça essas simples verdades.
E assim você se encontra diante de um dilema. A menos que seja um daqueles canalhas e párias
"naturais", excepcionalmente inescrupulosos, indisciplinados, aventureiros ou psicóticos, fadado a ter de
se esconder, ser atropelado, expulso pelos vizinhos ou trancafiado na prisão - ou a usar outras saídas já
testadas para sumir de Albert Square -, você vai preferir lançar mão das duas âncoras que a vida lhe deu
para se atracar à companhia de outras pessoas. Vai querer juntar-se ao parceiro de sua escolha e ao clã
que o destino escolheu para você.
Isso, porém, pode não ser fácil - tal como aproveitar ao mesmo tempo o calor da lareira e os
prazeres de nadar no mar. Os labirintos que os personagens de Albert Square são obrigados a atravessar
ampliam e retratam com nitidez os obstáculos que se acumulam em nosso caminho, o que é outra razão
para observar suas proezas três vezes por semana. Você vê aquilo que vinha sentindo o tempo todo: que
você é o único elo a unir o parceiro que você ama, e pelo qual deseja ser amado, ao clã familiar a que
você pertence e deseja pertencer, o qual, por sua vez, deseja que você pertença a ele e lhe obedeça. E
então você é, afinal, "o elo mais fraco" - onde a corda arrebenta no cabo-de-guerra entre as duas causas.
A guerra de atrito, sempre quente e por vezes em ebulição, cujas primeiras vítimas são os que
sonham em reconciliar-se, chegou ao seu clímax dramático - de fato, atingiu os píncaros da tragédia de
Antígona - no julgamento de Little Mo, versão atualizada da imortal peça de Sófocles e da história
imortal por ela registrada...
Diz Antígona: "Oh, mas eu não teria feito a coisa proibida/ Por nenhum marido nem por nenhum
filho/ Para quê? Eu poderia ter tido outro marido/ e por meio dele outros filhos, se perdesse algum;/ mas,
perdidos o pai e a mãe, onde eu conseguiria/ outro irmão?" Perder um marido não é o fim do mundo.
Maridos, mesmo na antiga Grécia (embora nem tanto quanto para os contemporâneos de Little Mo), são
apenas temporários. Perdê-los é, sem dúvida, doloroso, mas tem cura. A perda dos pais, ao contrário, é
irrevogável. Será essa deferência suficiente para que a família suprima o débito para com o marido?
Talvez esse cálculo ponderado não bastasse, não fosse por uma outra razão: as exigências de um parceiro
escolhido, um companheiro temporário de viagem pela vida e em princípio substituível, têm menos peso
que as exigências provenientes das profundezas do passado insondável e inescrutável: "Aquela ordem não
veio de Deus. A justiça que reside com os deuses lá embaixo não conhece tal lei./ Eu não pensei que seus
mandados fossem suficientemente poderosos/ para sobrepujar as inalteráveis leis não-escritas/ de Deus e
do céu, sendo você apenas um homem. Elas não são de ontem nem de hoje, mas eternas,/ embora, de
onde vieram, nenhum de nós possa dizer."
Aqui, diria você, Little Mo e Antígona se separam. De fato, é difícil ouvir um morador de Albert
Square mencionar Deus (os poucos que o fazem logo desaparecem da novela, como que obviamente
deslocados). Naquela área, tal como em tantas outras praças e ruas de nossas cidades, Deus está há muito
tempo absconditus. Não usa celular, e assim ninguém pode afirmar com segurança que sabe exatamente
21
como soariam as Suas instruções, caso se pudesse ouvi-Ias. Os direitos da família podem ser mais
duradouros que o dever para com o parceiro escolhido, mas em Albert Square nem este nem aqueles
parecem portadores da sanção divina. A triste situação de Little Mo não vem do temor a Deus. Assim
sendo, de que maneira, se é que há alguma, o drama de Little Mo seria uma repetição da tragédia de
Antígona?
Na versão de Sófocles, o Mensageiro entra no palco para resumir o significado do relato, mas
também para antever, e responder, nossa pergunta. É uma questão que, diferentemente das palavras
usadas a fim de torná-la compreensível para os espectadores, não envelheceu - e não envelhece: "O que
é a vida do homem? Algo que não e orientado/ para o bem ou para o mal, nem moldado para louvar ou
censurar. A oportunidade leva o homem às alturas, a oportunidade o arremessa para baixo/ e ninguém
pode prever o que será a partir daquilo que é."
