A invocação de "amar o próximo como a si mesmo", Freud (em O mal-estar na civilização)', é um dos
preceitos fundamentais da vida civilizada. É também o que mais contraria o tipo de razão que a
civilização promove: a razão do interesse próprio e da busca da felicidade. O preceito fundador da
civilização só pode ser aceito como algo que "faz sentido" e adotado e praticado se nos rendermos à
exortação teológica credere quia absurdum - acredite porque é absurdo.
Com efeito, é suficiente perguntar "por que devo fazer isso? Que benefício me trará?" para sentir o
absurdo da exigência de amar o próximo - qualquer próximo - simplesmente por ser um próximo. Se
eu amo alguém, ela ou ele deve ter merecido de alguma forma... "Eles o merecem se são tão parecidos
comigo de tantas maneiras importantes que neles posso amar a mim mesmo; e se são tão mais perfeitos
do que eu que posso amar neles o ideal de mim mesmo... Mas, se ele é um estranho para mim e se não
pode me atrair por qualquer valor próprio ou significação que possa ter adquirido para a minha vida
emocional, será difícil amá-lo." Essa exigência parece ainda mais incômoda e vazia pelo fato de que, com
muita freqüência, não me é possível encontrar evidências suficientes de que o estranho a quem devo amar
me ama ou demonstra por mim "a mínima consideração. Se lhe convier, não hesitará em me injuriar,
zombar de mim, caluniar-me e demonstrar seu poder superior..."
Assim, indaga Freud, "qual é o objetivo de um preceito enunciado de modo tão solene se seu
cumprimento não pode ser recomendado como algo razoável?" Somos tentados a concluir, contra o bom
senso, que o "amor ao próximo" é "um mandamento que na verdade se justifica pelo fato de que nada
mais contraria tão fortemente a natureza original do homem". Quanto menor a probabilidade de uma
norma ser obedecida, maior a obstinação com que tenderá a ser reafirmada. E a obrigação de amar o
próximo talvez tenha menos probabilidade de ser obedecida do que qualquer outra. Quando o filósofo
talmúdico Rabi Hillel foi desafiado por um possível convertido a explicar o ensinamento de Deus
enquanto pudesse se sustentar numa perna só, ele ofereceu o "amar o próximo como a si mesmo" como a
única resposta, embora completa, que encerra a totalidade dos mandamentos divinos. Aceitar esse
preceito é um ato de fé; um ato decisivo, pelo qual o ser humano rompe a couraça dos impulsos, ímpetos
e predileções "naturais", assume uma posição que se afasta da natureza, que é contrária a esta, e se torna o
ser "não-natural" que, diferentemente das feras (e, na realidade, dos anjos, como apontou Aristóteles), os
seres humanos são.
Aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da humanidade. Todas as outras rotinas
da coabitação humana, assim como suas ordens pré-estabelecidas ou retrospectivamente descobertas, são
apenas uma lista (sempre incompleta) de notas de rodapé a esse preceito. Se ele fosse ignorado ou
abandonado, não haveria ninguém para fazer essa lista ou refletir sobre sua incompletude.
Amar o próximo pode exigir um salto de fé. O resultado, porém, é o ato fundador da humanidade.
Também é a passagem decisiva do instinto de sobrevivência para a moralidade.
Essa passagem torna a moralidade uma parte, talvez condição sine qua non, da sobrevivência.
Com esse ingrediente, a sobrevivência de um ser humano se torna a sobrevivência da humanidade no
humano.
"Amar o próximo como a si mesmo" coloca o amor-próprio como um dado indiscutível, como
algo que sempre esteve ali. O amor-próprio é uma questão de sobrevivência, e a sobrevivência não
precisa de mandamentos, já que outras criaturas (não-humanas) passam muito bem sem eles, obrigado.
Amar o próximo como se ama a si mesmo torna a sobrevivência humana diferente daquela de qualquer
outra criatura viva. Sem a extensão/transcendência do amor-próprio, o prolongamento da vida física,
corpórea, ainda não é, por si mesmo, uma sobrevivência humana - não é o tipo de sobrevivência que
separa os seres humanos das feras (e, não se esqueçam, dos anjos). O preceito do amor ao próximo
desafia e interpela os instintos estabelecidos pela natureza, mas também o significado da sobrevivência
por ela instituído, assim como o do amor-próprio que o protege.
Amar o próximo pode não ser um produto básico do instinto de sobrevivência - mas também não
o é o amor-próprio, tomado como modelo do amor ao próximo.
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Amor-próprio - o que significa isso? O que eu amo "em mim mesmo"? O que eu amo quando
amo a mim mesmo? Nós, humanos, compartilhamos os instintos de sobrevivência com nossos primos
animais sejam os próximos, os nem tão próximos ou os bem distantes - mas, quando se trata de amorpróprio,
nossos caminhos se separam e seguimos por conta própria.
É verdade que o amor-próprio estimula a gente a se "agarrar à vida", a tentar a todo custo
permanecer vivo, a resistir e enfrentar o que quer que ameace pôr fim à nossa vida de modo prematuro ou
abrupto, ou, melhor ainda, a melhorar nosso vigor e aptidão física para tornar efetiva essa resistência.
Nisso, contudo, nossos primos animais são mestres e experientes, não menos que os mais dedicados e
habilidosos viciados em ginástica e maníacos por saúde. Nossos primos animais (com exceção daqueles
"domesticados", que nós, seus donos humanos, despimos de seus dons naturais para melhor servirem à
nossa sobrevivência, e não à deles) não precisam de especialistas para lhes dizer como se manterem vivos
e em forma. Tampouco precisam do amor-próprio para lhes ensinar que manter-se vivo e em forma é a
coisa certa a fazer.
A sobrevivência (animal, física, corpórea) pode viver sem o amor-próprio. Para dizer a verdade,
poderia acontecer melhor sem ele do que em sua companhia! Os caminhos dos instintos de sobrevivência
e do amor-próprio podem correr paralelamente, mas também em direções opostas... O amor-próprio pode
rebelar-se contra a continuação da vida. Ele nos estimula a convidar o perigo e dar boas-vindas à ameaça.
Pode nos levar a rejeitar uma vida que não se ajusta a nossos padrões e que, portanto, não vale a pena ser
vivida.
Pois o que amamos em nosso amor-próprio são os eus apropriados para serem amados. O que
amamos é o estado, ou a esperança, de sermos amados. De sermos objetos dignos do amor, sermos
reconhecidos como tais e recebermos a prova desse reconhecimento.
Em suma: para termos amor-próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor - a negação do
status de objeto digno do amor - alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é construído a partir do amor
que nos é oferecido por outros. Se na sua construção forem usados substitutos, eles devem parecer cópias,
embora fraudulentas, desse amor. Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós
mesmos.
E como podemos saber que não fomos desconsiderados ou descartados como um caso sem
esperança, que o amor está, pode estar, estará prestes a aparecer, que somos dignos dele, e assim temos o
direito de nos entregar ao amour de soi e ter prazer com isso? Nós o sabemos, acreditamos que sabemos e
somos tranqüilizados de que essa crença não é um equívoco quando falam conosco e somos ouvidos,
quando nos ouvem com atenção, com um interesse que trai/sinaliza uma presteza em responder. Então
concluímos que somos respeitados. Ou seja, supomos que aquilo que pensamos, fazemos ou pretendemos
fazer é levado em consideração.
Se os outros me respeitam, então obviamente deve haver "em mim" - ou não deve? - algo que
só eu lhes posso oferecer. E obviamente existem esses outros - não existem? - que ficariam satisfeitos
e gratos por isso lhes ser oferecido. Eu sou importante e o que penso e digo também é. Não sou uma cifra,
facilmente substituída e descartada. Eu "faço diferença" para outros além de mim. O que digo e sou e faço
tem importância - e isso não é apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta seria mais
pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar.
Se é isso que nos torna objetos legítimos e adequados do amor-próprio, então a exortação a "amar
o próximo como a si mesmo" (ou seja, ter a expectativa de que o próximo desejará ser amado pelas
mesmas razões que estimulam nosso amor-próprio) evoca o desejo do próximo de ter reconhecida,
admitida e confirmada a sua dignidade de portar um valor singular, insubstituível e não-descartável. A
exortação nos leva a pressupor que o próximo de fato representa esses valores - ao menos até prova em
contrário. Amar o próximo como amamos a nós mesmos significaria então respeitar a singularidade de
cada um - o valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que habitamos em conjunto e assim o
tornam um lugar mais fascinante e agradável, aumentando a cornucópia de suas promessas.
Numa cena de Korczak, o filme mais humano de Andrzej Wajda, Janus Korczak (pseudônimo do
grande pedagogo Henryk Goldszmit), um herói cinematográfico muito humano, é relembrado dos
horrores das guerras travadas no curso da vida de sua sofrida geração. Ele recorda essas
atrocidades, é claro, e elas o ofendem e repugnam. E de modo ainda mais vívido, e com o maior dos
horrores, ele se lembra de um bêbado chutando uma criança.
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Em nosso mundo obcecado por estatísticas, médias e maiorias, tendemos a medir o grau de
desumanidade das guerras pelo número de baixas que elas causam. Tendemos a medir o mal, a crueldade,
a repugnância e a infâmia da vitimização pelo número de vítimas. Mas, em 1944, em meio à guerra mais
mortífera já travada pelos seres humanos, Ludwig Wittgenstein observou:
Nenhum clamor de tormento pode ser maior que o clamor de um homem.
Ou, mais uma vez, nenhum tormento pode ser maior do que aquilo que um único ser humano pode sofrer.
O planeta inteiro não pode sofrer tormento maior do que uma única alma.
Meio século depois, quando questionada por Leslie Stahl, da rede de televisão CBS, sobre o cerca
de meio milhão de crianças mortas em função do continuado bloqueio militar imposto pelos Estados
Unidos ao Iraque, Madeleine Albright, então embaixadora norte-americana na ONU, não negou a
acusação, admitindo ter sido "uma escolha difícil de fazer" Mas justificou-a: "Achamos que era um preço
que valia ser pago."
Albright, sejamos justos, não estava nem está só ao seguir esse tipo de raciocínio. "Não se pode
fazer uma omelete sem quebrar os ovos" é a desculpa favorita dos visionários, dos porta-vozes das visões
oficialmente endossadas e dos generais que agem da mesma forma sob o comando dos porta-vozes. Essa
fórmula transformou-se, com o passar dos anos, num verdadeiro slogan de nossos admiráveis tempos
modernos.
Quaisquer que sejam aqueles "nós" que "achamos" e em cujo nome falava Albright, foi
exatamente a fria crueldade de seu tipo de avaliação que provocou a oposição de Wittgenstein e deixou
Korczak chocado, ultrajado e revoltado, resolvido a dedicar toda uma vida a essa revolta.
A maioria de nós concordaria que esse sofrimento sem sentido e essa dor insensivelmente infligida
não podem ser desculpados e não teriam defesa perante tribunal algum. Mas menos estariam prontos a
admitir que provocar a fome ou causar a morte de uma única pessoa não é, não pode ser, "um preço que
vale ser pago", importa quão "sensata" ou até nobre possa ser a causa pela qual se pague. Tampouco a
humilhação ou a negação da dignidade humana pode ser esse preço. Não é apenas que a vida digna e o
respeito devido à humanidade de cada ser humano se combinem num valor supremo que não pode ser
superado ou compensado por nenhum volume ou quantidade de outros valores, mas que todos os outros
valores só são valores na medida em que sirvam à dignidade humana e promovam a sua causa. Todas as
coisas valorosas na vida humana nada mais são que diferentes fichas para a aquisição do único valor que
torna a vida digna de ser vivida. Aquele que busca a sobrevivência assassinando a humanidade de outros
seres humanos sobrevive à morte de sua própria humanidade.
