Convívio destruido

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Um espectro paira sobre o planeta: o espectro da xenofobia. Suspeitas e animosidades tribais,
antigas e novas, jamais extintas e recentemente descongeladas, misturaram-se e fundiram-se a uma
nova preocupação, a da segurança, destilada das incertezas e intranqüilidades da existência líquidomoderna.
Pessoas desgastadas e mortalmente fatigadas em conseqüência de testes de adequação eternamente
inconclusos, assustadas até a alma pela misteriosa e inexplicável precariedade de seus destinos e pelas
névoas globais que ocultam suas esperanças, buscam desesperadamente os culpados por seus problemas e
tribulações. Encontram-nos, sem surpresa, sob o poste de luz mais próximo - o único ponto
obrigatoriamente iluminado pelas forças da lei e da ordem: "São os criminosos que nos deixam inseguros,
são os forasteiros que trazem o crime." E assim "é reunindo, encarcerando e deportando os forasteiros que
vamos restaurar a segurança perdida ou roubada".
Donald G. McNeil Jr. deu a seu resumo das mudanças mais recentes no espectro político europeu o título
de "Politicians pander to fear of crime" (1). Com efeito, em todo o mundo submetido a governos
democraticamente eleitos a frase "serei duro com o crime" transformou-se num trunfo, mas a mão
vencedora é quase invariavelmente uma combinação da promessa de "mais prisões, mais policiais,
sentenças maiores" com o juramento de "não à imigração, aos direitos de asilo e à naturalização". Como
diz McNeil, "políticos de toda a Europa usam o estereótipo de que 'o crime é causado por forasteiros' para
ligar o antiquado ódio étnico à preocupação com a segurança pessoal, mais palatável".
O duelo Chirac versus Jospin pela presidência da França, em 2002, estava apenas nos estágios
preliminares quando degenerou num leilão público em que os dois competidores buscavam apoio eleitoral
oferecendo medidas cada vez mais duras contra criminosos e imigrantes, mas sobretudo contra os
imigrantes que praticam crimes e contra a criminalidade praticada por imigrantes. (2) Antes de mais nada,
porém, eles deram o melhor de si tentando mudar o foco da ansiedade dos eleitores, derivada da
envolvente sensação de precarité (uma insegurança exasperante em relação à posição social, entrelaçada
com uma incerteza aguda quanto ao futuro dos meios de subsistência), para a preocupação com a
segurança individual (a integridade do corpo, das propriedades pessoais, do lar e da vizinhança). A 14 de
julho de 2001, Chirac colocou em movimento essa máquina infernal, anunciando a necessidade de
combater "essa crescente ameaça à segurança, essa maré montante", em vista do aumento (também
anunciado na ocasião) de quase 10% da delinqüência no primeiro semestre daquele ano, e declarando a
disposição de transformar em lei, uma vez reeleito, a política de "tolerância zero". O tom da campanha
presidencial fora estabeleci- do, e Jospin não demorou a aderir, elaborando suas próprias variações sobre
o tema comum (embora - inesperadamente para os solistas principais, mas decerto não para os
observadores sociologicamente informados - a voz mais destacada tenha sido a de Le Pen, na qualidade
de mais pura e, portanto, mais audível).
A 28 de agosto Jospin proclamava "a batalha contra a insegurança", prometendo que não teria
"nenhuma complacência", enquanto a 6 de setembro Daniel Vaillant e Marylise Lebranchu, seus
ministros, respectivamente, do Interior e da Justiça, juravam que não tolerariam de forma alguma a
delinqüência. A reação imediata de Vaillant aos eventos de 11 de setembro nos Estados Unidos foi
aumentar os poderes da polícia, principalmente no que se refere ao enfrentamento dos jovens
"etnicamente estranhos" habitantes dos banlieux, as amplas áreas residenciais situadas nas periferias
urbanas, onde, segundo a (conveniente) versão oficial, era gerada a demoníaca mistura de incerteza e
insegurança que envenenava a vida dos franceses. O próprio Jospin continuou atacando e vilipendiando,
em termos cada vez mais mordazes, a "escola angelical" da abordagem ultra-suave, jurando que jamais
pertencera a ela no passado e jamais o faria no futuro. O leilão prosseguia, e os lances se tornavam
estratosféricos. Chirac prometeu criar um ministério da segurança interna, ao que Jospin reagiu com o
compromisso de um ministério "encarregado da segurança pública" e da "coordenação das operações
policiais" Quando Chirac brandiu a idéia de instituir centros destinados a trancafiar delinqüentes juvenis,
Jospin fez eco a essa promessa com a visão de "estruturas gradeadas" com a mesma finalidade, superando
o lance do oponente com a perspectiva de "condenações sumárias".
Apenas três décadas atrás Portugal era (juntamente com a Turquia) o principal fornecedor de
"trabalhadores convidados" [os Gastarbeiter], que os Bürger alemães temiam saquear suas cidades e
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destruirem o pacto social, pilar de sua segurança e conforto. Hoje, graças ao aumento significativo de
sua riqueza, Portugal passou de exportador a importador de mão-de-obra. As dificuldades e humilhações
sofridas quando era preciso ganhar a vida no exterior foram rapidamente esquecidas: 27% dos
portugueses declararam que os bairros infestados do crime e de estrangeiros constituíam sua principal
preocupação, e Paulo Portas, um recém-chegado à arena política, jogando uma carta única, violentamente
contrária à imigração, ajudou a conduzir ao poder uma coalizão neodireitista (da mesma forma que
ocorreu com o Partido do Povo Dinamarquês de Pia Kiersgaard, com a Liga Norte de Umberto Bossi na
Itália e com o Partido do Progresso na Noruega, radicalmente antiimigrantes - todos em países que não
muito tempo antes enviavam seus filhos a terras distantes para ganhar o pão que eles próprios eram muito
pobres para oferecer).
Notícias como essa freqüentemente ganham as manchetes dos jornais (como "Reino Unido planeja
cancelar asilo", The Guardian, 13 de junho de 2002 - considero desnecessário mencionar as manchetes
dos tablóides...). Mas o núcleo principal da fobia de imigrantes permanece oculto das atenções (de fato,
do conhecimento) da Europa Ocidental e nunca vem à superfície. "Culpar os imigrantes" - estrangeiros
e recém-chegados, e particularmente estrangeiros recém-chegados - por todos os aspectos da doença
social (e acima de tudo pelo nauseante e desabilitante sentimento de Unsicherheit, incertezza, precarité,
insegurança) está se tornando rapidamente um hábito global. Nas palavras de Heather Grabbe, diretora de
pesquisa do Centro para a Reforma Européia, "os alemães culpam os poloneses, os poloneses culpam os
ucranianos, os ucranianos culpam os quirguizes, que por sua vez culpam os usbeques" (3), enquanto
países pobres demais para atrair vizinhos em busca desesperada por meios de sobrevivência, tais como
Romênia, Bulgária, Hungria ou Eslováquia, direcionam seu ódio aos habituais suspeitos e culpados de
plantão: aquelas pessoas do lugar mas em constante mudança, sem endereço fixo, e assim - sempre e
onde quer que estejam - "recém-chegadas" e forasteiras: os ciganos.
Quando se trata de estabelecer tendências globais, os Estados Unidos têm prioridade indiscutível e
geralmente assumem a iniciativa. Mas juntar-se à onda global de ataque aos imigrantes representa um
problema muito difícil para aquele país, reconhecidamente formado por imigrantes. A imigração
atravessou a história norte-americana como um passado de nobreza, uma missão, um empreendimento
heróico levado a cabo pelos audazes, os valentes e os bravos. Assim, desprezar os imigrantes e lançar
suspeitas sobre sua nobre vocação significaria atacar o próprio cerne da identidade norte-americana, e
talvez fosse um golpe mortal no Sonho Americano, seu indiscutível pilar e cimento. Mas esforços têm
sido feitos, por tentativa e erro, para tornar o círculo quadrado...