Assim é o futuro, assustadoramente desconhecido e impenetrável (ou seja, como insistia Levinas,
o epítome, o modelo, a mais completa encarnação da "alteridade absoluta"), e não a dignidade de um
passado que, embora venerável, se oculta por trás do dilema com que se confrontou Little Mo, assim
como Antígona. "Ninguém pode prever o que será a partir daquilo que é" - mas ninguém pode suportar
com leveza essa impossibilidade. No mar da incerteza, procura-se a salvação nas ilhotas da segurança.
Será que, aquilo que ostenta um passado mais longo tem maiores probabilidades de ingressar no futuro
intacto e incólume do que algo,admitidamente feito e desfeito pelo homem, ostensivamente "de ontem ou
de hoje"? Não se sabe, mas é tentador pensar que sim. De qualquer modo, há pouco a escolher nessa
interminável, eternamente infinda e frustrante busca pela certeza...
Tendo ouvido o veredicto adverso do júri, será que é ao Pai que Little Mo dirige o seu
arrependimento?
Na língua alemã, afinidade é o termo adjetivado, em oposição a parentesco.
"Afinidade" é parentesco qualificado - parentesco, mas... (Wahlverwandschaft, expressão que se
costuma traduzir, errada e enganosamente, por "afinidade eletiva", um pleonasmo gritante, já que
nenhuma afinidade pode ser não-eletiva; somente o parentesco é, pura e simplesmente, quer se queira ou
não, uma coisa dada...) A escolha é o fator qualificante: ela transforma o parentesco em afinidade. Mas
também trai a ambição desta última: sua intenção é ser como o parentesco, tão incondicional, irrevogável
e indissolúvel quanto ele (no final, a afinidade vai acabar se entretecendo com a linhagem e se tornar
indistinguível do restante da rede de parentesco; a afinidade de uma geração se transforma no parentesco
da geração seguinte). Mas nem mesmo os casamentos, ao contrário da insistência sacerdotal, são feitos no
céu, e o que foi unido por seres humanos estes podem - e têm permissão para -desunir, e o farão se
tiverem uma oportunidade.
Seria altamente desejável que o parentesco fosse precedido da escolha, mas que a conseqüência
desta fosse exatamente aquilo que o parentesco já é: indiscutivelmente sólido, confiável, duradouro,
indissolúvel. Essa é a ambivalência endêmica a toda Wahlverwandschaft - sua marca de nascença (praga
e encantamento, bênção e maldição) indelével. O ato fundador da escolha é ao mesmo tempo o poder de
sedução da afinidade e a sua perdição. A memória da escolha, seu pecado original, tende a lançar uma
longa sombra e a obscurecer até mesmo o convívio mais glorioso, chamado "afinidade": a escolha,
diferentemente da sina do parentesco, é uma via de mão dupla. Sempre se pode dar meia-volta, e a
consciência de tal possibilidade torna ainda mais desanimadora a tarefa de manter a direção.
A afinidade nasce da escolha, e nunca se corta esse cordão umbilical. A menos que a escolha seja
reafirmada diariamente e novas ações continuem a ser empreendidas para confirmá-la, a afinidade vai
definhando, murchando e se deteriorando até se desintegrar. A intenção de manter a afinidade viva e
saudável prevê uma luta diária e não promete sossego à vigilância. Para nós, os habitantes deste líquido
mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e durável, tudo que não se ajusta ao uso instantâneo nem
permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva pode ser mais do que aquilo que estamos dispostos a
exigir numa barganha. Estabelecer um vínculo de afinidade proclama a intenção de tornar esse vínculo
semelhante ao parentesco - mas também a presteza em pagar o preço pelo avatar na moeda corrente da
labuta diária e enfadonha. Quando não há disposição (ou, dado o treinamento oferecido e recebido,
solvência de ativos), fica-se inclinado a pensar duas vezes antes de agir para concretizar a intenção.
Assim, viver juntos ("e vamos esperar para ver como isso funciona e aonde vai nos levar") ganha
o atrativo de que carecem os laços de afinidade. Suas intenções são modestas, não se prestam juramentos,
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e as declarações, quando feitas, são destituídas de solenidade, sem fios que prendam nem mãos atadas.
Com muita freqüência, não há congregação diante da qual se deva apresentar um testemunho nem um
todo-poderoso para, lá do alto, consagrar a união. Você pede menos, aceita menos, e assim a hipoteca a
resgatar fica menor e o prazo de resgate, menos desestimulante. O futuro parentesco, quer desejado ou
temido, não lança a sua longa sombra sobre o "viver juntos". "Viver juntos" é por causa de, não a fim de.