A negação da dignidade humana deprecia o valor de qualquer causa que necessite dessa negação
para afirmar a si mesma. E o sofrimento de uma única criança deprecia esse valor de forma tão radical e
completa quanto o sofrimento de milhões. O que pode ser válido para omeletes torna-se uma mentira
cruel quando aplicado à felicidade e ao bem-estar humanos.
É comumente aceito pelos biógrafos e discípulos de Korczak que a chave para seus pensamentos e
atos era o amor que tinha pelos filhos. Essa interpretação é bem fundamentada. O amor de Korczak pelos
filhos era apaixonado e incondicional, total e abrangente - o bastante para sustentar toda uma vida
caracterizada por uma sensibilidade e uma integridade singularmente coesas. Ainda assim, como a maior
parte das interpretações, essa também não corresponde à totalidade de seu objeto.
Korczak amava os filhos como poucos de nós estão prontos ou capacitados a amar, mas o que
amava neles era sua humanidade. A humanidade no que ela tem de melhor - sem distorções, sem
truncamentos, sem enfeites nem mutilações, plena em sua insipiência e nascença, cheia de promessas que
ainda não foram traídas e de potenciais ainda não comprometidos. O mundo em que os potenciais
portadores de humanidade nascem e crescem é, ao que se sabe, mais propenso a prender as asas do que a
estimular os supostos voadores a abri-Ias, e assim, na opinião de Korczak, era apenas nas crianças que
essa humanidade podia ser encontrada, capturada e preservada (por algum tempo, só por algum tempo!)
intacta e ilesa.
Talvez fosse melhor mudar os costumes do mundo e tornar nosso hábitat mais hospitaleiro à
dignidade humana, de modo que amadurecer não exigisse o comprometimento da humanidade de uma
criança. O jovem Henryk Goldszmit compartilhava as esperanças do século em que nasceu e acreditava
que mudar os abomináveis hábitos do mundo estava ao alcance dos seres humanos, sendo uma tarefa viável e que ao mesmo tempo tendia a ser realizada. Mas com o passar do tempo, à medida que as
pilhas de vítimas e os "danos colaterais" provocados tanto pelas más quanto pelas mais nobres intenções
atingiam dimensões estratosféricas, e em que a necrose e a putrificação da carne em que os sonhos
tendiam a se transformar deixava cada vez menos espaço à imaginação, essas esperanças exaltadas foram
sendo despidas de sua credibilidade. Janus Korczak conhecia muito bem a desconfortável mentira que
Henryk Goldszmit praticamente ignorava: não pode haver atalhos que conduzam a um mundo feito sob
medida para a dignidade humana, e ao mesmo tempo é improvável que o "mundo realmente existente"
construído dia a dia por pessoas já espoliadas de sua dignidade e desacostumadas a respeitar a das outras,
possa algum dia ser refeito segundo essa medida.
A este nosso mundo não se pode impor legalmente a perfeição. Não se pode forçá-lo a adotar a
virtude, mas tampouco persuadi-lo a se comportar de modo virtuoso. Não se pode fazer com que seja
terno e atencioso para com os seres humanos que o habitam, e ao mesmo tempo tão adaptado aos seus
sonhos de dignidade quanto idealmente se desejaria que fosse. Mas você deve tentar. Você vai tentar.
Você o faria, de qualquer maneira, se fosse aquele Janus Korczak inspirado em Henryk Goldszmit.
Mas como você tentaria? Um pouco como os antiquados visionários utópicos que, não tendo
conseguido tornar quadrado o círculo da segurança e da liberdade na Grande Sociedade, transformaramse
em projetistas de comunidades controladas, shopping centers e parques temáticos... No seu caso,
protegendo a dignidade com que cada ser humano nasce dos gatunos e falsários que tramam roubá-la ou
desvirtuá-la e mutilá-la. E você começaria pelo trabalho perpétuo de protegê-la enquanto é tempo, durante
a infância dessa dignidade. Tentaria trancar o estábulo antes que o cavalo fugisse ou fosse roubado.
Uma das formas de fazê-lo, aparentemente a mais razoável, é abrigar as crianças dos eflúvios
venenosos de um mundo infectado e corrompido pela humilhação e a indignidade humanas, barrar o
acesso à lei da selva que começa justamente do outro lado da porta do abrigo. Quando seu orfanato se
mudou do endereço anterior à guerra, em Krochmalma, para o Gueto de Varsóvia, Korczak ordenou que a
porta de entrada permanecesse trancada e as janelas do andar térreo fossem tapadas. Quando as
deportações para as câmaras de gás estavam se tornando uma certeza, Korczak supostamente se opôs à
idéia de fechar o orfanato e despachar as crianças para que buscassem individualmente a chance de
escapar que algumas poderiam (apenas poderiam) ter . Ele pode ter concluído que não valeria correr o
risco: uma vez fora do abrigo, as crianças aprenderiam a temer, a humilhar-se e a odiar. Elas perderiam o
mais precioso dos valores - sua dignidade. Uma vez privadas desse valor, qual a vantagem de
permanecerem vivas? O valor, o mais precioso dos valores humanos, o atributo sine qua non de
humanidade, é uma vida de dignidade, não a sobrevivência a qualquer custo.
Spielberg poderia aprender alguma coisa com Korczak, o homem, e Korczak, o filme.
Uma coisa que ele não sabia, ou não queria saber, ou não queria admitir que sabia; algo sobre a
vida humana e os valores que a tornam digna de ser vivida. Uma coisa sobre a qual ele demonstrou
ignorância ou descaso em sua própria narrativa da desumanidade, no filme recordista de bilheteria A lista
de Schindler, para o aplauso de nosso mundo em que a dignidade tem pouca utilidade e a humilhação,
grande demanda, e que chegou a ver o propósito da vida em sobreviver aos outros.
Sobreviver aos outros é o tema de A lista de Schindler; sobreviver a qualquer custo e em qualquer
condição, venha o que vier, fazendo o que for preciso fazer. A sala de cinema lotada irrompe em aplausos
quando Schindler consegue tirar seu mestre-de-obras de um trem pronto a partir para Treblinka. Não
importa que o trem não tenha sido impedido de seguir e o resto dos passageiros dos vagões de gado vá
terminar sua jornada nas câmaras de gás. E os aplausos surgem novamente quando Schindler recusa a
oferta de "outra judia" para substituir a "dele", "erradamente" destinada aos fornos crematórios, e
consegue "corrigir" "o erro".
O direito do mais forte, mais astuto, engenhoso ou ardiloso de fazer o possível para sobreviver ao
mais fraco e desafortunado é uma das lições mais horripilantes do Holocausto.
Uma lição terrível e atemorizante, mas nem por isso aprendida, apropriada, memorizada e aplicada
com menos avidez. Para ser adequada à adoção, essa lição deve, em primeiro lugar, ser rigorosamente
despida de todas as conotações éticas, até a mais crua essência do jogo de soma zero da sobrevivência.
Viver significa sobreviver. O mais forte vive. Quem ataca primeiro sobrevive. Desde que você seja o mais
forte, pode escapar impune, não importa o que tenha feito ao fraco. O fato de que a desumanização das
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vítimas desumaniza - devasta moralmente - seus vitimizadores é desconsiderado como um detalhe
irritante. Quer dizer, se não tiver sido silenciosamente omitido. O que conta é chegar ao topo e lá
permanecer. Sobreviver - manter-se vivo - é um valor aparentemente não prejudicado nem maculado
pela desumanidade de uma vida dedicada à sobrevivência. Vale a pena persegui-lo por si mesmo, por
mais caro que isso saia para os derrotados e por mais profundas e incorrigíveis que sejam as formas como
isso pode depravar e degradar os vitoriosos.
Essa horripilante lição do Holocausto, a mais desumana, completa-se com um inventário das dores
que se pode infligir aos fracos a fim de afirmar a própria força. Capturar, deportar, trancafiar em campos
de concentração, ou aproximar a situação angustiosa de toda a população do modelo do campo de
concentração, demonstrar a futilidade da lei pela execução sumária de suspeitos, aprisionar sem
julgamento nem prazo de soltura, espalhar o terror que aleatória e casualmente infligia tormentos aos
montes - foi amplamente comprovado que tudo isso serve efetivamente à causa da sobrevivência e é,
portanto, "racional".
Essa lista pode ser, e é, ampliada com o passar do tempo. "Novos e aperfeiçoados" expedientes
são testados e, caso funcionem, acrescentados ao repertório - como demolir casas isoladas ou distritos
residenciais inteiros, extirpar pomares de oliveiras, queimar ou destruir lavouras, incendiar locais de
trabalho e destruir de outras formas os já miseráveis recursos de subsistência. Todas essas medidas
mostram uma tendência a se propelirem e exacerbarem por si mesmas. À medida que cresce a lista de
atrocidades, o mesmo ocorre com a necessidade de aplicá-las de modo cada vez mais resoluto para evitar
não apenas que as vítimas se façam ouvir, mas que se dê atenção a elas. E conforme os velhos
estratagemas se tornam rotina e o horror que semearam entre seus alvos se dissipa, novos, mais dolorosos
e terríveis artifícios precisam ser procurados febrilmente.
A vitimização dificilmente humaniza suas vítimas. Ser vítima não garante um lugar nos píncaros da
moral.
Numa carta pessoal em que fazia objeções ao meu exame da possibilidade de romper a "cadeia
cismogenética" que tende a transformar vítimas em vitimizadores, Antonina Zhelazkova, a etnóloga
intrépida e singularmente perspicaz, dedicada exploradora do aparentemente impenetrável barril de
pólvora étnico e de outras animosidades que são os Bálcãs, escreveu:
Eu não aceito que as pessoas estejam em posição de combater o impulso de se tornarem assassinas depois de terem
sido vítimas. É exigir demais das pessoas comuns. É freqüente que a vítima se transforme em carniceiro. O pobre
homem, assim como os pobres de espírito a quem se ajudou, passa a odiá-lo ... porque eles desejam esquecer o
passado, a humilhação, a dor e o fato de terem conseguido algo com a ajuda de alguém, por causa da piedade de
alguém, e não por si mesmos ... Como escapar à dor e à humilhação? A forma natural é matar ou humilhar seu algoz
ou benfeitor. Ou encontrar outra pessoa, mais fraca, para triunfar sobre ela.
Tenhamos o cuidado de rejeitar delicadamente a advertência de Zhelazkova. As condições
contrárias à humanidade comum parecem realmente insuperáveis. As armas não falam, embora os sons
dos seres humanos falando pareçam uma resposta abominavelmente débil ao zunido dos mísseis e ao
ruído ensurdecedor dos explosivos.
A memória é uma bênção ambígua. Mais precisamente, é ao mesmo tempo uma bênção e uma
maldição lançada sobre alguém. Pode "manter vivas" muitas coisas de valor profundamente desigual para
o grupo e seus vizinhos. O passado é uma grande quantidade de eventos, e a memória nunca retém todos
eles. E o que quer que ela retenha ou recupere do esquecimento nunca é reproduzido em sua forma
"prístina" (o que quer que isso signifique). O "passado como um todo" e o passado "wie es ist eigentlich
gewesen" (como Ranke insinuou que deveria ser retomado pelos historiadores), nunca é recapturado pela
memória. E se o fosse, a memória seria francamente um risco e não uma vantagem para os vivos. Ela
seleciona e interpreta - e o que deve ser selecionado e como precisa ser interpretado é um tema
discutível, objeto de contínua disputa. Fazer ressurgir o passado, mantê-lo vivo, só pode ser alcançado
mediante o trabalho ativo - escolher, processar, reciclar - da memória.
Em A exigência ética, Logstrup manifestou uma visão mais otimista das inclinações naturais
humanas.