A 10 de junho de 2002, funcionários de alto escalão do governo norte-americano (o diretor do FBI
Robert Mueller, o subprocurador geral Larry Thompson, o subsecretário de Defesa Paul Wolfowitz, entre
outros) anunciaram a prisão de um suposto terrorista da Al-Qaeda que retornava a Chicago de uma
viagem de treinamento no Paquistão (4). Segundo a versão oficial do caso, um cidadão norte-americano,
nascido e criado nos Estados Unidos, Jose Padilla (nome que aponta raízes hispânicas, ligado às últimas
levas de imigrantes, pobremente assentadas, da longa lista de filiações étnicas), converteu-se ao
islamismo, assumiu o nome de Abdullah alMujahir e prontamente procurou seus irmãos muçulmanos em
busca de instruções sobre como prejudicar sua terra natal. Foi instruído na arte tosca de fabricar "bombas
sujas" - "assustadoramente fáceis de montar" a partir de alguns gramas de explosivos convencionais
amplamente disponíveis e de "praticamente qualquer tipo de material radioativo" em que potenciais
terroristas "possam pôr as mãos" (não ficou clara por que era necessário treinamento sofisticado para
produzir armas "assustadoramente fáceis de montar", mas, quando se trata de lançar as sementes do ódio,
a lógica é irrelevante). "Uma nova expressão entrou no vocabulário de muitos norte-americanos médios
depois do 11 de setembro: bomba suja", anunciaram os repórteres Nichols, Hall e Eisler, do USA Today.
O caso foi um golpe de mestre: a armadilha ao Sonho Americano foi habilmente contornada pelo
fato de Jose Padilla ser um estrangeiro e um estranho por sua própria e livre escolha como norteamericano.
E o terrorismo foi vividamente retratado como algo ao mesmo tempo de origem estrangeira e
ubiquamente doméstico, oculto atrás de cada esquina e se espalhando por todos os bairros - tal como os
antigos "comunistas debaixo da cama". E foi assim uma metáfora impecável e um escoadouro totalmente
confiável para os medos e apreensões, igualmente ubíquos, da vida precária.
No entanto esse expediente revelou-se equivocado. Quando vistos de outras agências da administração
federal, os ativos do caso ficavam parecendo passivos. A "bomba suja", "assustadoramente fácil de
montar" exporia a loucura de um "escudo antimísseis" multibilionário. As credenciais nativas de al-
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Mujahir poderiam acrescentar um grande ponto de interrogação à planejada cruzada contra o Iraque e a
todas as suas seqüelas ainda inominadas. O que era alimento para alguns departamentos federais tinha o
gosto de veneno para outros. Estes últimos parecem estar em vantagem no momento, já que o pescoço
desse caso promissor foi pronta, rápida e diligentemente torcido. Mas não porque seus responsáveis
tenham deixado de tentar...
A modernidade produziu desde o início, e continua a produzir, enormes quantidades de lixo
humano.
A produção de lixo humano era particularmente ampla em dois ramos da indústria moderna (ainda
totalmente produtivos e operando a todo vapor).
A função manifesta do primeiro deles era a produção e reprodução da ordem social. Todo modelo
de ordem é seletivo e exige que se cortem, aparem, segreguem, separem ou extirpem as partes da matériaprima
humana que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou desprezadas para o preenchimento
de qualquer de seus nichos. Na outra ponta do processo de construção da ordem, essas partes emergem
como "lixo", distintas do produto pretendido, considerado "útil".
O segundo ramo da indústria moderna conhecido pela produção contínua de grandes quantidades
de lixo humano era o progresso econômico, o qual, por sua vez, exige a incapacitação, o
desmantelamento e a aniquilação final de certo número de formas e meios de os seres humanos ganharem
a vida - modos de subsistência que não podiam nem iriam ajustar-se a padrões de produtividade e
rentabilidade em constante elevação. Via de regra, os praticantes dessas formas de vida desvalorizadas
não podem ser acomodados en masse nos novos arranjos da atividade econômica, mais esguios e
inteligentes. Eles tiveram negado o acesso a esses modos de subsistência na medida em que os novos
arranjos se tornaram legítimos/obrigatórios, enquanto os modos ortodoxos, agora desvalorizados, não
mais permitem que se sobreviva. Eles são, por esse motivo, o lixo do progresso econômico.
Mas as conseqüências potencialmente desastrosas da acumulação de lixo humano foram, por boa
parte da história humana, evitadas, neutralizadas ou ao menos mitigadas graças a outra inovação
moderna: a indústria de manejo do lixo. Ela cresceu porque amplas partes do globo se transformaram em
aterros sanitários para onde os "excedentes da humanidade" o lixo humano produzido nos setores do
planeta em processo de modernização, podiam ser transportados para serem tratados e descontaminados,
afastando assim o perigo de autocombustão e explosão.
O planeta está se tornando carente desses aterros, em grande parte por causa do sucesso
espetacular - a difusão planetária -do modo de vida moderno (pelo menos desde a época de Rosa
Luxemburgo, a modernidade tem sido suspeita de uma tendência essencialmente suicida, "cobra
mordendo o próprio rabo"). A oferta de aterros sanitários é cada vez menor. Enquanto a produção de lixo
humano prossegue inabalável (se é que não está aumentando em função dos processos de globalização), a
indústria de tratamento do lixo passa por duras dificuldades. As formas de lidar com o lixo humano que
se transformaram na tradição moderna não são mais viáveis, e novas maneiras não foram inventadas,
muito menos postas em operação. Pilhas de lixo humano crescem ao longo das linhas defeituosas da
desordem mundial, e se multiplicam os primeiros sinais de uma tendência à autocombustão, assim como
os sintomas de uma explosão iminente.
A crise da indústria de tratamento do lixo humano está por trás da atual confusão, revelada pelo
alvoroço desesperado - embora amplamente irracional e desmedido - em torno da administração
da grave conjuntura desencadeada pelo 11 de setembro.
Mais de dois séculos atrás, em 1784, Kant observou que nosso planeta é uma esfera, e extraiu
conseqüências desse fato reconhecidamente banal: como permanecemos na superfície dessa esfera e nela
nos movemos, não temos outro lugar para ir e portanto estamos destinados a viver para sempre na
vizinhança e companhia de outros. A longo prazo, manter a distância, que dirá ampliá-la, está fora de
questão: nosso movimento em torno da superfície esférica acabará reduzindo a distância que
pretendíamos alargar. E assim die volkommende bürgeliche Vereinigung in der Menschengattung (a
perfeita unificação da espécie humana por meio de uma cidadania comum) é o destino que a Natureza nos
reservou ao nos colocar na superfície de um planeta esférico. A unidade da humanidade é o derradeiro
horizonte de nossa história universal. Um horizonte que nós, seres humanos, estimulados e guiados pela
razão e pelo instinto de autopreservação, estamos destinados a perseguir e, na plenitude do tempo, alcançar. Mais cedo ou mais tarde, advertiu Kant, não haverá uma única nesga de espaço vazio onde
possam procurar abrigo ou resgate os que considerem os espaços já ocupados muito apinhados, inóspitos,
inconvenientes ou inadequados. E assim a Natureza nos obriga à visão da hospitalidade (recíproca) como
o preceito supremo que precisamos - e acabaremos sendo forçados a - abraçar e obedecer para pôr fim
à longa cadeia de tentativas e erros, às catástrofes causadas por esses erros e às devastações que elas
deixam em sua esteira.
Os leitores de Kant puderam aprender tudo isso em seu livro dois séculos atrás. O mundo,
contudo, mal prestou atenção. Parece que, em vez de escutar atentamente seus filósofos, sem falar em
seguir suas advertências, prefere homenageá-los com placas. Os filósofos podem ter sido os principais
heróis do drama lírico do Iluminismo, mas a tragédia épica pós-iluminista quase apagou suas falas.
Preocupado em arranjar o casamento das nações com os Estados, dos Estados com a soberania e
desta com territórios cercados por fronteiras estritamente fechadas e diligentemente controladas, o mundo
parecia perseguir um horizonte bem diferente daquele traçado por Kant. Durante 200 anos, o mundo se
ocupou em fazer do controle dos movimentos dos seres humanos uma prerrogativa exclusiva dos poderes
estatais, em erigir barreiras àqueles que não era possível controlar e em lotá-las de guardas atentos e
fortemente armados. Passaportes, vistos de entrada e saída, alfândegas e controles de imigração foram
invenções originais da moderna arte de governar.