Todas as opções mantêm-se abertas, não se permite que sejam limitadas por atos passados.
As pontes são inúteis, a menos que cubram totalmente a distância entre as margens - mas no
"viver juntos" a outra margem está envolta numa neblina que nunca se dissipa, que ninguém deseja
dissolver nem tenta afastar. Não há como saber o que se vai ver quando (se) a névoa se dispersar - nem
se de fato existe alguma
Apaixonar-se e desapaixonar-se 47
coisa encoberta. A outra margem está mesmo lá, ou será ela apenas uma fata morgana, uma ilusão
criada pela neblina, uma fantasia da imaginação que nos faz ver formas bizarras nas nuvens que passam?
Viver juntos pode significar dividir o barco, a ração e o leito da cabine. Pode significar navegar
juntos e compartilhar as alegrias e agruras da viagem. Mas nada tem a ver com a passagem de uma
margem à outra, e portanto seu propósito não é fazer o papel das sólidas pontes (ausentes). Pode-se
manter um diário de aventuras passadas, mas nele há apenas uma ligeira referência ao itinerário e ao porto
de destino. É possível que a neblina que cobre a outra margem - desconhecida, inexplorada - se
suavize e desapareça, que venham a emergir os contornos de um porto, que se tome a decisão de atracar,
mas nada disso é, nem deve ser, anotado nos registros de navegação.
A afinidade é uma ponte que conduz ao abrigo seguro do parentesco. Viver juntos não representa
essa ponte nem o trabalho de construí-la. O convívio do "viver juntos" e a proximidade consangüínea são
dois universos diferentes, com espaço-tempos distintos, cada qual um universo completo, com suas leis e
lógicas próprias. Nenhuma passagem de um para outro foi previamente explorada - embora se possa,
fortuitamente, defrontar-se ou chocar-se com um deles. Não há como saber, pelo menos com
antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída. A
questão é atravessar os dias como se essa diferença não contasse, e portanto de uma forma que torne
irrelevante o problema de "colocar os pingos nos Is".
O fato de a afinidade ortodoxa estar fora de moda e fora de forma não pode ser rebatido à custa do
parentesco. Carecendo de pontes estáveis para suportar o tráfego crescente, as redes de parentesco se
sentem frágeis e ameaçadas. Suas fronteiras se tornam embaçadas e contestadas, e as redes se dissolvem
num terreno sem títulos de posse nem propriedade hereditária - uma terra de fronteira. Algumas vezes
um campo de batalha, outras vezes o objeto de pendengas judiciais não menos amargas. As redes de
parentesco não podem estar seguras de suas chances de sobrevivência, muito menos calcular suas
expectativas de vida. Sua fragilidade as torna ainda mais preciosas. Elas agora são tênues, sutis, delicadas;
provocam sentimentos de proteção; fazem com que se deseje abraçá-las, acariciá-las e mimá-las; anseiam
por serem tratadas com um carinho amoroso. E não são mais arrogantes e pretensiosas como costumavam
ser quando nossos ancestrais explodiram e se rebelaram contra a rigidez e a viscosidade do anelo familiar.
Não se sentem mais seguras de si mesmas - ao contrário, estão dolorosamente conscientes de como um
simples passo em falso pode ser fatal. Antolhos e protetores de ouvidos caíram em desuso: - as famílias
olham e ouvem atentamente, cheias de disposição para corrigir suas rotas e prontas a pagar na mesma
moeda o carinho e o amor.
Paradoxalmente - ou no fim nem tanto -, os poderes de atração e enlace da parentela ganham
impulso à medida que o magnetismo e o poder de controle da afinidade diminuem...
De modo que aqui estamos, manobrando, vacilantes e desconfortáveis, entre dois mundos
notoriamente distantes um do outro e com pendências entre si, mas ambos desejáveis e desejados - sem
passagens claramente traçadas, para não falar de caminhos trilhados entre ambos.
Trinta anos atrás (em O declínio do homem público), Richard Sennett observou o advento de uma
"ideologia da intimidade" que "transmuta categorias políticas em psicológicas" 10
Um resultado particularmente portentoso dessa nova ideologia foi a substituição dos "interesses
compartilhados" pela "identidade compartilhada". A fraternidade de base identitária estava para se tornar - prevenia Sennett - a "empada por um grupo seleto de pessoas aliada à rejeição das que não
estiverem dentro do círculo local". "Forasteiros, desconhecidos, diferentes tornam-se criaturas a serem
afastadas."