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"É uma característica da vida humana que normalmente encaremos uns aos outros com natural
confiança", escreveu ele. "Só em função de alguma circunstância especial desconfiamos antecipadamente
de um estranho... Em circunstâncias normais, contudo, nós aceitamos a palavra do estranho e não
duvidamos dele até que tenhamos uma razão particular para isso. Nunca suspeitamos da falsidade de uma
pessoa até que a tenhamos apanhado numa mentira." (2)
Logstrup elaborou A exigência ética durante os oito anos subseqüentes ao seu casamento com
Rosalie Maria Pauly, passados numa pequena e tranqüila paróquia da Ilha de Funen. Com o devido
respeito aos amigáveis e sociáveis moradores de Aarhus, onde Logstrup viveria o restante de seus dias
ensinando teologia na universidade local, duvido que ele pudesse ter concebido tais idéias caso tivesse se
estabelecido naquela cidade e confrontado diretamente as realidades do mundo em guerra e sob ocupação,
como um membro ativo da resistência dinamarquesa.
As pessoas tendem a tecer suas memórias do mundo utilizando o fio de suas experiências. Os
membros da atual geração podem achar artificial a imagem luminosa e alegre de um mundo confiante e
fiel - em profundo desacordo com o que eles próprios aprendem diariamente e com o que é insinuado
pelas narrativas comuns da experiência humana e recomendado pelas estratégias de vida que lhes são
apresentadas no dia-a-dia. Prefeririam reconhecer-se nos atos e confissões dos personagens que aparecem
na onda mais recente de programas televisivos, altamente populares e avidamente assistidos, tipo Big
Brother, Survivor e The Weakest Link. Eles passam uma mensagem bem diferente: um estranho não é
alguém em quem se deva confiar. A série Survivor tem um subtítulo que diz tudo: "Não confie em
ninguém." Os lãs e adeptos dos "reality shows" televisivos poderiam inverter o veredicto de Logstrup: "É
uma característica da vida humana que normalmente encaremos uns aos outros com natural suspeita."
Esses espetáculos televisivos que tomaram milhões de espectadores de assalto e imediatamente
capturaram sua imaginação eram ensaios públicos sobre a descartabilidade dos seres humanos. Traziam
prazer e advertência juntos, com a mensagem de que ninguém é indispensável, ninguém tem o direito a
sua parte dos frutos de um esforço conjunto apenas por ter dado alguma contribuição ao seu crescimento
- muito menos por ser simplesmente um membro da equipe. A vida é um jogo duro para pessoas duras,
dizia a mensagem. Cada jogo começa do zero, méritos passados não contam, você tem tanto valor quanto
os resultados de seu último duelo. Cada jogador, a cada momento, está por conta própria, e para progredir
(sem falar em chegar ao topo!) deve primeiro colaborar na exclusão de muitas outras pessoas ávidas por
sobrevivência e sucesso que estão bloqueando o caminho - mas apenas para superar, uma por uma,
todas aquelas com quem tivemos de cooperar, e abandoná-las, derrotadas e inúteis.
Os outros são, em primeiro lugar e acima de tudo, competidores, tramando como qualquer
competidor, cavando buracos, preparando emboscadas, torcendo para que venhamos a tropeçar e cair. Os
trunfos que ajudam os vencedores a superar a concorrência e emergir triunfantes da batalha impiedosa são
de muitos tipos, variando da autoconfiança ruidosa à humilde auto-aniquilação. E no entanto,
independente do estratagema empregado, dos trunfos dos sobreviventes e das deficiências dos perdedores,
a história da sobrevivência tende a se desenvolver da mesma e monótona maneira: num jogo de
sobrevivência, confiança, compaixão e clemência (os atributos supremos de Logstrup) são fatores
suicidas. Se você não for mais duro e menos escrupuloso do que todos os outros, será liquidado por eles,
com ou sem remorso. Estamos de volta à triste verdade do mundo darwiniano: é o mais apto que
invariavelmente sobrevive. Ou melhor, a sobrevivência é a derradeira prova de aptidão.
Se os jovens de nosso tempo fossem leitores de livros, e particularmente de livros antigos que não
se encontram nas atuais listas de mais vendidos, tenderiam a concordar com a amarga e sombria imagem
do mundo pintada por Leon Shestov, exilado russo e filósofo da Sorbonne: "Homo homini lupus é uma
das máximas mais inabaláveis da moral eterna. Em cada um de nossos vizinhos tememos um lobo ...
Somos tão pobres, tão fracos, tão facilmente arruináveis e destrutíveis! Como podemos deixar de ter
medo? ... Enxergamos o perigo, apenas o perigo..." (3) Eles insistiriam - como o fez Shestov e como se
tornou senso comum, graças a programas do tipo Big Brother - em afirmar que este é um mundo duro,
feito para pessoas duras: um mundo de indivíduos relegados a se basearem unicamente em seus próprios
ardis, tentando ultrapassar e superar uns aos outros. Ao conhecer um estranho você precisa em primeiro
lugar de vigilância, e em segundo e terceiro lugares de vigilância. Aproximar-se, colocar-se ombro a
ombro e trabalhar em equipe fazem muito sentido enquanto o ajudam a avançar em seu próprio caminho.
Mas perdem a razão de ser quando não trazem mais benefícios, ou quando estes - esperada ou apenas
possivelmente - são menores que os obtidos evitando-se compromissos e cancelando-se obrigações.
Os jovens que estão nascendo, crescendo e amadurecendo nesta virada do século XX para o XXI
também achariam familiar, talvez até auto-evidente, a descrição de Anthony Giddens do
"relacionamento puro" (4).
O "relacionamento puro" tende a ser, nos dias de hoje, a forma predominante de convívio humano,
na qual se entra "pelo que cada um pode ganhar" e se "continua apenas enquanto ambas as partes
imaginem que estão proporcionando a cada uma satisfações suficientes para permanecerem na relação".
O atual "relacionamento puro", na descrição de Giddens, não
é, como o casamento um dia foi, uma "condição natural" cuja durabilidade possa ser tomada como algo garantido, a
não ser em circunstâncias extremas. É uma característica do relacionamento puro que ele possa ser rompido, mais ou
menos ao bel-prazer, por qualquer um dos parceiros e a qualquer momento. Para que uma relação seja mantida, é
necessária a possibilidade de compromisso duradouro. Mas qualquer um que se comprometa sem reservas arrisca-se a
um grande sofrimento no futuro, caso ela venha a ser dissolvida.
O compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas, em particular o compromisso
incondicional e certamente aquele do tipo "até que a morte nos separe", na alegria e na tristeza, na riqueza
ou na pobreza, parece cada vez mais uma armadilha que se deve evitar a todo custo.
Sobre as coisas que aprovam, os jovens de língua inglesa dizem "cool". Uma palavra adequada:
independentemente das outras características que os atos e interações humanos possam ter, não se deve
admitir que a interação esquente e particularmente que permaneça quente: é boa enquanto continua cool,
e ser cool significa que é boa. Se você sabe que seu parceiro pode preferir abandonar o barco a qualquer
momento, com ou sem a sua concordância (tão logo ache que você perdeu seu potencial como fonte de
deleite, conservando poucas promessas de novas alegrias, ou apenas porque a grama do vizinho parece
mais verde), investir seus sentimentos no relacionamento atual é sempre um passo arriscado. Investir
fortes sentimentos na parceria e fazer um voto de fidelidade significa aceitar um risco enorme: isso o
torna dependente de seu parceiro (embora devamos observar que essa dependência, que agora está se
tornando rapidamente um termo pejorativo, é aquilo em que consiste a responsabilidade moral pelo Outro
- tanto para Logstrup quanto para Levinas).
Para esfregar sal na ferida, a dependência - devido à "pureza" de seu relacionamento - não pode
nem precisa ser recíproca. Assim, você está amarrado, mas seu parceiro continua livre para ir e vir, e
nenhum tipo de vínculo que possa manter você no lugar é suficiente para assegurar que ele não o faça. O
conhecimento amplamente compartilhado - na verdade, um lugar-comum - de que todos os
relacionamentos são "puros" (ou seja, frágeis, fissíparos, tendentes a não durar mais do que a
conveniência que trazem, e portanto sempre "até segunda ordem") dificilmente seria um solo em que a
confiança pudesse fincar raízes e florescer.
Parcerias frouxas e eminentemente revogáveis substituíram o modelo da união pessoal "até que a
morte nos separe" que ainda se mantinha (mesmo que mostrando um número crescente de fissuras
desconcertantes) na época em que Logstrup registrou sua crença na "naturalidade" e "normalidade" da
confiança e anunciou seu veredicto de que era a suspensão ou supressão da confiança, e não o seu dom
incondicional e espontâneo, que constituía uma exceção causada por circunstâncias extraordinárias que,
portanto, exigiam uma explicação.
A fraqueza, a debilidade e a vulnerabilidade das parcerias pessoais não são, contudo, as únicas
características do atual ambiente de vida a solaparem a credibilidade das hipóteses de Logstrup. Uma
inédita fluidez, fragilidade e transitoriedade em construção (a famosa "flexibilidade") marcam todas as
espécies de vínculos sociais que, uma década atrás, combinaram-se para constituir um arcabouço
duradouro e fidedigno dentro do qual se pôde tecer com segurança uma rede de interações humanas. Elas
afetam particularmente, e talvez de modo mais seminal, o emprego e as relações profissionais. Com o
desaparecimento da demanda por certas habilidades num tempo menor do que o necessário para adquirilas
e dominá-las; com credenciais educacionais perdendo valor em relação ao custo anual de sua
aquisição ou mesmo transformando-se em "eqüidade negativa" muito antes de sua "data de vencimento"
supostamente vitalícia; com empregos desaparecendo sem aviso, ou quase; e com o curso da existência
fatiado numa série de projetos singulares cada vez menores, as perspectivas de vida crescentemente se
parecem com as convoluções aleatórias de projéteis inteligentes em busca de alvos esquivos, efêmeros e
móveis, e não com a trajetória pré-planejada, predeterminada e previsível de um míssil balístico.
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O mundo de hoje parece estar conspirando contra a confiança.
A confiança deve continuar sendo, como sugere Knud Logstrup, um derramamento natural da
"expressão soberana da vida", mas, uma vez posta em curso, agora procura em vão por um lugar para
lançar âncora. A confiança foi condenada a uma vida cheia de frustração. Pessoas (sozinhas,
individualmente ou em conjunto) empresas, partidos, comunidades, grandes causas ou padrões de vida
investidos com a autoridade de guiar nossa existência freqüentemente deixam de compensar a devoção.
De qualquer forma, é raro serem modelos de coerência e continuidade a longo prazo. Dificilmente há um
único ponto de referência sobre o qual se possa concentrar a atenção de modo fidedigno e seguro, para
que os desorientados possam ser eximidos do fatigante dever da vigilância constante e das incessantes
retrações de passos dados ou pretendidos. Não se dispõe de pontos de orientação que pareçam ter uma
expectativa de vida mais longa do que os próprios necessitados de orientação, por mais curtas que possam
ser suas existências físicas. A experiência individual aponta obstinadamente para o eu como o eixo mais
provável da duração e da continuidade procuradas com tanta avidez.
Em nossa sociedade supostamente adepta da reflexão, não é provável que se reforce muito a
confiança. Um exame ponderado dos dados fornecidos pelas evidências da vida aponta na direção aposta,
revelando repetidamente a perpétua inconstância das regras e a fragilidade dos laços. Mas será que isso
significa que a decisão de Logstrup de investir as esperanças de moralidade na espontânea tendência
endêmica à confiança nos outros teria sido invalidada pela incerteza endêmica que satura o mundo de
hoje?