O advento do Estado moderno coincidiu com a emergência das "pessoas sem Estado", os sans
papiers, e da idéia de unwertes Leben, a reencarnação mais recente (5) da antiga instituição do homo
sacer, derradeira personificação do direito soberano de descartar e excluir qualquer ser humano que tenha
sido lançado além dos limites das leis humanas e divinas, e de transformá-lo num ser a que as leis não se
aplicam e cuja destruição não acarreta punições, despida que é de qualquer significado ético ou religioso.
A derradeira sanção do poder soberano moderno resultou no direito de exclusão da humanidade.
Poucos anos depois de Kant ter publicado suas conclusões, surgiu outro documento, mais curto,
que teria, nos dois séculos de história seguintes, bem como nas mentes de seus principais atores, um peso
muito maior que o livrinho do filósofo. Era a Déclaration des Droits de L'Homme e du Citoyen, em
relação à qual Giorgio Agamben observaria, com o benefício de uma perspectiva de 200 anos, não estar
claro se "os dois termos [homem e cidadão] deveriam identificar duas realidades distintas" ou se, em vez
disso, o primeiro deles sempre quis dizer "já contido no segundo" (6) - ou seja, o portador dos direitos era
o homem que também fosse (ou na medida em que fosse) um cidadão.
Essa falta de clareza, com todas as suas conseqüências repulsivas, fora observada antes por
Hannah Arendt num mundo que rapidamente se enchia de "pessoas deslocadas". Ela relembrou a antiga
premonição de Edmund Burke, genuinamente profética, de que o maior perigo para a humanidade era a
abstrata nudez de "não ser nada além de humana" (7). "Os direitos humanos", como Burke observou,
eram uma abstração, e os seres humanos não poderiam esperar que eles garantissem muita proteção, a
menos que essa abstração fosse preenchida com a substância em que consistiam os direitos dos ingleses
ou franceses. "O mundo nada descobriu de sagrado na abstrata nudez do ser humano", como Arendt
resumiu a experiência dos anos que se seguiram às observações de Burke. "Os direitos do homem,
supostamente inalienáveis, mostraram-se inaplicáveis ... onde quer que tenham aparecido pessoas que não
eram mais cidadãs de algum Estado soberano." (8)
Com efeito, pessoas dotadas de "direitos humanos", mas nada além disso - sem outros direitos,
mais defensáveis porque institucionalmente enraizados, para conter e manter no lugar os direitos
"humanos" -, não podiam ser encontradas em lugar algum e eram, para todos os fins práticos,
inimagináveis. Obviamente, era necessária uma puissance, potenza, might ou Macht (9) essencialmente
social para endossar a humanidade dos seres humanos. E por toda a era moderna essa "potência" veio a
ser, invariavelmente, aquela que traçou a fronteira entre humano e inumano, disfarçada, nos tempos
modernos, na que divide cidadãos e estrangeiros. Nesta terra fatiada em Estados soberanos, os sem-teto
são também sem-direitos, e sofrem, não por não serem iguais perante a lei, mas porque não existe lei que
se aplique a eles e nas quais possam se pautar, ou a cuja proteção possam recorrer, em seus protestos
contra a rigorosa condição a que foram submetidos.
Em seu ensaio sobre Karl Jaspers, escrito alguns anos depois de As origens do totalitarismo,
Hannah Arendt observava que, embora para todas as gerações precedentes a "humanidade" tivesse sido
apenas um conceito ou ideal (podemos acrescentar: um postulado filosófico, um sonho de humanistas, por
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vezes um grito de guerra, mas dificilmente um princípio organizador da ação política), ela havia "se
tornado algo dotado de uma realidade urgente" (10). Transformara-se em um assunto de extrema urgência
porque o impacto do Ocidente tinha não apenas saturado o restante do mundo com os produtos de seu
desenvolvimento tecnológico, mas também exportado "seus processos de desintegração" - entre eles a
ruptura das crenças religiosas e metafísicas, os avanços espantosos das ciências naturais e a ascensão do
Estado-nação como praticamente a única forma de governo apresentada de modo mais proeminente.
Forças que tinham precisado de séculos para "minar as antigas crenças e formas de vida política" no
Ocidente "levaram apenas algumas décadas para derrubá-las ... em todas as outras partes do mundo".
Esse tipo de unificação, assinala Arendt, não poderia senão produzir um tipo "inteiramente
negativo" de "solidariedade do gênero humano". Cada parte da população humana sobre a terra é tornada
vulnerável por todas as outras e cada uma delas. Trata-se, podemos dizer, de uma "solidariedade" de
perigos, riscos e temores. Na maior parte do tempo e para a maioria das pessoas, a "unidade do planeta"
se resume ao horror diante de ameaças geradas ou incubadas em lugares distantes num mundo "em
ampliação, mas fora do alcance".
Juntamente com o produto pretendido, toda fábrica gera lixo. A fábrica da moderna soberania de
base territorial não foi exceção.
Por cerca de 200 anos após a publicação das advertências de Kant, o progressivo "preenchimento
do mundo" - e assim, conseqüentemente, o impulso a admitir que a totalidade do planeta (por ele
considerada um veredicto inevitável da Razão e da Natureza combinadas numa só, sem apelo permitido)
era de fato iminente - sofreu retaliação com a ajuda da [anti] santíssima trindade formada por território,
nação e Estado.
O Estado-nação, como observa Giorgio Agamben, é um Estado que faz da "natividade ou
nascimento" o "pilar de sua própria soberania" "A ficção aqui implícita", assinala Agamben, "é que o
nascimento [nascita] imediatamente ganha existência como nação, de modo que não pode haver diferença
alguma entre os dois momentos." (11) A pessoa nasce, por assim dizer, na "cidadania do Estado".
A nudez da criança recém-nascida, mas ainda não envolta nos ornamentos jurídico-legais, fornece
o locus em que a soberania do poder de Estado é perpetuamente construída, reconstruída e assistida com o
auxílio das práticas de inclusão/exclusão destinadas a todos os outros demandantes da cidadania que caem
sob o alcance dessa soberania. Podemos propor a hipótese de que a redução de bios para zoë, que
Agamben considera a essência da soberania moderna (ou, poderíamos também dizer, a redução do Leib, o
corpo vivo em ação, ao Körper, um corpo sobre o qual se pode agir, mas destituído de ação), é uma
conclusão precipitada, já que o nascimento é eleito a única forma de ingresso "natural" nessa nação, sem
exigência de testes nem questionários.
Todos os outros demandantes que podem bater à porta do Estado soberano pedindo admissão
tendem, em primeiro lugar, a ser submetidos ao ritual de desnudamento. Como indicou Victor Turner,
seguindo o esquema em três estágios do rite de passage elaborado por Van Genep, antes que os recémchegados
em busca de admissão a um locus social ganhem acesso (se isso ocorrer) àquele novo guardaroupa
onde são guardadas as vestimentas adequadas e reservadas para isso, eles precisam despir-se (tanto
metafórica quanto literalmente) de todos os adornos de seu encargo anterior. Devem permanecer por
algum tempo em estado de "nudez social". Passam a quarentena num não-espaço "nem um nem outro"
onde trajes de importância socialmente definida e aprovada não são oferecidos nem permitidos. São
isolados de seus pertences pelo purgatório do "espaço de nenhures" intermediário que separa entre si as
tramas constituintes de um mundo nelas dividido, concebido como uma agregação de tramas afastadas
espacialmente. A inclusão, se for oferecida, deve ser precedida de uma exclusão radical.