Alguns anos mais tarde, Benedict Anderson cunhou o termo "comunidade imaginada" para dar
conta do mistério da auto-identificação com uma ampla categoria de desconhecidos com quem se acredita
compartilhar alguma coisa suficientemente importante para que se fale deles como um "nós" do qual eu,
que falo,sou parte. O fato de Anderson ter percebido essa identificação com uma população dispersa de
pessoas desconhecidas como um mistério a exigir explicação confirmava, ainda que de forma oblíqua, os
palpites de Sennett - era, na verdade, um tributo a estes. À época em que Anderson desenvolveu seu
modelo de "comunidade imaginada", a desintegração dos vínculos e liames impessoais (e com eles, como
apontaria Sennett, da arte da "civilidade" - de "usar a máscara" que simultaneamente protege e permite
que se aprecie a companhia) havia atingido um estágio avançado, e assim a fricção e os afagos de ombros,
a contigüidade, a intimidade, a "sinceridade", o "entrar dentro do outro", sem guardar segredos,
confessando de modo compulsivo e compulsório, estavam se tornando rapidamente as únicas defesas
humanas contra a solidão e o único fio disponível para se tecer o ansiado convívio. Só era possível
conceber totalidades mais amplas do que o círculo de confissões mútuas como um "nós" intumescido e
esticado; como a mesmidade, mal referida como "identidade", em letras grandes. A única forma de incluir
os "desconhecidos" em um "nós" era reuni-los como potenciais parceiros em rituais confessionais,
tendentes a revelar um "interior" semelhante (e portanto familiar), quando pressionados a compartilhar
suas íntimas sinceridades.
A comunhão de eus secretos baseada em revelações mutuamente estimuladas pode ser o núcleo do
relacionamento amoroso. Pode fincar raízes, germinar, desenvolver-se dentro da ilha auto-sustentada, ou
quase, das biografias compartilhadas. Mas, exatamente como a união moral de dois - que, quando
ampliada para incluir um Terceiro, e então colocada cara a cara com a "esfera pública", descobre serem
suas instituições e impulsos morais insuficientes para confrontar e administrar as questões da justiça impessoal
geradas por essa esfera -, assim também a comunhão do amor é apanhada pelo mundo exterior
despreparada para competir e ignorante das habilidades que isso exige.
Dentro de uma comunhão amorosa, é apenas natural ver a fricção e o desacordo como irritações
temporárias que logo irão embora; mas também como o apelo a uma ação remediadora que estimulará sua
partida. Uma perfeita mistura de eus parece nesse caso uma perspectiva realista, dada uma dose suficiente
de paciência e dedicação - qualidades que o amor acredita poder suprir em profusão. Ainda que a
mesmidade espiritual dos amantes continue um pouco distante, certamente não é um sonho infundado
nem uma ilusão fantasiosa. Decerto pode ser alcançada - e com recursos que já se encontram à
disposição dos amantes, em sua condição de amantes.
Mas tentar ampliar as legítimas expectativas amorosas de forma a domar, domesticar e
desenvenenar a atordoante miscelânea de sons e visões que povoa o mundo além da ilha do amor... Nesse
caso, os testados e confiáveis estratagemas do amor não serão de muita ajuda. Na ilha do amor, a
concordância, a compreensão e a ansiada unicidade a dois jamais estarão além do alcance, mas isso não é
válido para o infinito mundo exterior (a menos que transmutado, por um passe de mágica, no colóquio em
busca do consenso de Jürgen Habermas). As ferramentas do convívio eu-Vós, ainda que perfeitamente
dominadas e impecavelmente manejadas, se mostrarão vulneráveis à variação, à disparidade e à discórdia
que separam e mantêm em pé de guerra as multidões daqueles que constituem um "Vós" potencial:
dispostos a atirar em vez de conversar. Exige-se o domínio de técnicas muito diferentes quando a
discordância é um desconforto transitório que logo será dissipado e quando a discórdia (assinalando a
determinação de defender seus direitos) está aí para ficar por tempo indeterminado. A esperança de
consenso atrai as pessoas e as estimula a se esforçarem mais. A descrença na unidade, alimentando a
gritante inadequação dos instrumentos à mão e sendo por esta alimentada, impele as pessoas a se
afastarem umas das outras e estimula que elas se esquivem.