Poderíamos dizer isso - não fosse pelo fato de que a visão segundo a qual os impulsos morais
nascem da reflexão nunca foi a de Logstrup. Pelo contrário: de seu ponto de vista, a esperança de
moralidade caracterizava-se precisamente por sua espontaneidade pré-reflexiva: "A compaixão é
espontânea porque a menor interrupção, a menor maquinação, a menor diluição para que sirva a algum
outro propósito provocam sua destruição total - na verdade, transformam-na em seu oposto, a
desumanidade." (5)
Emmanuel Levinas é conhecido por insistir em que a pergunta "por que eu deveria ser ético" (ou
seja, pedindo argumentos do tipo "o que ganho com isso?", "o que essa pessoa me fez para justificar
minha atenção?" ou "será que outra pessoa não poderia fazer isso em meu lugar?") não é o ponto de
partida da conduta moral, mas sim um sinal de sua morte, da mesma forma que toda amoralidade
começou com a pergunta de Caim: "Serei eu o protetor de meu irmão?" Logstrup parece concordar.
"A necessidade da moral' (essa expressão já é um paradoxo, pois aquilo que responde a uma
"necessidade", não importa o que seja, é algo diferente da moral) ou simplesmente sua "conveniência"
não podem ser estabelecidas discursivamente, muito menos provadas. A moral nada mais é que uma
manifestação de humanidade inatamente estimulada - não "serve" a propósito algum e com toda certeza
não é guiada pela expectativa de lucro, conforto, glória ou auto-engrandecimento. É verdade que ações
objetivamente boas - proveitosas e úteis - têm sido muitas vezes realizadas em função do cálculo de
lucro do agente, seja obter a graça divina, ganhar o respeito público ou livrar-se da crueldade
demonstrada em outras ocasiões. Esses atos, porém, não podem ser classificados como genuinamente
morais precisamente por terem sido assim motivados.
Nos atos morais, insiste Logstrup, "exclui-se um motivo ulterior". A expressão espontânea da vida
é radical precisamente graças à "ausência de motivos ulteriores" - tanto amorais quanto morais. Essa é
mais uma razão pela qual a demanda ética, essa pressão "objetiva" para que sejamos éticos, emanada do
próprio fato de se estar vivo e compartilhando o planeta com outros, é e deve ser silenciosa. Já que a
"obediência à demanda ética" pode facilmente transformar-se (ser deformada e distorcida) num motivo de
conduta, essa demanda está em sua melhor forma quando é esquecida e não se pensa nela: sua
radicalidade "consiste em exigir o que e supérfluo" (6). "A imediação do contato humano é sustentada
pelas expressões imediatas da vida" (7) e não precisa de outros apoios, nem de fato os tolera.
Em termos práticos, ela significa que, não importa o quanto um ser humano possa ressentir-se por
ter sido abandonado (em última instância) à sua própria deliberação e responsabilidade, é precisamente
esse abandono que contém a esperança de um convívio moralmente fecundo. A esperança - não a
certeza.
A espontaneidade e a soberania das expressões de vida não respondem pela conduta resultante
como sendo a escolha eticamente adequada e louvável entre o bem e o mal. A questão, porém, é que erros
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crassos e escolhas acertadas surgem da mesma condição - assim como os covardes impulsos de correr
em busca de proteção que as ordens peremptórias obrigatoriamente provêem e a coragem de aceitar a
responsabilidade. Sem se preparar para a possibilidade de fazer escolhas erradas, é difícil haver uma
forma de perseverar na busca da escolha certa. Longe de ser uma grande ameaça à moral (e logo
abominável para os filósofos éticos), a incerteza é a terra natal da pessoa ética e o único solo em que a
moral pode brotar e florescer.
Mas, como Logstrup prontamente nos assinala, é a "imediação do contato humano" que é
"sustentada pelas expressões imediatas de vida". Presumo que a conexão e o condicionamento mútuo
ajam nos dois sentidos. A "imediação" parece desempenhar no pensamento de Logstrup um papel
semelhante ao da "proximidade" nos textos de Levinas. As "expressões imediatas da vida" são disparadas
pela proximidade, ou pela presença imediata de outro ser humano - fraco e vulnerável, sofrendo e
precisando de auxílio. Somos desafiados pelo que vemos. E desafiados a agir - a ajudar, defender, trazer
alívio, curar ou salvar.
"A expressão soberana da vida" é outro "fato cru" - tal como a "responsabilidade" de Levinas ou
mesmo a "demanda ética" de Logstrup.
Ao contrário da demanda ética, eternamente à espera, inaudível, inexaurida, irrealizada e talvez, a
princípio, irrealizável e inexaurível, a expressão soberana da vida sempre se realiza e se conclui
prontamente - embora não por escolha, mas "de modo espontâneo, sem que se exija" (8). É, podemos
presumir, essa condição "sem escolha" das expressões da vida que explica a imputação de "soberania".
"A expressão soberana da vida" pode ser vista como outro nome para o Befindlichkeit ("estar
situado", noção essencialmente ontológica) de Martin Heidegger, combinado com seu Stimmung ("estar
sintonizado", reflexo epistemológico do "estar situado"). (9) Como Heidegger insinuou, antes que se
possa iniciar qualquer escolha já estamos imersos no mundo e sintonizados com essa imersão - armados
de Vorurteil, Vorhabe, Vorsicht, Vorgriff, todas essas capacidades com o prefixo "vor" ("pré") que
antecedem todo o conhecimento e constituem a sua própria possibilidade. Mas o Stimmung heideggeriano
relaciona-se intimamente com o das Man - o "ninguém, ao qual toda a nossa existência ... já se rendeu".
"No início, eu não sou 'eu' no sentido do meu próprio eu. Para começo de conversa, ser é Man e tende a
permanecer assim." Esse estado de "Ser como das Man" é, em sua essência, o estado da conformidade an
sich, inconsciente de si mesma como conformidade (e que portanto não deve ser confundida com a
escolha soberana da solidariedade). Na medida em que aparece sob o disfarce do das Man, o Mitsein
("Ser Com") é uma fatalidade, não um destino nem uma vocação. E assim é a conformidade com a
rendição ao das Man: deve primeiro ser desmascarada como conformidade antes de ser rejeitada e
combatida no ato crítico da auto-afirmação, ou abraçada entusiasticamente como uma estratégia e um
propósito de vida.
Por outro lado, ao insistir em sua "espontaneidade", Logstrup sugere essa condição de "an sich"
para as expressões de vida, reminiscente daquela do Befindlichkeit e do Stimmung. Ao mesmo tempo,
contudo, parece identificar a expressão soberana da vida com a rejeição daquela conformidade "primeva",
"naturalmente dada" (ele tem fortes objeções à "absorção" das expressões soberanas pela conformidade,
sua "submersão numa vida em que um indivíduo imita outro"), embora não identificasse nenhuma delas
com o ato original da auto-emancipação, da ruptura do escudo protetor da condição an sich. Logstrup
insiste que "não é precipitado concluir que a expressão soberana da vida vai prevalecer" (10).
A expressão soberana tem um adversário poderoso - a expressão "constrangida", induzida
externamente e portanto heterônoma em vez de autônoma, ou ainda (numa interpretação provavelmente
mais afinada com a intenção de Logstrup) uma expressão cujos motivos (já re-presentados, ou melhor,
desvirtuados, como causas) se projetam sobre os agentes externos.
Exemplos da expressão "constrangida" são designados como ofensa, ciúme e inveja. Em cada
caso, um traço marcante da conduta é o auto-engano destinado a ocultar as fontes genuínas da ação. Por
exemplo, o indivíduo "tem uma opinião muito elevada de si mesmo para tolerar a idéia de ter agido
erradamente, e assim apela à ofensa para desviar a atenção de seu próprio deslize, o que consegue
identificando-se com a parte prejudicada ... Obtendo-se satisfação em ser a parte prejudicada, deve-se
inventar erros para alimentar a autocondescendência." (10) A natureza autônoma da ação é, portanto,
suprimida - é a outra parte, acusada da má conduta original, do delito que deu origem a tudo, apresentada como o verdadeiro ator do drama. O eu permanece, assim, totalmente do lado receptor.
Sofre as ações dos outros em vez de ser um ator por direito próprio.
Uma vez abraçada, tal visão parece propelir-se e reforçar-se por si mesma. Para manter a
credibilidade, o ultraje imputado à outra parte deve ser mais assustador e acima de tudo menos curável ou
redimível, e os conseqüentes sofrimentos das vítimas devem ser declarados ainda mais abomináveis e
dolorosos, de modo que a vítima autodeclarada possa prosseguir justificando medidas cada vez mais
duras "em justa resposta" à ofensa cometida ou "em defesa" contra ofensas ainda por cometer. As ações
"constrangidas" precisam negar constantemente sua autonomia. É por essa razão que elas constituem o
obstáculo mais radical à admissão da soberania do eu e a que este atue de maneira consoante com tal
admissão.
A superação das restrições auto-impostas mediante o desmascaramento e a desvalidação do autoengano
sobre o qual elas se baseiam emerge assim como condição preliminar e indispensável para dar
asas à expressão soberana da vida - uma expressão que se manifesta, em primeiro lugar e acima de tudo,
na confiança, na misericórdia e na compaixão.
Durante a maior parte da história humana, a "imediação da presença" se superpôs à potencial e
viável "imediação da ação".
Nossos ancestrais dispunham de poucos instrumentos (se é que chegavam a dispor de algum) que
os capacitassem a agir efetivamente a grande distância, - mas dificilmente se expunham à visão de um
sofrimento humano que fosse distante demais para ser alcançado pelos instrumentos de que dispunham. A
totalidade das escolhas morais com que nossos ancestrais se confrontavam poderia ser quase totalmente
encerrada dentro do espaço limitado da imediação, dos encontros face a face e da interação. A escolha
entre o bem e o mal, quando enfrentada, podia assim ser inspirada, influenciada e, em princípio, até
mesmo controlada pela "expressão soberana da vida".
Hoje em dia, porém, o silêncio do mandado ético é mais ensurdecedor que nunca. Esse mandado
instiga e dirige secretamente as "expressões soberanas da vida". Mas ainda que elas tenham mantido sua
imediação, os objetos que as desencadeiam e atraem navegaram para longe, muito além do espaço da
proximidade/ imediação. Somando-se ao que podemos ver a olho nu (sem ajuda) em nossa vizinhança
imediata, agora estamos expostos diariamente ao conhecimento "mediado" da miséria e da crueldade
distantes. Todos agora temos televisão; mas poucos de nós têm acesso aos meios de teleação.
Se a miséria que podíamos não apenas ver, mas também mitigar ou curar, nos lançasse numa
situação de escolha moral capaz de ser administrada pela "expressão soberana da vida" (mesmo que isso
fosse dolorosamente difícil), o fosso crescente entre aquilo de que (indiretamente) nos tornamos
conscientes e aquilo que podemos (diretamente) influenciar eleva a incerteza que acompanha todas as
escolhas morais a alturas sem precedentes, nas quais nossos dotes éticos não estão acostumados e talvez
nunca sejam capazes de operar.
A partir dessa dolorosa percepção de impotência, talvez insuportável, ficamos tentados a correr
em busca de abrigo. A tentação de converter em "inatingível" o que é "difícil de administrar" é constante,
e crescente...
"Quanto mais nos destacamos de nossas vizinhanças imediatas, mais dependemos da vigilância
desse ambiente ... Os lares de muitas áreas urbanas do mundo agora existem para proteger seus
habitantes, não para integrar as pessoas a suas comunidades", observam Gumpert e Drucker. (12)
"À medida que os moradores ampliam seus espaços de comunicação para a esfera internacional,
simultaneamente conduzem suas casas para longe da vida pública por meio de infra-estruturas de
segurança cada vez mais 'inteligentes-, comentam Graham e Marvin. (13) "Virtualmente todas as
cidades do mundo começam a apresentar espaços e zonas poderosamente conectadas a outros espaços
'valorizados', cruzando a paisagem urbana e as distâncias nacionais, internacionais e até mesmo globais.