Segundo Turner, a mensagem transmitida pela parada obrigatória num acampamento
cuidadosamente limpo de quaisquer implementos capazes de elevar os acampados do nível zoë ou Körper
ao bios ou Leib ("a importância social de reduzi-los a algum tipo de primo materia humana, destituída de
uma forma específica e restrita, a uma condição que, embora ainda social, está fora ou além de todas as
formas aceitas de status"), essa mensagem é de que não há um caminho direto que conduza de um status
socialmente aprovado para outro. Antes que se possa fazer isso, é preciso imergir e dissolver-se numa
"communitas desestruturada, ou estruturada apenas de modo rudimentar, e relativamente
indiferenciada..." (12).
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Hannah Arendt situou o fenômeno posteriormente estudado por Turner no domínio, operado
pelo poder, da expulsão, do exílio, da exclusão e da dispensa. A humanidade que assume "a forma de
fraternidade" inferiu ela, "é o grande privilégio dos povos párias", referidos nos debates públicos do
século XVIII sob o nome genérico de les malheureux, substituído no século seguinte por les misérables e,
desde meados do século XX, pelo saco de gatos da noção de "refugiados" - mas que sempre foram
privados de um lugar próprio no mapa-múndi mental desenhado pelos povos que cunhavam e
empregavam esses nomes. Comprimidos, confinados e esmagados por múltiplas rejeições, "os
perseguidos têm se movido a uma tal proximidade que o espaço intermediário que chamamos de mundo
(e que evidentemente havia entre eles antes da perseguição, mantendo-os a uma distância uns dos outros)
simplesmente desapareceu" (13).
Para todos os fins e propósitos práticos, as categorias párias/proscritas estavam fora do mundo -
do mundo de categorias e finas distinções que os poderes constituídos haviam gerado e dado a conhecer
sob o nome de "sociedade". O único mundo a ser habitado pelos seres humanos e capaz de transformá-los
em cidadãos, portadores e praticantes de direitos. Eles eram uniformes, compartilhando um tipo de falta
de atributos que os falantes do vernáculo seriam capazes de notar, apreender, nomear e compreender. Ou
pelo menos era isso que pareciam ser, devido à aliança entre a pobreza do vernáculo e a homogeneização
obtida com a anuência do poder e concretizada mediante a expropriação de direitos.
Se nascimento e nação constituem uma só coisa, então todos os outros que ingressam ou desejam
ingressar na família nacional devem imitar a nudez do recém-nascido - ou serão compelidos a isso.
O Estado - guardião e agente penitenciário, porta-voz e censor-chefe da nação - garantiria que
essa condição fosse alcançada.
Como adverte Carl Schmitt, reconhecidamente um dos intelectuais mais lúcidos e realistas que se
dedicam a traçar a anatomia do Estado moderno: "Quem determina um valor sempre fixa, eo ipso, um
não-valor. O sentido dessa determinação é que este último seja aniquilado." (14) Determinar o valor
estabelece os limites do normal, do comum, do regular. O não-valor é uma exceção que assinala essa
fronteira.
A exceção é aquilo que não pode ser subsumido. Ela desafia a codificação geral, mas ao mesmo tempo revela um
elemento formal especificamente jurídico: a decisão em absoluta pureza ... Não há regra aplicável ao caos. É preciso
estabelecer a ordem para que a ordem jurídica faça sentido. Deve-se criar uma situação regular, e é soberano quem
decide definitivamente se essa situação é de fato efetiva ... A exceção não apenas confirma a regra - esta, como tal,
vive apenas da exceção. (15)
Giorgio Agamben comenta: "A regra se aplica à exceção ao não mais se aplicar, ao se retrair em
relação a ela. Assim, o estado de exceção não é o caos que precedeu a ordem, mas a situação resultante de
sua suspensão. Nesse sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo sua raiz etimológica, removida
(excapere), e não simplesmente excluída." (16)
Permitam-me observar que é precisamente essa a circunstância que os soberanos construtores de
regras precisam ocultar a fim de legitimar suas ações e torná-las compreensíveis. A construção da ordem
tende a ser, como regra, empreendida em nome do combate ao caos. Mas não haveria caos se já não
houvesse a intenção de ordenar e se a "situação regular" já não estivesse antecipadamente concebida para
que sua promoção pudesse ser iniciada com seriedade. O caos nasce como não-valor, como exceção. A
pressa em ordenar é seu lugar de nascença, e ele não tem outros pais nem outro lar que sejam legítimos.
O poder de excluir não seria um marco da soberania se o poder soberano não tivesse primeiro se
unido ao território.
Penetrante e perspicaz como costuma ser ao esquadrinhar a lógica bizarra e paradoxal da
Ordnung, Carl Schmitt endossa, nesse ponto crucial, a ficção cultivada pelos guardiães/promotores da
ordem, os detentores do poder soberano da exceção. Tal como no conjunto da prática dos soberanos,
também no modelo teórico de Schmitt se presume que as fronteiras do território no qual se conduz o
trabalho da Ordnung constituam os limites externos do mundo dotado de relevância tópica para os
esforços e intenções de ordenar.
Na visão de Schmitt, tal como na doia dos legisladores, a soma total dos recursos exigidos para
que se realize o trabalho de ordenar, assim como a totalidade dos fatores necessários para justificar essa operação e seus efeitos, está contida no interior desse mundo. A soberania produz a distinção entre um
valor e um não-valor, uma regra e uma exceção. Mas essa operação é precedida da distinção entre o lado
de dentro e o de fora do reino soberano, sem o que suas prerrogativas não poderiam ser reclamadas nem
obtidas. A soberania, tal como praticada pelos modernos Estados-nação e teorizada por Schmitt, está
inextricavelmente limitada a um território. É impensável sem um "lado de fora", inconcebível de qualquer
outra forma que não a de uma entidade localizada. A visão de Schmitt é tão "localizada" quanto a
soberania cujo mistério ele pretende desenredar. Ela não avança além da prática e do horizonte cognitivo
do celestial casamento do território com o poder.
Na medida em que o "Estado de direito" foi se transformando, de modo gradual mas irresistível (já
que sob as constantes pressões da construção de legitimidade e da mobilização ideológica), no "Estadonação,
esse casamento se transformou num ménage à trois: uma trindade constituída de território, Estado
e nação. Pode-se supor que o advento dessa trindade tenha sido um acidente histórico, ocorrido numa
única e relativamente diminuta parte do globo; mas uma vez que essa parte, embora pequena, veio a
reclamar a posição de metrópole dotada de recursos suficientes para transformar o resto do planeta em
periferia, e arrogante o bastante para esquecer ou desacreditar suas próprias peculiaridades, e como é
prerrogativa da metrópole estabelecer e impor as regras pelas quais a periferia é obrigada a viver, a
superposição/mistura de nação, Estado e território se tornou uma norma de vinculação global.
Qualquer um dos membros dessa trindade, se não estivesse associado aos outros dois nem fosse
apoiado por eles, se transformaria numa anomalia, numa monstruosidade candidata a uma drástica
cirurgia ou a receber um coup de grâce caso fosse considerado irredimível. Um território sem Estadonação
se tornava uma terra de ninguém. Uma nação sem Estado virava um aleijão com a opção de
desaparecer voluntariamente ou ser executado. Um Estado sem nação, ou com mais de uma nação,
transformava-se num resíduo do passado ou num mutante confrontado pela opção de modernizar-se ou
perecer. Por trás da nova normalidade avultava o princípio da territorialidade dando sentido a qualquer
poder que apostasse na soberania e tivesse uma chance de ganhar a aposta.
Toda aposta na pureza produz sujeira, toda aposta na ordem cria monstros. Os monstros sujos da
era de promoção da trindade território/nação/Estado foram nações sem Estados, Estados com mais de uma
nação e territórios sem Estado-nação. Foi graças à ameaça e ao medo desses monstros que o poder
soberano pôde exigir e adquirir o direito de negar direitos e estabelecer condições de humanidade que
grande parte desta não poderia satisfazer - como de fato ocorreu.
Sendo a soberania o poder de definir os limites da humanidade, as vidas dos seres humanos que
caíram ou foram jogados para fora desses limites não valem a pena.