A primeira conseqüência da crescente descrença na possibilidade de unidade é a divisão do mapa
do Lebenswelt, o mundo da vida, em dois continentes amplamente destituídos de comunicação. Um deles
é onde se busca a todo custo o consenso (embora na maioria das vezes, talvez o tempo todo, com as
habilidades adquiridas e aprendidas no abrigo da intimidade) - mas onde sobretudo se presume que ele
já esteja "ali", predeterminado pela identidade compartilhada, esperando para ser acordado e reafirmar-se.
E o outro é onde a esperança de unidade espiritual, e assim também qualquer esforço para revelá-la ou
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construí-la a partir do zero, foi abandonada a priori, de modo que o único intercâmbio vislumbrado é o
de mísseis, não palavras.
Atualmente, porém, essa dualidade de posturas (teorizada para uso privado como a divisão da
humanidade) parece estar gradualmente recuando para o segundo plano da vida cotidiana - juntamente
com as dimensões espaciais da proximidade e da distância humanas. Tal como nas vastas extensões da
terra de fronteira global, também no nível popular, no domínio da política de vida, o palco para a ação é
um recipiente cheio de amigos e inimigos potenciais, no qual se espera que coalizões flutuantes e inimizades
à deriva se aglutinem por algum tempo, apenas para se dissolverem outra vez e abrirem espaço para
outras e diferentes condensações. As "comunidades da mesmidade", predeterminadas, mas aguardando
serem reveladas e preenchidas com matéria sólida, estão cedendo vez a "comunidades de ocasião", que se
espera serem autoconstruídas em torno de eventos, ídolos, pânicos ou modas. Mais diversificadas como
pontos focais, porém compartilhando a característica de uma curta, e decrescente, expectativa de vida.
Elas não duram mais que as emoções que as mantêm no foco das atenções e estimulam a conjunção de
interesses - fugaz, mas não por isso menos intensa - a se coligar e aderir "à causa".
Todo esse aproximar-se e afastar-se para longe torna possível seguir simultaneamente o impulso de
liberdade e a ânsia por pertencimento - e proteger-se, se não recuperar-se totalmente, dos
embustes de ambos os anseios.
Os dois estímulos se fundem e se misturam no trabalho extremamente absorvente e exaustivo de
"tecer redes" e "surfar nelas". O ideal de "conectividade" luta para apreender a difícil e irritante dialética
desses dois elementos inconciliáveis. Ele promete uma navegação segura (ou pelo menos não-fatal) por
entre os recifes da solidão e do compromisso, do flagelo da exclusão e dos férreos grilhões dos vínculos
demasiadamente estreitos, de um desprendimento irreparável e de uma irrevogável vinculação.
Nós entramos nos chats e temos "camaradas" que conversam conosco. Os camaradas, como bem
sabe todo viciado em chat, vêm e vão, entram e saem do circuito - mas sempre há na linha alguns deles
se coçando para inundar o silêncio com "mensagens" No relacionamento "camarada/camarada", não são
as mensagens em si, mas seu ir e vir, sua circulação, que constitui a mensagem - não importa o
conteúdo. Nós pertencemos ao fluxo constante de palavras e sentenças inconclusas (abreviadas, truncadas
para acelerar a circulação). Pertencemos à conversa, não àquilo sobre o que se conversa.
Não confundam a atual obsessão por confissões compulsivas com as confidências espalhafatosas
sobre as quais Sennett nos advertia 30 anos atrás. O propósito de produzir sons e digitar mensagens não é
mais submeter os recônditos da alma à inspeção e aprovação do parceiro. As palavras vocalizadas ou
digitadas não mais se esforçam por relatar a viagem de descoberta espiritual. Como Chris Moss
admiravelmente expôs (no Guardian Weekend)", por meio de "nossas conversas em chats, telefones
celulares, serviços de textos 24 horas", "a introspecção é substituída por uma interação frenética e frívola
que revela nossos segredos mais profundos juntamente com nossas listas de compras". Permitam-me
comentar, no entanto, que essa "interação", embora frenética, pode não parecer tão frívola, uma vez que
você perceba e tenha em mente que a questão - a única questão - é manter o chat funcionando. Os
provedores de acesso à internet não são sacerdotes santificando a inviolabilidade das uniões. Estas não
têm nada em que se apoiar senão nossos papos e textos; a união só se mantém na medida em que
sintonizamos, conversamos, enviamos mensagens. Se você interromper a conversa, está fora. O silêncio
equivale à exclusão. De fato, 11 n'y a pas dehors du texte - não há nada fora do texto -, embora não
apenas no sentido pretendido por Derrida...