Ao mesmo tempo, porém, muitas vezes há em tais lugares um palpável e crescente senso de desconexão
local em relação a áreas e pessoas fisicamente próximas, mas social e economicamente distantes." (14)
O produto excedente da nova extraterritorialidade-mediante-a-conectividade dos espaços urbanos
privilegiados, habitados e usados pela elite global são as áreas desconectadas e abandonadas - as "alas
fantasmas" de Michael Schwarzer, onde "os sonhos foram substituídos por pesadelos e o perigo e a
violência são mais banais do que em outros lugares" (15). Para manter as distâncias intransponíveis e
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afastar os perigos de vazamento e contaminação da pureza regional, os instrumentos acessíveis são
impor a tolerância zero e exilar os sem-teto dos espaços em que podem ganhar a vida (mas nos quais
também se fazem atrevida e exasperantemente visíveis) para outros, afastados, nos quais não podem fazer
nem uma coisa nem outra.
Tal como sugerido pela primeira vez por Manuel Castells, há uma crescente polarização e uma
ruptura de comunicação ainda mais completa entre os mundos em que vivem as duas categorias de
residentes urbanos:
O espaço da camada superior é geralmente conectado à comunicação global e a uma ampla rede de intercâmbio,
aberta a mensagens e experiências que abrangem o mundo inteiro. Na outra extremidade do espectro, redes locais
segmentadas, freqüentemente de base étnica, apoiam-se em sua identidade como o mais valioso recurso para defender
seus interesses e, em última instância, o seu ser. (16)
A imagem que emerge dessa descrição é de dois mundos segregados e distintos. Só o segundo
deles é territorialmente circunscrito e pode ser capturado nas malhas das noções geográficas ortodoxas,
mundanas e terra a terra. Os que vivem no primeiro desses dois mundos podem estar, como os outros, "no
lugar", mas não são "do lugar" - decerto não espiritualmente, mas com muita freqüência tampouco
fisicamente, quando é seu desejo.
As pessoas da "camada superior" não pertencem ao lugar que habitam, pois suas preocupações se
situam (ou melhor, flutuam) alhures. Pode-se imaginar que, além de serem deixadas sós e portanto livres
para se dedicarem totalmente a seus passatempos, e tendo assegurados os serviços necessários para suas
necessidades e confortos do dia-a-dia (como quer que os definam), elas não têm outros interesses na
cidade em que se localizam as suas residências. A população urbana não é - como costumava ser para os
proprietários de fábricas e os comerciantes de artigos de consumo e de idéias de outrora - seu campo de
pastagem, a fonte de sua riqueza ou um bem sob sua custódia, cuidado e responsabilidade. Portanto eles
estão, em conjunto, despreocupados em relação aos assuntos da "sua" cidade, apenas uma localidade entre
muitas, todas elas pequenas e insignificantes do ponto de vista do ciberespaço - seu lar genuíno, ainda
que virtual.
O mundo em que vive a outra camada de moradores da cidade, "inferior", é o exato oposto do
primeiro. Define-se sobretudo por ser isolado daquela rede mundial de comunicação pela qual as pessoas
da "camada superior" se conectam e com a qual suas vidas se sintonizam. Os habitantes urbanos da
camada inferior estão "condenados a permanecerem locais" - e portanto se espera, e deve-se esperar,
que sua atenção, repleta de descontentamentos, sonhos e esperanças, se concentre nos "assuntos locais".
Para eles, é dentro da cidade que habitam que a batalha pela sobrevivência e por um lugar decente no
mundo é desencadeada, travada, por vezes ganha, mas geralmente pedida.
O desligamento da nova elite global em relação a seus antigos engajamentos com o populus local
e o crescente hiato entre os espaços vivos/vividos dos que se separaram e dos que foram deixados para
trás é comprovadamente o mais seminal de todos os afastamentos sociais, culturais e políticos associados
à passagem do estado "sólido" para o estado "líquido" da modernidade.
Há muita verdade, e nada além da verdade, no quadro acima esboçado. Mas não toda a verdade.
Das partes da verdade que estão faltando ou foram subestimadas, a principal é aquela que, mais
que qualquer outra, responde pela característica mais vital (e provavelmente mais influente a longo prazo)
da vida urbana contemporânea: a íntima interação entre as pressões globalizantes e o modo como as
identidades locais são negociadas, construídas e reconstruídas.
É um erro grave localizar os aspectos "globais" e "locais" das condições de existência e da política
de vida contemporâneas em duas esferas distintas que só se comunicam marginal e ocasionalmente, como
a opção por sair, feita pela "camada superior", em última análise indicaria. Em estudo recentemente
publicado, Michael Peter Smith desaprova a visão (sugerida, em sua opinião, por David Harvey ou John
Friedman, entre outros) que opõe "uma lógica dinâmica, mas desenraizada, dos fluxos econômicos
globais [a] uma imagem estática do lugar e da cultura local'; agora "valorizados" como o "locus da
existência" do "estar no mundo"" Na opinião do próprio Smith, "longe de refletir uma estática ontologia
do 'ser' ou da 'comunidade' as localidades são construções dinâmicas 'em formação'".
Com efeito, a linha que estabelece a separação entre o espaço abstrato ("algum lugar em lugar
nenhum") dos operadores globais e o espaço a nosso alcance, polpudo, tangível, sumamente "aqui e
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agora" dos habitantes "locais", só pode ser traçada com facilidade no mundo etéreo da teoria. Nele, os
conteúdos emaranhados e entrelaçados dos mundos humanos são, primeiramente "esticados" e, em
seguida, organizados e armazenados, cada qual no seu próprio compartimento, em beneficio da
inteligibilidade. As realidades da vida urbana, porém, destroem essas divisões nítidas. Os elegantes
modelos de vida na cidade e as oposições agudas exibidas na sua construção podem proporcionar grande
satisfação intelectual aos formuladores de teorias, mas pouca orientação prática aos planejadores urbanos,
e ainda menos apoio aos habitantes das cidades em sua luta contra os desafios de viver nelas.
Os verdadeiros poderes que moldam as condições sob as quais todos nós agimos hoje em dia fluem
num espaço global, enquanto nossas instituições de ação política permanecem, em seu conjunto,
presas ao chão; elas são, tal como antes, locais.
Por continuarem principalmente locais, as agências políticas que operam no espaço urbano
tendem, fatalmente, a ser atormentadas por uma insuficiência de poder de ação, e particularmente de ação
efetiva e soberana, no palco em que se desenrola o drama da política. Outro resultado, porém, é a escassez
de política no ciberespaço extraterritorial, o playground dos poderes.
Em nosso mundo globalizante, a política tende a ser crescente, apaixonada e conscientemente
local. Despejada do ciberespaço, ou tendo o acesso a ele negado, a política recua e repercute sobre os
assuntos que estão "ao alcance", sobre questões locais e relações de vizinhança. Para a maioria de nós,
durante a maior parte do tempo, esses parecem ser os únicos temas em relação aos quais podemos "fazer
alguma coisa" influenciar, corrigir, aperfeiçoar, redirecionar. É somente nas questões locais que nossa
ação ou inação "faz diferença", enquanto para as outras, reconhecidamente supra-locais, "não há
alternativa" (ou pelo menos é o que repetem nossos líderes políticos e todas as "pessoas que estão por
dentro"). Chegamos a suspeitar que, dados os meios e recursos miseravelmente inadequados de que
dispomos, as coisas assumirão seu próprio curso independente daquilo que fazemos ou poderíamos, com
sensatez, imaginar fazer.
Mesmo assuntos com fontes e causas indubitavelmente globais, remotas e recônditas só ingressam
no domínio das preocupações políticas por meio de suas ramificações e repercussões locais. A poluição
do ar ou dos suprimentos de água transforma-se em assunto político quando um aterro de lixo tóxico é
instalado na porta ao lado, no "nosso jardim", numa proximidade de nossa casa que é, ao mesmo tempo,
de uma intimidade assustadora e estimulantemente "a nosso alcance" A comercialização progressiva dos
temas de saúde, obviamente um efeito da desabrida caça aos lucros empreendida pelos gigantes
farmacêuticos supranacionais, entra no panorama político quando se derruba um posto de saúde ou
quando os asilos param e sanatórios locais são desativados. Quem teve de lidar com os danos causados
pelo terrorismo global foram os moradores de uma cidade, Nova Iorque, assim como foram as câmaras e
prefeitos de outras cidades que tiveram de assumir a responsabilidade pela proteção da segurança
individual de seus habitantes, vista agora como vulnerável diante de forças entrincheiradas muito além do
alcance de qualquer municipalidade. A devastação global dos modos de subsistência e o desarraigamento
de populações há muito estabelecidas entram no horizonte da ação política por meio de pitorescos
"migrantes econômicos" entupindo ruas que antes pareciam tão uniformes...
Para resumir uma longa história: as cidades se tornaram depósitos de lixo para problemas gerados
globalmente. Os moradores das cidades e seus representantes eleitos tendem a ser confrontados com uma
tarefa que nem por exagero de imaginação seriam capazes de cumprir: a de encontrar soluções locais para
contradições globais.
Daí o paradoxo, observado por Castells, de "políticas cada vez mais locais num mundo estruturado
por processos cada vez mais globais"* "Houve uma produção de significado e de identidade: meu bairro,
minha comunidade, minha cidade, minha escola, minha árvore, meu rio, minha praia, minha capela,
minha paz, meu meio ambiente." "Indefesas diante do furacão global, as pessoas se agarraram a si
mesmas."" Observe-se que, quanto mais estiverem "agarradas a si mesmas", mais indefesas tenderão a
ficar "diante do furacão global", assim como mais desamparadas ao determinarem os significados e
identidades locais, e portanto ostensivamente seus - para grande alegria dos operadores globais, que não
têm motivos para temer os indefesos.
Como Castells insinua em outro texto, a criação do "espaço dos fluxos" estabelece uma nova
hierarquia (global) de dominação mediante a ameaça de desengajamento. O "espaço dos fluxos" pode
"escapar ao controle de qualquer localidade", enquanto (e porque!) "o espaço dos lugares é fragmentado, localizado, e portanto crescentemente destituído de poder diante da versatilidade do espaço dos fluxos.
A única chance de resistência das localidades consiste em recusar direitos de propriedade a esses fluxos
esmagadores - apenas para vê-los atracar na localidade vizinha, provocando o desvio e a marginalização
de comunidades rebeldes" (19).
A política local - e em particular a política urbana - tornou-se desesperadamente
sobrecarregada, muito além de sua capacidade de carga/desempenho. Agora espera-se que alivie as
conseqüências da globalização descontrolada usando meios e recursos que essa mesmíssima globalização
tornou lamentavelmente inadequados.
Em nosso mundo em rápido processo de globalização, ninguém é um "operador global" puro e
simples. O máximo que os membros da elite internacional globalmente influente podem conseguir é
ampliar sua esfera de mobilidade.
Se as coisas se tornam desconfortavelmente quentes e o espaço em torno de suas residências
urbanas se mostra muito perigoso e difícil de administrar, eles podem se mudar para outro lugar - opção
de que não dispõem seus vizinhos (fisicamente) próximos. Essa opção de escapar aos desconfortos locais
lhes dá uma independência com que os outros podem apenas sonhar, assim como o luxo de uma
indiferença arrogante que estes não se podem permitir. Seu compromisso de "colocar em ordem os
assuntos da cidade" tende a ser consideravelmente menos integral e incondicional que o compromisso
daqueles que têm menos liberdade para romper os vínculos locais de modo unilateral.