Em 1920 foi publicado um livreto sob o título Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten
Leben (Permitindo a destruição da vida que não vale a pena ser vivida), de autoria de um especialista em
direito penal, Karl Binding, e de um professor de medicina, Alfred Hoche, que comumente recebe o
crédito por ter introduzido o conceito de unwertes Leben ("vida que não vale a pena ser vivida"),
acrescido da indicação de que, nas sociedades humanas conhecidas, esse tipo de vida tem sido até agora
indevida e injustamente protegido à custa de tipos de existência plenamente amadurecidos que deveriam
receber toda a atenção e o cuidado que a humanidade merece. Os sábios autores não viam razão (fosse
jurídica, social ou religiosa) pela qual o extermínio da unwertes Leben devesse ser visto como um crime
passível de punição.
Na concepção de Binding/Hoche, Giorgio Agamben enxerga a ressurreição e uma articulação
moderna e atualizada da antiga categoria do homo sacer: um ser humano que se pode matar sem medo de
punição, mas não pode ser usado no sacrifício religioso - que, em outras palavras, é totalmente excluído,
situando-se além dos limites da lei, seja ela humana ou divina. Agamben também observa que o conceito
de "vida que não vale a pena ser vivida" é, tal como sempre foi o de homo sacer, não-ético, mas que em
sua versão moderna adquire profunda significação política como uma categoria "sobre a qual se funda a
soberania".
Na moderna biopolítica, o soberano é aquele que decide sobre o valor ou não-valor da vida como tal. Esta - que com
a declaração de direitos foi investida do princípio da soberania - torna-se agora o local da decisão soberana. (17)
72
Com efeito, parece ser esse o caso. Observemos, contudo, que só o pode ser na medida em que
a trindade território/Estado/nação tenha sido elevada à condição de princípio universal da coabitação
humana, imposto e obrigado a sujeitar todos os recessos e frestas do planeta, incluindo áreas que por
séculos não conseguiram atingir as condições necessárias para essa trindade (ou seja, homogeneidade
populacional e/ou estabelecimento permanente resultando num "arraigamento ao solo"). É por causa
dessa universalidade do princípio trinitário, tramada, arbitrária e imposta, que, como assinala Hannah
Arendt, "quem é rejeitado por uma dessas comunidades rigorosamente organizadas se vê rejeitado por
toda a família das nações" (18) (e assim, na medida em que a espécie humana se torna idêntica à "família
das nações", pela esfera da humanidade), lançado à terra de ninguém dos homini sacri.
A intensa produção de lixo exige uma indústria de tratamento eficiente. Isso produziu uma das
mais impressionantes histórias de sucesso dos tempos modernos - o que explica por que a
advertência/premonição ficou na gaveta por dois séculos.
Apesar das quantidades crescentes e das dores cada vez mais profundas, os detritos humanos
acumulados pelo fervor e dedicação de incluir/excluir, desencadeados e consistentemente reforçados pelo
princípio e pela prática da trindade território/Estado/nação, puderam ser legitimamente desprezados como
uma irritação transitória e essencialmente curável, em vez de serem vistos e tratados como presságios de
uma catástrofe iminente. As nuvens escuras pareciam mais claras e as premonições sombrias podiam ser
afogadas em riso como "profecias do juízo final", graças principalmente ao moderno empreendimento
que entrou para a história sob os rótulos de "imperialismo" e "colonização" Juntamente com outras
funções, esse empreendimento serviu de unidade de depósito e reciclagem para os crescentes suprimentos
de lixo humano. As atordoantes vastidões de "terras virgens" abertas à colonização pelo impulso
imperialista de invadir, conquistar e anexar podiam ser usadas como depósitos de lixo para os indesejados
e funcionar como terra prometida para os que subissem ou fossem atirados a bordo enquanto a nau do
progresso ganhava velocidade e prosseguia.
Assim, o mundo parecia tudo menos cheio. "Cheio" é outra expressão - "objetivada" - para o
sentimento de estar lotado. Superlotado, para ser preciso.
Nada de Estátuas da Liberdade prometendo congregar as massas oprimidas e abandonadas. Nada
de rotas de fuga nem esconderijos, a não ser para uns poucos malfeitores e criminosos. Mas também (o
que é, reconhecidamente, o efeito mais surpreendente da plenitude do mundo há pouco revelada) nada
daquele chez soi seguro e aconchegante, como os eventos do 11 de setembro provaram de modo
dramático e acima de qualquer dúvida razoável.
A colonização permitiu que as premonições de Kant ficassem engavetadas. Mas também fizeram
com que parecessem, quando finalmente se abriu a gaveta, uma profecia do apocalipse em lugar da alegre
utopia pretendida pelo filósofo. A visão de Kant agora parece assim porque, devido à enganadora
abundância de "terras de ninguém", no curso desses dois séculos nada tinha de ser feito, e portanto não o
foi, para preparar a humanidade para a revelação da definitiva plenitude do mundo.
Quando os últimos locais portando o rótulo de ubi leones desaparecem rapidamente do mapamúndi
e as últimas das muitas terras de fronteira distantes são reclamadas por forças suficientemente
poderosas para fechar divisas e negar vistos de entrada, o mundo como um todo está se transformado
numa terra de fronteira planetária...
Em qualquer época as terras de fronteira foram conhecidas ao mesmo tempo como fatores de
deslocamento e unidades de reciclagem dos deslocados. Nada mais se pode esperar de sua nova
variedade global - exceto, é claro, a nova escala planetária de produção e reciclagem dos
problemas.
Permitam-me repetir: não há soluções locais para problemas globais, embora sejam locais as
soluções procuradas com avidez, ainda que em vão, pelas instituições políticas existentes, as únicas que
até agora inventamos e de que dispomos coletivamente.
Enredadas como essas instituições têm sido, desde o início e ao longo de sua história, em esforços
apaixonados (hercúleos na intenção, sisíficos na prática) para selar a união do Estado e da nação com o
território, não surpreende que todas elas tenham se tornado e permanecido locais, e que seu poder
soberano de empreender ações viáveis (ou, mesmo, legítimas) seja localmente circunscrito.
73
Há, salpicadas em toda parte do mundo, "guarnições de extraterritorialidade", aterros sanitários
para o lixo não-despejado e ainda não-reciclado da terra de fronteira global.
Durante os dois séculos da história moderna, as pessoas que não conseguiam transformar-se em
cidadãos - os refugiados, os migrantes voluntários e involuntários, os "deslocados" tout court - foram
naturalmente assumidas como um problema do país hospedeiro e tratadas como tal.
Poucos, se é que algum, dos Estados-nação que preencheram o mapa-múndi moderno estavam
fixados tão localmente quanto suas prerrogativas soberanas. Algumas vezes de boa vontade, outras com
relutância, praticamente todos tiveram de aceitar a presença de estrangeiros no território apoderado e
admitir sucessivas levas de imigrantes fugindo ou expulsos dos domínios de outros Estados-nação
soberanos. Uma vez lá dentro, porém, tanto os estrangeiros estabelecidos quanto os recém-chegados
caíam sob a jurisdição exclusiva e indivisa do país hospedeiro. Este último estava livre para apresentar
versões atualizadas e modernizadas das duas estratégias descritas por Lévi-Strauss em Tristes trópicos
como formas alternativas de lidar com a presença de estrangeiros. Recorrendo a essas estratégias, o país
poderia contar com o apoio entusiástico de todas as outras potências soberanas do planeta, preocupadas
em preservar o caráter inviolável da trindade território/Estado/nação.
A opção disponível para o problema do estrangeiro oscilava entre as soluções antropofágica e
antropoêmica. A primeira delas resumia-se em "comer os estrangeiros até o fim". Fosse literalmente, pela
carne (como no canibalismo supostamente praticado por certas tribos antigas), ou em sua versão
sublimada, espiritual -como na assimilação cultural praticada quase universalmente, com a anuência do
poder, pelos Estados-nação na intenção de ingerir no corpo nacional os portadores de culturas estranhas,
expelindo ao mesmo tempo as partes indigestas de seus dotes culturais. A segunda solução significava
"vomitar os estrangeiros" em vez de devorá-los: recolhê-los e expeli-los (exatamente o que Oriana
Fallaci, a formidável jornalista e formadora de opinião italiana, sugeriu que nós, europeus, deveríamos
fazer com pessoas que adoram outros deuses e adotam estranhos hábitos de higiene), fosse do domínio do
poder de Estado ou do próprio mundo dos vivos.