OM, a sofisticada revista encartada em um dos mais veneráveis, respeitados e amados jornais de
domingo, dirigida e avidamente lida e discutida pelo jet-set, as elites de Bloomsbury ou Chelsea e
todo o resto, ou quase, das classes tagarelas...
Peguemos ao acaso a edição de 16 de junho de 2002 - embora a data aqui não tenha muita
importância, pois o conteúdo, com pequenas variações, é imune às convulsões, reviravoltas ou turbulências
da grande história em construção, assim como a toda espécie de política, exceto a política de vida.
As acelerações ou reduções de ritmo do tempo das grandes políticas também passam ao largo...
Cerca de metade da revista OM, semana após semana, é ocupada por uma seção intitulada "Vida"
Explicam os editores: "Vida" é "o manual da vida moderna". A seção tem suas subseções: primeiro vem
"Moda" que informa sobre os problemas e tribulações da "aplicação de cosméticos", com uma subseção,
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"Ela moda", que exorta as leitoras a "não medir esforços para encontrar o par de sapatos certo". É
seguida pela subseção "Interiores", com um breve interlúdio sobre "Casas de bonecas" Depois vem a
parte de "Jardins", que explica como "manter as aparências" e "impressionar os hóspedes", apesar da
aborrecida verdade de que "o trabalho de um jardineiro nunca termina". A subseção seguinte é "Comida"
e depois "Restaurantes", que mostra onde procurar comida gostosa quando se sai para jantar, e então
"Vinhos", indicando onde encontrar vinhos saborosos para consumir em casa. Tendo chegado a esse
ponto, o leitor está bem preparado para examinar atentamente as três páginas da subseção "Viver" -
dividida em "amor, sexo, família, amigos"
Na semana de 16 de junho de 2002, "Viver" é dedicada aos CSSs - "casais semi-separados",
"revolucionários do relacionamento", que "romperam a sufocante bolha do casal" e "seguem seus
próprios caminhos" Sua dança a dois é em tempo parcial. Odeiam a idéia de compartilhar o lar e as
atividades domésticas, preferindo manter domicílios, contas bancárias e círculos de amizade separados, e
estarem juntos quando estão a fim. Tal como o trabalho ao estilo antigo, hoje dividido numa sucessão de
horários flexíveis, tarefas únicas ou projetos de curto prazo, e da mesma forma que a compra ou o aluguel
de uma propriedade, que agora tende a ser substituída pela ocupação time-share e pelos pacotes de fim de
semana, o casamento ao estilo antigo, "até que a morte nos separe", já desestabilizado pela coabitação
"vamos ver como funciona", reconhecidamente temporária, é substituído pelo "ficar juntos", de horário
parcial ou flexível.
Os especialistas, como os leitores poderiam esperar, se dividem. Suas opiniões variam das boasvindas
ao modelo CSS - visto como o tão almejado nirvana (tornar quadrado o círculo da doação
genuína sem ter de pagar com a perda da independência) finalmente transformado em realidade - à
condenação dos praticantes por sua covardia: a indisposição de enfrentar os testes e dificuldades
decorrentes da criação e perpetuação de um relacionamento plenamente amadurecido. Prós e contras são
dolorosamente expostos, solenemente ponderados e escrupulosamente avaliados, embora o efeito do
estilo de vida dos CSSs sobre o seu ambiente humano não apareça em nenhuma dessas folhas de balanço
(curiosamente, dada a sensibilidade ecológica de nossa época).
Depois que "Viver" apresentou seu argumento, o que é necessário para preencher as páginas de
"Vida"? Há subseções intituladas "Saúde", "Bem-estar", "Nutrição' (atenção: separada de "Comida",
"Restaurantes" e "Vinhos") e "Estilo" (totalmente feita de anúncios de mobiliário). A seção se completa
com a parte do "Horóscopo" - na qual, dependendo da data de seu nascimento, alguns leitores são
aconselhados a esquecer "o trabalho monótono - a mobilidade é essencial neste momento. Você deve
circular, sacar o celular e fazer negócios", enquanto a outros se diz: "Este é exatamente o seu momento -
novos inícios o tempo todo e nada de negócios muito antigos para oprimir sua alma sempre otimista."

AMOR LÍQUIDO - Sobre a fragilidade dos laços humanosOnde histórias criam vida. Descubra agora