Mas isso não significa que, na busca pelo "sentido e identidade" de que eles necessitam e anseiam
de modo não menos intenso do que as outras pessoas, os membros da elite globalmente conectada possam
desconsiderar o lugar em que vivem e trabalham. Como todos os outros homens e mulheres, eles são
parte da paisagem humana, e nela estão registradas as suas vacilantes aspirações existenciais. Como
operadores globais, podem perambular pelo ciberespaço. Mas como agentes humanos estão, dia após dia,
confinados ao espaço físico em que operam, ao ambiente preestabelecido e continuamente reprocessado
no curso de suas lutas por sentido e identidade. A experiência humana é formada e compilada, a partilha
da vida é administrada, seu significado é concebido, absorvido e negociado em torno de lugares. E é nos
lugares e a partir deles que os impulsos e desejos humanos são gerados e incubados, que vivem na
esperança de se realizarem, que se arriscam a se frustrar e, na verdade, com muita freqüência, se frustram.
As cidades contemporâneas são campos de batalha em que os poderes globais e os significados e
identidades obstinadamente locais se encontram, se chocam, lutam e buscam um acordo que se mostre
satisfatório ou pelo menos tolerável - um modo de coabitação que encerre a esperança de uma paz
duradoura, mas que, em geral, se revela um simples armistício, um intervalo para reparar as defesas
avariadas e redistribuir as unidades de combate. É esse confronto, e não algum fator singular, que coloca
em movimento e orienta a dinâmica da cidade "líquido-moderna".
E que não haja equívocos: qualquer cidade, ainda que nem todas no mesmo grau. Em recente
viagem a Copenhague, Michael Peter Smith registrou que, em apenas uma hora de caminhada, passou
"por pequenos grupos de imigrantes turcos, africanos e do Oriente Médio", observou "diversas mulheres
árabes com e sem véu" leu "anúncios em várias línguas não-européias" e teve "uma conversa interessante
com um barman irlandês, num pub inglês, em frente ao jardim Tivoli." (20) Essas experiências de campo
se mostraram valiosas, diz Smith, na palestra sobre conexões transnacionais que ele apresentou naquela
cidade na mesma semana, "quando um debatedor insistiu em afirmar que o transnacionalismo era um
fenômeno que podia ser aplicado a 'cidades globais, como Nova Iorque ou Londres, mas tinha pouca
importância em lugares mais isolados como Copenhague".
A história recente das cidades norte-americanas está cheia de viradas de 180 graus - mas ela é
plenamente caracterizada pelas preocupações com proteção e segurança.
O que aprendemos, por exemplo, com o estudo de John Hannigan (21) é que na segunda metade
do século xx um súbito horror ao crime oculto nas esquinas sombrias das áreas centrais tomou de assalto
os habitantes das regiões metropolitanas dos Estados Unidos, provocando uma "fuga branca" dos centros
das cidades - embora poucos anos antes essas mesmas áreas tivessem se tornado ímãs poderosos para
multidões ávidas por divertimento de massa, que só essas zonas, e não outras menos densamente
povoadas, podiam oferecer.
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Não importa se o medo do crime tinha bases sólidas ou se o súbito crescimento da
criminalidade foi um produto de imaginações febris - o resultado foram áreas centrais desertas e
abandonadas, "um número decrescente de pessoas em busca de prazeres e uma percepção cada vez maior
das cidades como locais perigosos". Sobre uma dessas cidades, Detroit, outro autor observou, em 1989,
que "as ruas ficam tão desertas depois de escurecer que parece uma cidade fantasma - tal como
Washington, a capital federal" (22).
Hannigan descobriu que uma tendência oposta teve início perto do final do século. Depois dos
muitos anos de vacas magras, marcados pelo medo de sair à noite e pela "desertificação" que isso
provocou, as autoridades urbanas dos Estados Unidos uniram-se a patrocinadores no esforço de tornar o
centro das cidades novamente alegres, uma atração irresistível para farristas em potencial, com "a
diversão retornando às áreas centrais" e "visitantes diurnos" ["day-trippers"] sendo novamente arrastados
para elas, na esperança de encontrar alguma coisa "excitante, segura e inexistente nos subúrbios" (23).
Reconhecidamente, essas mudanças drásticas e neuróticas podem ser mais evidentes e abruptas
nas cidades norte-americanas, com seus antigos antagonismos e inimizades raciais - geralmente
encobertos, mas capazes de explodir ocasionalmente - do que em outros lugares, onde esses conflitos e
preconceitos acrescentam pouco ou nenhum combustível à incerteza e à confusão latentes. De forma um
pouco mais suave e atenuada, porém, a ambivalência da atração e repulsa e a oscilação entre paixão e
aversão à vida nos grandes centros urbanos também assinalam a história recente de muitas cidades
européias, talvez da maioria delas.
Cidade e mudança social são quase sinônimos. A mudança é a condição de vida e o modo de
existência urbanos. Mudança e cidade podem, e com certeza devem, ser definidas por referência
mútua. Mas por que é assim? Por que tem de ser assim?
É comum definir as cidades como lugares onde estranhos se encontram, permanecem próximos
uns dos outros e interagem por longo tempo sem deixarem de ser estranhos. Examinando o papel das
cidades no desenvolvimento econômico, Jane Jacobs aponta a mera densidade da comunicação humana
como a causa principal dessa inquietação própria do meio urbano. (24) Os habitantes das cidades não são
necessariamente mais inteligentes que outros seres humanos, mas a densidade da ocupação espacial
resulta na concentração de necessidades. Assim, nas cidades se fazem perguntas que nunca foram feitas,
surgem problemas que em outras condições as pessoas nunca tiveram oportunidade de resolver. Encarar
problemas e questionar trazem um desafio e ampliam a inventividade humana a um nível sem
precedentes. Isso, por sua vez, oferece uma oportunidade tentadora para quem vive em lugares mais
tranqüilos, porém menos promissores. A vida urbana exerce uma atração constante sobre as pessoas de
fora, e estas têm como marca registrada o fato de trazerem "novas maneiras de ver as coisas e talvez de
resolver antigos problemas" As pessoas de fora são estranhas à cidade, e coisas familiares aos moradores
antigos e já estabelecidos, coisas que eles sequer notam, parecem bizarras e exigem explicação quando
vistas pelos olhos de um estranho. Para este, particularmente quando recém-chegado, nada na cidade é
"natural nada pode ser pressuposto. Os recém-chegados são inimigos da tranqüilidade e da
autocondescendência.
Essa talvez não seja uma situação agradável para os nativos da cidade, mas é também sua grande
vantagem. A cidade está em sua melhor forma, mais exuberante e generosa em termos das oportunidades
que oferece quando seus recursos são desafiados, questionados e postos contra a parede. Michael Storper,
economista, geógrafo e projetista, (25) atribui a vivacidade intrínseca e a criatividade típica da densa vida
urbana à incerteza que advém dos relacionamentos pouco coordenados e eternamente mutáveis "entre as
peças das organizações complexas, entre os indivíduos e entre estes e as organizações" - inevitáveis sob
as condições urbanas de alta densidade e estreita proximidade.
Os estranhos não são uma invenção moderna, mas aqueles que permanecem estranhos por um
longo período, ou mesmo perpetuamente, são. Numa típica cidade ou aldeia pré-moderna, não era
permitido permanecer estranho por muito tempo. Alguns eram expulsos, ou nem chegavam a obter
permissão para entrar. Os que desejavam e conseguiam entrar e permanecer por mais tempo tendiam a ser
"familiarizados" - submetidos a interrogatórios minuciosos e rapidamente "domesticados" - de modo
que pudessem integrar a rede de relacionamentos como se fossem mo-radores estabelecidos: no esquema
pessoal. Isso tinha conseqüências - marcadamente diferentes do processo que nos é familiar a partir da
experiência das cidades contemporâneas, modernas, congestionadas e densamente povoadas.
59
Qualquer que seja a história das cidades, e independentemente das drásticas mudanças que possam
ter afetado sua estrutura espacial, aparência e estilo ao longo dos anos e dos séculos, uma
característica se mantém constante: são espaços em que estranhos permanecem e se movimentam
em íntima e recíproca proximidade.
Sendo um componente permanente da vida urbana, a presença perpétua e ubíqua de estranhos
visíveis e próximos aumenta em grande medida a eterna incerteza das buscas existenciais de todos os
habitantes. Essa presença, impossível de se evitar senão por breves momentos, é uma fonte de ansiedade
inesgotável, assim como de uma agressividade geralmente adormecida, mas que volta e meia pode
emergir.
O medo do desconhecido, mesmo se subliminar, busca desesperadamente escoadouros confiáveis.
As ansiedades acumuladas tendem a ser descarregadas sobre os "forasteiros", eleitos para exemplificar a
"estranheza", a falta de familiaridade, a opacidade do ambiente de vida, a imprecisão do risco e da
ameaça em si. Quando se expulsa das casas e das lojas uma categoria selecionada de "forasteiros", o
fantasma atemorizante da incerteza é exorcizado por algum tempo - queima-se simbolicamente o
monstro assustador da insegurança. Cercas cuidadosamente erguidas contra aqueles que se fazem passar
por pessoas "em busca de asilo" e migrantes "meramente econômicos" trazem a esperança de fortalecer
uma existência incerta, errática e imprevisível. Mas a líquida vida moderna tende a permanecer
inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos "forasteiros indesejáveis", e
portanto o alívio é momentâneo, e as esperanças investidas nas "medidas duras e decisivas" se
desvanecem tão logo se apresentam.
O estranho é, por definição, um agente movido por intenções que na melhor das hipóteses se
poderia adivinhar, mas nunca saber com certeza. O estranho é a variável desconhecida em todas as
equações calculadas quando se tomam decisões sobre o que fazer e como se comportar. E assim, mesmo
que não se tornem objetos de agressão ostensiva nem sejam aberta e ativamente ofendidos, a presença de
estranhos dentro do campo de ação permanece desconfortável, na medida em que dificulta a tarefa de
predizer os efeitos do procedimento e suas chances de sucesso ou fracasso.
Compartilhar o espaço com estranhos, viver na sua proximidade repugnante e impertinente, é uma
condição da qual os habitantes das cidades consideram difícil, talvez impossível escapar. A proximidade
de estranhos é sua sina, e faz-se necessário experimentar, tentar, testar e (espera-se) encontrar um modus
vivendi que torne a coabitação palatável e a vida suportável. Essa necessidade é "dada", não-negociável.
Mas o modo como os habitantes de cada cidade se conduzem para satisfazê-la é questão de escolha. E
esta é feita diariamente - por ação ou omissão, desígnio ou descuido.
Sobre São Paulo, a maior cidade do Brasil, caótica e em rápida expansão, escreve Teresa Caldeira:
"São Paulo é hoje uma cidade de muros. Barreiras físicas foram construídas em toda parte - em
torno de casas, prédios, parques, praças, escolas e complexos empresariais... Uma nova estética da
segurança modela todos os tipos de construções e impõe uma nova lógica de vigilância e
distância..." (26)
Os que podem, vivem em "condomínios", planejados como se fosse uma ermida: fisicamente
dentro, mas social e espiritualmente fora da cidade. "Supõe-se que as comunidades fechadas sejam
mundos distintos. Nas propagandas que os anunciam propõe-se um 'modo de vida completo' que
representaria uma alternativa à qualidade de vida oferecida pela cidade e seu espaço público deteriorado."
Um traço muito importante do condomínio é seu "isolamento e distância da cidade... Isolamento significa
separação daqueles considerados socialmente inferiores" e, como insistem os construtores e seus agentes
imobiliários, "o fator-chave para garanti-lo é a segurança. Isso significa cercas e muros rodeando o
condomínio, guardas trabalhando 24 horas por dia no controle das entradas e um conjunto de instalações
e serviços" "destinados a manter os outros do lado de fora".