Observemos, contudo, que perseguir uma dessas duas soluções só fazia sentido com base em
pressupostos gêmeos: o da clara divisão territorial entre o "dentro" e o "fora" e o da inteireza e
indivisibilidade da soberania do poder de escolha estratégica no interior de seu domínio. Nenhum dos
dois goza de muita credibilidade nos dias de hoje, em nosso líquido mundo moderno. E assim as chances
de empregar uma das duas estratégias ortodoxas são no mínimo reduzidas.
Com as formas de ação testadas não estando mais disponíveis, parece que ficamos sem uma boa
estratégia para lidar com recém-chegados. Numa época em que nenhum modelo cultural pode afirmar, de
modo peremptório e efetivo, sua superioridade sobre os concorrentes, e quando a mobilização patriótica
voltada à construção nacional deixou de ser o principal instrumento de integração social e de autoafirmação
do Estado, a assimilação cultural não figura mais no programa. Já que deportações e expulsões
criam imagens de televisão dramáticas e perturbadoras, e podem desencadear os clamores do público,
maculando as credenciais internacionais dos responsáveis, a maioria dos governos prefere, se possível,
passar ao largo do problema fechando as portas àqueles que batem em busca de abrigo.
A atual tendência a reduzir drasticamente o direito de asilo político, acompanhada pela firme
recusa ao ingresso de "migrantes econômicos" (exceto nos momentos, poucos e transitórios, em que as
empresas ameaçam mudar-se para onde a mão-de-obra está se esta não for trazida para onde elas estão),
essa tendência assinala não uma nova estratégia com relação ao fenômeno dos refugiados, mas uma
ausência de estratégia, assim como o desejo de evitar uma situação em que essa ausência acarrete
embaraços políticos. Nessas circunstâncias, o ataque terrorista de 11 de setembro ajudou enormemente os
políticos. Além das acusações comuns de viverem à custa da previdência social e de roubarem empregos,
(19) ou de trazerem para o país doenças há muito esquecidas, como a tuberculose, ou recentemente
surgidas, como a aids, (20) os refugiados podem agora ser acusados de fazer o papel de "quinta coluna"
em favor da rede terrorista global. Há finalmente um motivo "racional" inatacável para recolher,
encarcerar e deportar pessoas com as quais não se sabe mais lidar nem se deseja ter o trabalho de
descobrir. Nos Estados Unidos, e logo depois na Inglaterra, sob a bandeira da "campanha contra o
terrorismo", estrangeiros foram prontamente privados de direitos humanos essenciais que até então
haviam resistido a todas as vicissitudes da história desde a Magna Carta e do habeas corpus. Estrangeiros
podem agora ser detidos indefinidamente sob acusações das quais não podem se defender porque não lhes dizem quais são elas. Na observação ácida de Martin Thomas, (21) de agora em diante, numa
dramática reversão do princípio básico do direito civilizado, a "prova de uma acusação criminal é um
complicados redundante" - ao menos no que se refere aos refugiados estrangeiros.
As portas podem estar fechadas, mas o problema não irá embora, por mais bem resistentes que
sejam as trancas. Elas nada podem fazer para suavizar ou debilitar as forças que causam o deslocamento e
transformam seres humanos em refugiados. As trancas podem ajudar a manter o problema fora da vista e
da mente, mas não podem forçá-lo a se afastar de nossa vida.
E assim, cada vez mais, os refugiados se vêem sob fogo cruzado -mais exatamente, numa
encruzilhada.
Eles são expulsos à força ou afugentados de seus países nativos, mas sua entrada é recusada em
todos os outros. Não mudam de lugar - perdem seu lugar na terra, catapultados para lugar algum, para
os "non-lieux" de Augé, as "nowherevilles" de Garreau ou as "Narrenschiffen" de Michel Foucault. Para
um flutuante "lugar sem lugar, existente por si mesmo, fechado em si mesmo e ao mesmo tempo
abandonado na infinidade do mar" (22). OU (como sugere Michel Algier num artigo a ser publicado na
revista Ethnography) para um deserto, por definição uma terra desabitada, avessa aos seres humanos e
raramente visitada.
Os refugiados se tornaram, à imagem caricatural da nova elite do poder no mundo globalizado, a
epítome daquela extraterritorialidade em que se fincam as raízes da atual precarité da condição humana,
que tem lugar de destaque entre os temores e ansiedades de nossos dias. Esses temores e ansiedades,
procurando em vão por outros escoadouros, despejaram-se sobre o ressentimento e o medo que os
refugiados provocam. Não podem ser desativados nem dispersos num confronto direto com a outra
encarnação da extraterritorialidade, a elite global flutuando além do alcance do controle humano,
poderosa demais para que se possa enfrentá-la. Os refugiados, ao contrário, são um alvo fixo em que se
descarregar o excesso de angústia...
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), há entre 13 e
18 milhões de "vítimas de deslocamento forçado" lutando para sobreviver além das fronteiras dos seus
países de origem (sem contar os milhões de refugiados "internos" no Burundi e em Sri Lanka, na
Colômbia e em Angola, no Sudão e no Afeganistão, condenados ao nomadismo por força de
intermináveis guerras tribais). Destes, mais de seis milhões estão na Ásia, e de sete a oito milhões na
África. Há três milhões de refugiados palestinos no Oriente Médio. Essa estimativa é, com certeza,
conservadora. Nem todos os refugiados são (ou desejam ser) reconhecidos como tais - só algumas das
pessoas deslocadas tiveram a sorte de serem registradas pelo ACNUR e ficarem sob seus cuidados.
Aonde quer que vão, os refugiados são indesejados, e não deixam dúvidas sobre isso. Os
identificados como "migrantes econômicos" (ou seja, pessoas que seguem os preceitos da "escolha
racional" e assim tentam encontrar formas de subsistência onde elas podem ser encontradas, em vez de
ficarem onde elas não existem) são abertamente condenados pelos mesmos governos que fazem de tudo
para que a "flexibilidade da força de trabalho" se transforme na principal virtude de seu eleitorado, e que
exortam os desempregados de seus próprios países a "correrem atrás" dos compradores de mão-de-obra.
Mas a suspeita de motivação econômica também respinga sobre aqueles recém-chegados que, não muito
tempo atrás, eram vistos como pessoas no exercício de seus direitos humanos procurando abrigar-se da
discriminação e da perseguição. Por associação repetida, a expressão "em busca de asilo" adquiriu um
sabor pejorativo. Grande parte do tempo e da capacidade cerebral dos estadistas da "União Européia" é
empregada no planejamento de formas cada vez mais sofisticadas de fechar e fortificar fronteiras, bem
como dos processos mais eficazes para se livrarem de pessoas em busca de pão e abrigo que, apesar de
tudo, tenham conseguido cruzá-las.
Para não ficar atrás, David Blunkett, ministro do Interior britânico, ameaçou cortar a ajuda dos
países de origem dos refugiados caso eles não levassem de volta os "desqualificados em busca de asilo"
(23). Essa não foi a única idéia nova. Blunkett pretende "forçar o ritmo da mudança", queixando-se de
que, devido à falta de energia de outras lideranças européias, "o progresso tem sido muito lento" Ele
deseja a criação de uma "força de operações conjuntas", com a participação de todos os países europeus, e
de "uma força-tarefa de especialistas nacionais" para "elaborar avaliações de riscos comuns, identificar os
pontos fracos nas ... fronteiras externas da União Européia, abordar a questão da migração ilegal por via
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marítima e pôr fim ao tráfico [novo termo destinado a substituir o conceito de 'trânsito, anteriormente
nobre] de seres humanos".
Com a cooperação ativa de governos e pessoas influentes que encontram no favorecimento e na
instigação de preconceitos populares o único substituto disponível para o confronto das fontes genuínas
da incerteza existencial que assalta seus eleitores, as "pessoas em busca de asilo" (como aquelas que
reúnem suas forças nos inúmeros Sangattes da Europa, preparando-se para a invasão das ilhas britânicas,
ou as que estão para se estabelecer, a menos que as impeçam, em acampamentos estratégicos a poucos
quilômetros das residências dos eleitores), essas pessoas estão tomando o lugar das bruxas, dos fantasmas
de malfeitores impenitentes e de outros espectros e demônios das lendas urbanas. O novo folclore urbano,
em rápida expansão, com as vítimas dessa expulsão planetária no papel de protagonistas malintencionados,
assimila e recicla a tradição oral das arrepiantes histórias de terror que no passado
encontravam uma ávida demanda, gerada, tal como agora, pelas inseguranças da vida na cidade.
Aqueles migrantes que, apesar dos estratagemas mais engenhosos, não podem ser rapidamente
deportados, o governo propõe confinar em campos construídos em lugares possivelmente remotos e
isolados - medida que transforma em profecia auto-cumprida a crença de que eles não desejam ou não
podem ser assimilados à vida econômica do país. Assim, como observa Gary Young, "efetivamente
erigem bantustões em torno da zona rural da Inglaterra, encurralam os refugiados de formas que os
deixam isolados e vulneráveis" (24). (Pessoas em busca de asilo, assinala Young, "são mais propensas a
serem vítimas de crimes do que a cometê-los")
Segundo os registros do ACNUR, estão confinados nesses campos 83,2% dos refugiados na
África e 95,9% na Ásia. Na Europa, até agora são apenas 14,3%. Mas, até o momento, há poucos sinais
de que essa diferença em favor da Europa se sustentará por muito tempo.
Os campos de refugiados ou as pessoas em busca de asilo são artífices de uma instalação temporária
que o bloqueio das saídas torna permanente.
Os internos dos campos de refugiados ou as pessoas em busca de asilo não podem voltar "ao lugar
de onde vieram", já que os países de origem não os querem de volta, suas formas de subsistência foram
destruídas e seus lares, pilhados, demolidos ou roubados. Mas também não existe um caminho à frente -
nenhum governo teria satisfação em ver o influxo de milhões de sem-teto, e qualquer um faria o possível
para evitar que os recém-chegados se estabelecessem.
Quanto à sua nova localização "permanentemente temporária, os refugiados "estão nela, mas não
são dela". Não pertencem verdadeiramente ao país em cujo território foram montadas suas cabanas ou
tendas portáteis. São separados do restante dele por uma cortina de suspeitas e ressentimentos que é
invisível, mas ao mesmo tempo espessa e impenetrável. Estão suspensos num vácuo espacial em que o
tempo foi interrompido. Não se estabeleceram nem estão em movimento. Não são sedentários nem
nômades.
Nos termos em que habitualmente se descrevem as identidades humanas, eles são inefáveis. São,
em carne e osso, os "indecidíveis" de Jacques Derrida. Entre pessoas como nós, que outras valorizam e
que se vangloriam das artes da reflexão e auto-reflexão, eles não são apenas intocáveis, mas também
impensáveis. Num mundo transbordando de comunidades imaginadas, são inimagináveis. E é recusandolhes
o direito de serem imaginados que os outros, agregados em comunidades genuínas ou aspirantes a
isso, buscam credibilidade para os seus próprios esforços de imaginação.
A proliferação de campos de refugiados é um produto/manifestação tão integral da globalização
quanto o denso arquipélago de nowherevilles através do qual se movem os membros da nova elite
em suas viagens ao redor do mundo.
O atributo compartilhado por globetrotters e refugiados é sua extraterritorialidade: não
pertencerem ao lugar, estarem "no" mas não serem "do" espaço que fisicamente ocupam (os globetrotters
numa sucessão de momentos reconhecidamente fugazes, os refugiados numa série de momentos
infinitamente ampliada).
Pelo que sabemos, as nowherevilles dos campos de refugiados - tal como as pousadas
eqüidistantes em que se hospedam os comerciantes supranacionais capazes de viajar livremente - podem
ser as cabeças-de-ponte de uma extraterritorialidade que avança, ou (numa perspectiva mais longa)
laboratórios em que a dessemantização do lugar, a fragilidade e descartabilidade dos meios, a
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indeterminação e a plasticidade das identidades, e acima de tudo a nova permanência da transitoriedade
(todas elas tendências constitutivas da fase "líquida" da modernidade) são vivenciadas sob condições
extremas: testadas como os limites da elasticidade e da submissão humanas, assim como as formas de
atingi-los, foram testados nos campos de concentração no estágio "sólido" da história moderna.
Como todas as outras nowherevilles, os campos de refugiados são marcados por uma
transitoriedade intencional, pré-programada e embutida. Todas essas instalações são concebidas e
planejadas como um buraco tanto no tempo como no espaço, uma suspensão transitória na seqüência
temporal da construção de identidades e da atribuição territorial. Mas as faces que as duas variedades de
nowherevilles apresentam a seus respectivos usuários/internos diferem agudamente. Os dois tipos de
extraterritorialidade sedimentam-se, por assim dizer, em lados opostos do processo de globalização.
O primeiro oferece a transitoriedade como uma instalação livremente escolhida; o segundo a torna
permanente - um destino irrevogável e inelutável. Essa é uma diferença parecida com a que separa os
dois equipamentos da permanência segura: as comunidades fechadas dos ricos discriminadores e os
guetos dos pobres discriminados. E as causas dessa diferença também são semelhantes: de um lado,
entradas estritamente guardadas e vigiadas, mas saídas escancaradas; de outro, uma entrada amplamente
indiscriminada, mas saídas cuidadosamente fechadas. É o fechamento das saídas, em particular, que
perpetua o estado de transitoriedade sem substituí-lo pela permanência. Nos campos de refugiados, o
tempo está excluído da mudança qualitativa. Continua sendo tempo, mas não é mais história.
Os campos de refugiados apresentam uma nova qualidade: uma "transitoriedade congelada", um
estado contínuo, permanente, de temporalidade, uma duração de momentos remendados, nenhum dos
quais vivido como um elemento da perpetuidade, muito menos como contribuição a ela. Para os internos
dos campos de refugiados, a perspectiva de seqüelas a longo prazo e de suas conseqüências não faz parte
da experiência. Eles vivem, literalmente, um dia após o outro, e os conteúdos da vida cotidiana não são
afetados pelo conhecimento de que os dias se combinam para formarem meses e anos. Tal como nas
prisões e "hiperguetos" esmiuçados e vivamente descritos por Loïc Wacquant, esses refugiados
"aprendem a viver, ou melhor, sobreviver [(sur)vivre] dia a dia na imediação do momento, banhando-se
no ... desespero que cresce dentro dos muros". (25)
A corda que prende os refugiados aos campos é trançada por forças de atração e repulsão.
Os poderes que governam o local onde as tendas ou barracas foram armadas, e também as terras
em torno do campo, fazem o possível para evitar que os internos escapem e se espalhem sobre o território
adjacente. Mesmo na ausência de guardas armados nas saídas, o lado de fora do campo está,
essencialmente, fora dos limites estabelecidos para os internos. É, na melhor das hipóteses, inóspito, cheio
de pessoas circunspectas, insensíveis e desconfiadas, ávidas por observar, registrar e sustentar contra eles
qualquer erro, real ou suposto, assim como qualquer passo em falso que possam dar - coisa que os
refugiados, afastados de seu elemento e desconfortáveis num ambiente estranho, estão propensos a fazer.