Como todos sabemos, as cercas têm necessariamente dois lados. Dividem espaços, que sob outros
aspectos seriam uniformes, em "dentro" e "fora"; mas o que é "dentro" para os que estão de um lado é
"fora" para os que estão do outro. Os moradores dos condomínios cercam-se para ficar "fora" da
excludente, desconfortável, vagamente ameaçadora e dura vida da cidade - e "dentro" do oásis de calma
e segurança. Pelo mesmo viés, contudo, eles cercam todos os outros fora dos lugares decentes e seguros
cujos padrões estão preparados e determinados a manter e defender com unhas e dentes, e dentro das mesmíssimas ruas sujas e esquálidas das quais tentam, a todo custo, cercar-se. A cerca separa o "gueto
voluntário" dos ricos e poderosos dos muitos guetos forçados que os despossuídos habitam. Para estes, a
área a que estão confinados (por serem excluídos de todas as outras) é o espaço do qual "não têm
permissão de sair".
Em São Paulo, a tendência segregacionista e exclusivista se apresenta da forma mais brutal,
inescrupulosa e desavergonhada. Mas pode-se sentir seu impacto, embora de maneira um tanto
atenuada, na maioria das metrópoles.
Paradoxalmente, cidades construídas originalmente para oferecer segurança a seus habitantes são
hoje associadas com maior freqüência ao perigo. Como diz Nan Elin, "o fator medo [na construção e
reconstrução das cidades] certamente aumentou, como se pode depreender da proliferação dos sistemas
de segurança e das trancas para carros e residências, da popularidade de comunidades 'fechadas' e
'seguras' para grupos de todas as faixas etárias e de renda, e da crescente vigilância dos espaços públicos,
sem falar nos infindáveis relatos de perigo transmitidos pelos meios de comunicação" (27).
Ameaças ao corpo e à propriedade do indivíduo, reais ou supostas, estão se transformando
rapidamente em considerações importantes quando se avaliam os méritos ou desvantagens de um lugar
para se viver. Também se tornaram prioridade na política de marketing das imobiliárias. A incerteza em
relação ao futuro, a fragilidade da posição social e a insegurança existencial - ubíquos acessórios da vida
na "líquida modernidade" de um mundo notoriamente enraizado em lugares remotos e retirados do
controle individual - tendem a se concentrar nos alvos mais próximos e a serem canalizadas para as
preocupações com a segurança individual. Os tipos de preocupação que se condensam em impulsos
segregacionistas/exclusivistas levam inexoravelmente a guerras pelo espaço urbano.
Como se pode aprender com o estudo perspicaz de Steven Flusty (28), jovem crítico norteamericano
de arquitetura/urbanismo, servir nessa guerra, e particularmente planejar maneiras de impedir
os adversários - atuais, potenciais e supostos - de terem acesso ao espaço reclamado, mantendo-os a
uma distância segura, constitui a preocupação que se expande com maior amplitude e rapidez na área da
inovação arquitetônica e do desenvolvimento urbano nas cidades norte-americanas. As novas construções,
anunciadas com maior orgulho e as mais imitadas, são "espaços interditados" - "planejados para
interceptar, repelir ou filtrar os usuários potenciais" Explicitamente, o propósito dos "espaços
interditados" é dividir, segregar e excluir - e não construir pontes, passagens acessíveis e locais de
encontro, facilitar a comunicação ou, de alguma outra forma, aproximar os habitantes da cidade.
As invenções arquitetônicas/urbanísticas reconhecidas, enumeradas e especificadas por Flusty são
os equivalentes tecnicamente atualizados dos fossos, torreões e canhoneiras das muralhas que cercavam
as cidadelas pré-modernas. Mas, em vez de defender a cidade e todos os seus habitantes do inimigo
externo, foram erigidas para separá-los e defendê-los uns dos outros, agora na condição de adversários.
Entre as invenções relacionadas por Flusty estão o "espaço resvaladiço", "que não pode ser alcançado
graças a formas de acesso retorcidas, retrácteis ou inexistentes"; o "espaço espinhoso", "que não pode ser
ocupado confortavelmente, já que é defendido por detalhes como aspersores embutidos nas paredes,
destinados a afastar ociosos, ou saliências espalhadas para evitar que as pessoas possam sentar-se"; e o
"espaço nervoso", "que não pode ser utilizado sem o monitoramento ativo de patrulhas móveis e/ou
dispositivos de controle remoto conectados a centrais de segurança". Esses e outros tipos de "espaços
interditados" têm apenas um, embora múltiplo, propósito: separar os enclaves extraterritoriais da área
urbana contígua, erigir pequenas fortalezas dentro das quais os membros da elite supraterritorial global
possam tratar, cultivar e apreciar sua independência física e seu isolamento espiritual em relação à
localidade. Na paisagem urbana, os "espaços interditados" se tornam marcos de desintegração da vida
comunal compartilhada e localmente ancorada.
Os desenvolvimentos descritos por Steven Flusty são manifestações high-tech de uma visível
mixofobia.
A mixofobia é uma reação altamente previsível e difundida entre os diversos tipos humanos e
estilos de vida capazes de confundir a mente, provocar calafrios e colapsos nervosos, de que estão
repletas as ruas das cidades contemporâneas, assim como seus distritos residenciais mais "comuns" (leiase:
não protegidos por "espaços interditados"). Conforme a polifonia e a diversificação cultural do
ambiente urbano na era da globalização entram em cena - com a probabilidade de se intensificarem no
61
curso do tempo -, as tensões oriundas da exasperante/confusa/irritante estranheza desse cenário
provavelmente continuarão a estimular impulsos segregacionistas.
Expressar tais impulsos pode (de modo temporário, mas repetido) aliviar tensões crescentes. Isso
oferece uma esperança: diferenças excludentes e desconcertantes podem ser incontestáveis e refratárias,
mas talvez seja possível extrair o veneno do ferrão atribuindo a cada forma de vida um espaço físico
distinto, ao mesmo tempo inclusivo e excludente, bem demarcado e protegido. Evitando-se essa solução
radical, talvez se possa pelo menos assegurar para si mesmo, para os amigos, parentes e outras "pessoas
como nós", um território livre daquela miscelânea que irremediavelmen- te aflige outras áreas urbanas. A
mixofobia se manifesta no impulso que conduz a ilhas de semelhança e mesmidade em meio a um oceano
de variedade e diferença.
As raizes da mixofobia são banais - nem um pouco difíceis de localizar, fáceis de compreender,
embora não necessariamente de perdoar. Como indica Richard Sennett, "o sentimento 'nós, que expressa
um desejo de ser semelhante, é uma forma de os homens evitarem a necessidade de examinarem uns aos
outros com maior profundidade". Ele promete, pode-se dizer, algum conforto espiritual: a perspectiva de
tornar o convívio algo mais fácil de suportar, cortando-se o esforço de compreender, negociar,
comprometer-se, exigido quando se vive com a diferença e em meio a ela. "O desejo de evitar a
participação real é inato ao processo de formar uma imagem coerente da comunidade. Sentir que existem
vínculos comuns sem uma experiência comum ocorre, em primeiro lugar, porque os homens têm medo da
participação, dos perigos e desafios que ela traz, de sua dor." (29)
O impulso na direção de uma "comunidade de semelhança" é um signo de recuo não apenas em
relação à alteridade externa, mas também ao compromisso com a interação interna, ao mesmo tempo
intensa e turbulenta, revigorante e embaraçosa. A atração de uma "comunidade da mesmidade" é a de
segurança contra os riscos de que está repleta a vida cotidiana num mundo polifônico. Ela não reduz os
riscos, muito menos os afasta. Como qualquer paliativo, promete apenas um abrigo em relação a alguns
dos efeitos mais imediatos e temidos desses riscos.
Escolher escapar à opção apresentada pela mixofobia tem uma conseqüência insidiosa e deletéria:
quanto mais ineficaz se mostra essa estratégia, mais ela se torna capaz de se perpetuar e se consolidar por
si mesma. Sennett explica por que isso é - de fato, deve ser - assim: "Durante as duas últimas décadas,
algumas cidades norte-americanas cresceram de tal maneira que as áreas étnicas se tornaram
relativamente homogêneas. Não parece acidental que o medo do outsider tenha aumentado na mesma
medida em que essas comunidades foram isoladas." (30) Quanto mais as pessoas permanecem num
ambiente uniforme - na companhia de outras "como elas", com as quais podem "socializar-se" de modo
superficial e prosaico sem o risco de serem mal compreendidas nem a irritante necessidade de tradução
entre diferentes universos de significações -, mais tornam-se propensas a "desaprender" a arte de
negociar um modus covivendi e significados compartilhados.
Já que esqueceram ou não se preocuparam em adquirir as habilidades necessárias para viver com a
diferença, não surpreende muito que essas pessoas vejam com um horror crescente a possibilidade de se
confrontarem face a face com estranhos. Estes tendem a parecer ainda mais assustadores na medida em
que se tornam cada vez mais diferentes, exóticos e incompreensíveis, e em que o diálogo e a interação
que poderiam acabar assimilando sua "alteridade" se diluem ou nem chegam a ter lugar. O impulso que
conduz a um ambiente homogêneo e territorialmente isolado pode ser disparado pela mixofobia, mas
praticar a separação territorial significa preservá-la e alimentá-la.
Mas a mixofobia não é o único combatente no campo de batalha urbano.
Viver na cidade é sabidamente uma experiência ambígua. A cidade atrai e repele, mas, para tornar
a situação de seus habitantes ainda mais complexa, são os mesmos aspectos da vida urbana que, de modo
intermitente ou simultâneo, atraem e repelem... A desordenada variedade do ambiente urbano é uma fonte
de medo (particularmente para aqueles de nós que já "perderam os modos familiares", tendo sido atirados
a um estado de incerteza aguda pelos processos desestabilizadores da globalização). Os mesmos
bruxuleios e vislumbres caleidoscópios do cenário urbano, a que nunca faltam novidades e surpresas,
constituem, no entanto, seu charme quase irresistível e seu poder de sedução.
Confrontar o espetáculo incessante da cidade, com freqüência deslumbrante, não é, portanto,
vivenciado apenas como praga ou maldição - assim como abrigar-se dele não parece uma bênção
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inequívoca. A cidade favorece a mixofobia do mesmo modo e ao mesmo tempo que a mixofilia. A vida
urbana é intrínseca e irreparavelmente ambivalente.
Quanto maior e mais heterogênea é a cidade, mais atrações ela pode promover e oferecer. A
condensação maciça de estranhos é simultaneamente um repelente e um ímã poderoso, atraindo sempre
novas coortes de homens e mulheres cansados da monotonia da vida no campo ou na cidade pequena,
fartos de sua rotina repetitiva - e desencantados diante de sua desesperadora escassez de oportunidades.
A variedade promete muitas e diversas oportunidades, que se ajustam a todas as habilidades e a todos os
gostos. E assim, quanto maior a cidade, mais provável é que ela atraia um número crescente de pessoas
que rejeitam - ou a quem foram recusadas - acomodação e oportunidades de vida em lugares menores
e por isso menos tolerantes em relação a idiossincrasias e mais avarentos quanto às chances que oferecem.
Parece que a mixofilia, tal como a mixofobia, é uma tendência capaz de impulsionar-se, difundir-se e
fortalecer-se. Nenhuma das duas tem propensão a se exaurir ou a perder seu vigor no curso da renovação
e reforma do espaço urbano.
Mixofobia e mixofilia coexistem em toda cidade, mas também dentro de cada um de seus
habitantes. Trata-se reconhecidamente de uma coexistência problemática, cheia de som e fúria, embora
signifique muito para as pessoas que se encontram na ponta receptiva da ambivalência líquido-moderna.
Como os estranhos são obrigados a levar suas vidas na companhia uns dos outros,
independentemente das futuras guinadas da história urbana, a arte de viver em paz e feliz com a
diferença, assim como de se beneficiar, serenamente, da variedade de estímulos e oportunidades,
adquire enorme importância entre as habilidades que o morador da cidade deve adquirir e utilizar.
Mesmo que a erradicação total da mixofobia seja algo improvável, dada a crescente mobilidade
humana na líquida era moderna, assim como a acelerada mudança de papéis, tramas e ambientes do
cenário urbano, talvez se possa fazer alguma coisa para influenciar as proporções em que mixofobia e
mixofilia se combinam, e assim reduzir o impacto da primeira, que confunde e tende a gerar ansiedade e
angústia. Com efeito, parece que arquitetos e urbanistas poderiam ajudar muito no crescimento da
mixofilia e minimizar as oportunidades de respostas mixofóbicas aos desafios da vida urbana. E parece
haver muita coisa que eles podem fazer, e de fato estão fazendo, para facilitar os efeitos opostos.
Como vimos anteriormente, a segregação de áreas residenciais e de espaços freqüentados pelo
público, comercialmente atraente para os construtores e seus clientes como um remédio rápido para as
ansiedades geradas pela mixofobia, é na verdade a sua principal causa. As soluções disponíveis geram,
por assim dizer, os problemas que pretendem resolver: os construtores de comunidades fechadas e
condomínios estritamente protegidos, assim como os arquitetos responsáveis pelos "espaços interditados",
criam, reproduzem e intensificam a necessidade e a demanda que supostamente satisfariam.
A paranóia mixofóbica alimenta-se e atua como uma profecia auto-realizadora. Se a segregação é
oferecida e assumida como a cura radical para o perigo representado pelos estranhos, a coabitação com
estes torna-se mais difícil a cada dia. Homogeneizar os bairros residenciais e depois reduzir a um mínimo
inevitável todo o comércio e a comunicação entre eles é uma receita certa para tornar mais intenso e
profundo o estímulo a destruir e segregar. Essa medida pode ajudar a diminuir as dores que sofrem as
pessoas afligidas pela mixofobia, mas a cura é ela própria patogênica e aprofunda a aflição, de modo que
novas e maiores doses do remédio tornam-se necessárias para manter a dor num nível toleravelmente
baixo. A homogeneidade social do espaço, enfatizada e fortalecida pela segregação espacial, reduz a
tolerância de seus moradores à diferença e assim multiplica as possibilidades de reações mixofóbicas,
fazendo a vida urbana parecer mais "propensa ao risco" e portanto mais angustiante, em lugar de mais
segura, agradável e fácil de levar.
Mais favorável à fixação e ao cultivo de sentimentos mixófilos seria a estratégia oposta por parte
de arquitetos e urbanistas: a propagação de espaços públicos abertos, convidativos e hospitaleiros que
todas as categorias de moradores seriam tentadas a freqüentar e estariam prontas a compartilhar, de modo
regular e consciente.
Conforme a famosa observação de Hans Gadamer em seu livro Verdade e método, a compreensão
mútua é instigada pela "fusão de horizontes" - quer dizer, horizontes cognitivos, induzidos e ampliados
no curso da acumulação da experiência de vida. A "fusão" exigida pela compreensão mútua só pode ser o
resultado da experiência compartilhada, e esta é inconcebível sem que haja um espaço compartilhado.
Como que fornecendo uma poderosa prova empírica da hipótese de Gadamer, descobriu-se que
os espaços reservados para encontros face a face - ou apenas para compartilhar o espaço, "misturar-se
com" curtir juntos, jantar nos mesmos restaurantes ou beber nos mesmos bares - dos homens de
negócios e outros membros da elite internacional ou Ma classe dominante global" emergente quando
estão viajando (lugares como as redes mundiais de hotéis e os centros de conferência supranacionais),
desempenham um papel crucial na integração dessa elite, a despeito de diferenças culturais, lingüísticas,
religiosas, ideológicas e outras que, em situações diversas, separam-na e evitam que se desenvolva o
sentimento de "pertencimento compartilhado" (31).
Com efeito, o desenvolvimento da compreensão mútua e a troca de experiências de vida de que
essa compreensão necessita é a única razão pela qual - apesar da facilidade de se comunicar
eletronicamente com maior rapidez e muito menos trabalho e problemas - empresários e acadêmicos
continuam viajando, visitando-se e se encontrando em conferências. Se a comunicação pudesse ser
reduzida à transferência de informação, sem necessidade da "fusão de horizontes", então, em nossa era da
internet e da rede mundial, o contato físico e o compartilhamento (mesmo que temporário e intermitente)
de espaço e experiências teriam se tornado redundantes. Mas não se tornaram, e até agora nada indica que
isso ocorrerá.
Há coisas que os arquitetos e urbanistas podem fazer para que a balança entre mixofobia e
mixofilia possa vir a pender em favor desta última (tal como, por ação ou omissão, eles contribuem
no sentido oposto). Mas há limites ao que podem conseguir agindo sozinhos e baseando-se
unicamente nos efeitos de suas próprias ações.
As raízes da mixofobia - aquela sensibilidade alérgica e febril aos estranhos e ao desconhecido
- jazem além do alcance da competência arquitetônica ou urbanística. Estão profundamente fincadas na
condição existencial dos homens e mulheres contemporâneos, nascidos e criados no mundo fluido,
desregulamentado e individualizado da mudança acelerada e difusa. Não importa que significação possam
ter, para a qualidade da vida diária, a forma, a aparência e a atmosfera das ruas das cidades, assim como o
uso que se faz dos espaços urbanos - esses são apenas alguns dos fatores (e não necessariamente os
principais) que contribuem para aquela condição desestabilizadora que gera incerteza e ansiedade.
Mais que qualquer outra coisa, os sentimentos mixofóbicos são estimulados e alimentados por
uma sensação de insegurança esmagadora. Homens e mulheres inseguros, incertos de seu lugar no
mundo, de suas perspectivas de vida e dos efeitos de suas próprias ações, são mais vulneráveis à tentação
mixofóbica e mais propensos a caírem em sua armadilha. Esta consiste em canalizar a ansiedade para
longe de suas verdadeiras raízes e descarregá-la sobre alvos que não se relacionam às suas fontes. Como
resultado, muitos seres humanos são vitimizados (e no longo prazo os vitimizadores atraem, por sua vez,
a vitimização), enquanto as fontes da angústia permanecem protegidas da interferência, emergindo sãs e
salvas dessa operação.
A conseqüência é que os problemas que afligem as cidades contemporâneas não podem ser
resolvidos reformando-se os próprios centros urbanos, por mais radical que seja a reforma. Não há,
permitam-me repetir, soluções locais para problemas gerados globalmente. O tipo de "segurança"
oferecido pelos urbanistas não pode aliviar, muito menos erradicar, a insegurança existencial reabastecida
diariamente pela fluidez dos mercados de trabalho, pela fragilidade do valor atribuído a habilidades e
competências do passado ou que se busca adquirir no presente, pela reconhecida vulnerabilidade dos
vínculos humanos e pela suposta precariedade e revogabilidade dos compromissos e parcerias. As
reformas urbanas devem ser precedidas de uma reforma das condições de existência, já que estas
determinam o sucesso daquelas. Sem essa reforma, confinados à cidade, os esforços para sobrepujar ou
desintoxicar as pressões mixofóbicas tendem a continuar sendo apenas paliativos - com muita
freqüência, tão-somente placebos.
Isso deve ser lembrado não para desvalorizar ou reduzir a diferença entre a boa e a má arquitetura,
ou entre planejamento urbano adequado e inadequado (ambos podem ser, e freqüentemente são, de
enorme importância para a qualidade de vida dos habitantes das cidades), mas para colocar a tarefa numa
perspectiva que inclua todos os fatores decisivos a fim de se fazer e sustentar a escolha certa.
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As cidades contemporâneas são áreas de descarga para os produtos malfeitos e deformados da
fluida sociedade moderna (embora elas próprias certamente não deixem de contribuir para a
acumulação de dejetos).
Não há soluções centradas na cidade, muito menos a esta confinadas, para enfrentar contradições e
disfunções sistêmicas. Por maiores e mais louváveis que sejam a imaginação de arquitetos, prefeitos e
vereadores, elas não serão encontradas. Os problemas devem ser enfrentados onde surjam: as dificuldades
confrontadas e sofridas dentro da cidade germinaram em outros lugares, e seus espaços de incubação e
gestação são amplos demais para que se possa combatê-las com ferramentas concebidas até mesmo para
as maiores áreas metropolitanas. Esses espaços se estendem além do alcance da ação soberana do Estadonação,
o maior, mais adequado, espaçoso e inclusivo ambiente para os procedimentos democráticos
inventados e postos em funcionamento nos tempos modernos. Esses espaços são cada vez mais globais, e
até agora não chegamos nem perto de inventar, muito menos colocar em prática, meios de controle
democráticos à altura do tamanho e da potência das forças a serem controladas.
Essa é, sem dúvida, uma tarefa de longo prazo e que vai exigir muito mais pensamento, ação e
persistência do que qualquer reforma de planejamento urbano e estética arquitetônica. Isso não significa,
contudo, que se devam suspender os esforços nessa direção até que se chegue à raiz do problema e se
coloquem sob controle aquelas tendências globalizantes perigosamente indefinidas. Se podemos dizer
assim, o oposto é verdadeiro, já que, embora a cidade seja o aterro sanitário das ansiedades e apreensões
geradas pela incerteza e a insegurança globalmente induzidas, é também um importante campo de
treinamento em que se pode experimentar, provar e acabar aprendendo e adotando os meios de aplacar e
dispersar esses sentimentos.
É na cidade que os estranhos que se confrontam no espaço global como Estados hostis,
civilizações rivais ou adversários militares se encontram como seres humanos individuais, se vêem de
perto, conversam, aprendem os costumes uns dos outros, negociam as regras da vida em comum,
cooperam e, cedo ou tarde, se acostumam com a presença dos outros e, cada vez mais, encontram prazer
em sua companhia. Depois de tal treinamento reconhecidamente local, esses estranhos podem ficar muito
menos tensos e apreensivos ao lidarem com assuntos globais. A incompatibilidade de civilizações, tal
como a hostilidade mútua, pode mostrar-se, afinal, não tão intratável quanto parecia, e o estrépito dos
sabres pode não ser a única forma de resolver conflitos. A "fusão de horizontes" de Gadamer pode se
transformar num projeto um pouco mais realista se buscarmos concretizá-la (mesmo que por tentativa e
erro, e com êxito apenas relativo) nas ruas das cidades.
Vai levar tempo para que se assimile a nova situação global, e particularmente para que se possa
confrontá-la de maneira efetiva - o que sempre ocorreu com todas as transformações realmente
profundas da condição humana.
Tal como no caso de todas essas transformações, é impossível (e altamente desaconselhável
tentar) apropriar-se antecipadamente da história e prever, para não dizer preestabelecer, a forma que ela
vai assumir e o arranjo a que acabará conduzindo. Mas esse confronto terá de acontecer. Ele
provavelmente constituirá a principal preocupação e preencherá a maior parte da história do século que
está apenas começando.
O drama será encenado e tramado nos dois espaços, o global e o local. Os desenlaces dessas
produções em dois palcos estão intimamente combinados e dependem muito do nível de consciência dos
roteiristas e atores de cada uma delas em relação a esse vínculo, assim como do grau de habilidade e
determinação com que contribuam para o sucesso mútuo.
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