Na terra em que suas tendas temporárias/permanentes foram armadas, os refugiados continuam
sendo evidentes "outsiders", uma ameaça à segurança que os "estabelecidos" extraem de sua rotina diária
até então inconteste. São um desafio à visão de mundo que vinha sendo universalmente compartilhada e
uma fonte de perigos ainda não confrontados, ajustando-se com dificuldade às brechas familiares e
evitando as formas habituais de resolver problemas. (26)
O encontro de nacionais e refugiados é, com certeza, a espécie mais espetacular de "dialética dos
estabelecidos e outsiders" (que parece ocupar em nossos dias o papel de fixador de padrões que já
pertenceu à dialética senhor-escravo), descrita pela primeira vez por Elias e Scotson. (27) Os
"estabelecidos" usando seu poder de definir a situação e impor essa definição a todos os envolvidos,
tendem a trancar os recém-chegados numa gaiola de estereótipos, "uma representação altamente
simplificada das realidades sociais"* Estereotipar cria "um modelo em preto e branco" que não deixa
"espaço para as diversidades". Os outsiders são culpados até prova em contrário, mas como são os
estabelecidos que combinam os papéis de promotores, juízes de instrução e magistrados, de modo que
simultaneamente apresentam as acusações, julgam e proferem a sentença, as chances de absolvição dos
outsiders são reduzidas, para não dizer nulas. Como Elias e Scotson descobriram, quanto mais ameaçada
a população estabelecida se sente, mais tende a levar suas crenças "aos extremos da ilusão e da rigidez
doutrinária". Confrontada com um influxo de refugiados, essa população tem todas as razões para se
sentir ameaçada. Além de representarem o "grande desconhecido" que todos os estrangeiros encarnam, os
refugiados trazem consigo os ruídos de uma guerra distante e o fedor de lares pilhados e aldeias
incendiadas que só podem lembrar aos estabelecidos a facilidade com que o casulo de sua rotina segura e
familiar (segura porque familiar) pode ser rompido ou esmagado. Os refugiados, como assinalou Bertold
Brecht em Die Landschaft des Exils [A paisagem do exílio], são "ein Bote des Unglücks" ("um arauto das
más notícias").
Aventurando-se do campo para um distrito vizinho, os refugiados se expõem a um tipo de
incerteza que descobrem ser difícil de suportar depois da rotina diária do campo, estagnante e congelada
mas confortavelmente previsível. A poucos passos do perímetro do campo, eles se encontram num
ambiente hostil. Seu direito de ingresso no "lado de fora" é, na melhor das hipóteses, um assunto em
debate, podendo ser contestado por qualquer transeunte. Em comparação com essa solidão externa, o
interior do campo pode muito bem passar por um refúgio seguro. Só o imprudente e o aventureiro
desejariam deixá-lo por um tempo considerável, e bem poucos ousariam concretizar esse desejo.
Usando termos tirados das análises de Loïc Wacquant, (28) podemos dizer que os campos de
refugiados misturam, combinam e consolidam os traços distintivos da "comunidade- gueto" da era FordKeynes
com os do "hipergueto" de nossos tempos pós-fordistas e pós-keynesianos. Se as "comunidadesguetos"
eram semelhantes a totalidades sociais auto-sustentáveis e auto-reprodutoras, com réplicas em
miniatura da estratificação, das divisões funcionais e das instituições características da sociedade mais
ampla, destinadas a atender à totalidade de necessidades da vida comunal, os "hiperguetos" são tudo,
menos comunidades auto-sustentáveis. São grupamentos populacionais truncados, artificiais e
evidentemente incompletos; agregados, mas não comunidades; condensações topográficas incapazes de
viver por si mesmas. Já que as elites conseguiram sair do gueto e deixaram de alimentar a rede de
empreendimentos econômicos que sustentava (ainda que precariamente) a subsistência de sua população,
as agências estatais de proteção e controle (duas funções, via de regra, intimamente interligadas)
ocuparam seu lugar. O "hipergueto" está preso por cordas que se originam além de suas fronteiras e que
certamente estão fora do seu controle.
Michel Agier enxergou nos campos de refugiados traços de "comunidades-guetos" interligados,
numa estreita rede de dependência mútua, com os atributos do "hipergueto (29) Podemos supor que essa
combinação aperte com ainda mais força os laços que prendem os internos do campo. A força de atração
que mantém juntos os moradores da "comunidade-gueto" e a de repulsão que condensa os proscritos no
"hipergueto", ambas poderosas, se superpõem e se reforçam mutuamente. Combinadas com a
efervescente e inflamante hostilidade do ambiente externo, elas produzem uma força centrípeta
esmagadora, difícil de resistir, tornando totalmente redundantes as técnicas de contenção e isolamento
desenvolvidas pelos administradores e supervisores dos Auschwitzes ou Gulags. Mais que quaisquer
outros micromundos sociais arquitetados, os campos de refugiados se aproximam do tipo ideal de
"instituição total" de Erving Goffman: oferecem, por ação ou omissão, uma "vida total" de que não se
pode escapar, com o acesso a qualquer outra forma de vida efetivamente barrado.
Tendo abandonado, voluntariamente ou à força, seu ambiente antigo e familiar, os refugiados
tendem a ser despidos das identidades definidas, sustentadas e reproduzidas por aquele meio.
Socialmente, são como "zumbis": suas antigas identidades sobrevivem principalmente como
fantasmas, assombrando as noites dos campos de modo ainda mais doloroso por serem totalmente
invisíveis à luz do dia. Mesmo as mais confortáveis, prestigiosas e invejáveis dentre as velhas identidades
tornam-se desvantajosas -dificultam a busca por novas identidades mais adequadas ao novo meio,
impedem que se seja obrigado a enfrentar as novas realidades e retardam o reconhecimento da
permanência dessa nova condição.
Para todos os fins práticos, os refugiados foram consignados àquele estágio intermediário, "nem
um nem outro", da passagem em três etapas de Van Gennep e Victor Turner (30) - mas sem que essa
consignação tenha sido reconhecida pelo que é, sem um tempo de duração determinado, sobretudo sem a
consciência de que a opção de retorno à condição anterior não existe mais, e sem uma indicação da
natureza dos ambientes que podem aparecer pela frente. Relembremos que, no esquema de "passagem"
tripartido, o desnudamento que privou os portadores dos antigos papéis dos atributos sociais e símbolos
culturais do status que um dia tiveram (a produção social, com a anuência do poder, do "corpo nu", como
diria Giorgio Agamben (31)) não era senão um estágio preliminar necessário para recobrir os
"socialmente nus" com a parafernália de seu novo papel social. A nudez social (freqüentemente também
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corpórea) era apenas um breve intermezzo a separar os dois movimentos, dramaticamente distintos, da
ópera da vida - assinalando a separação entre os dois meios, sucessivamente assumidos, de direitos e
obrigações sociais. É diferente, contudo, no caso dos refugiados. Embora sua condição comporte todos os
traços (e conseqüências) da nudez social característica do estágio de passagem intermediário, transitório
(falta de definição social e de direitos e deveres codificados), ela não é um "estágio" intermediário ou
transitório que leve a algum "estado estacionário" específico e socialmente definido. Na difícil situação
dos refugiados, a condição designada como "intermediação personificada" se estende indefinidamente
(uma verdade que o destino dramático dos campos de refugiados palestinos trouxe recentemente, de modo
violento, à atenção do público). O "estado estacionário" passível de emergir só pode ser um efeito
colateral não-planejado e indesejado do desenvolvimento suspenso ou interrompido - de tentativas
fluidas, reconhecidamente temporárias e experimentais, de sociação [sociation] congelando-se
imperceptivelmente em estruturas rígidas, não mais negociáveis, que prendem os internos com mais
firmeza do que guardas armados e arame farpado.
A permanência da transitoriedade, a durabilidade do transitório, a determinação objetiva não
refletida na seqüencialidade subjetiva das ações, o papel social perpetuamente subdefinido, ou mais
corretamente uma inserção no fluxo da existência sem a âncora de um papel social - todos esses traços
da líquida vida moderna, assim como outros correlates, foram expostos e documentados nos achados de
Agier. Na extraterritorialidade territorialmente fixada do campo de refugiados, eles aparecem numa forma
muito mais extrema, não-diluída e assim mais claramente visível do que em qualquer outro segmento da
sociedade contemporânea.
Pode-se imaginar em que medida os campos de refugiados seriam laboratórios onde (talvez de
forma inadvertida, mas nem por isso menos poderosa) o novo padrão de vida líquido-moderno,
"permanentemente transitório", está sendo testado e ensaiado.
Em que medida as nowherevilles dos refugiados seriam exemplos antecipados do mundo que está
por vir, e seus internos lançados/empurrados/forçados a assumir o papel de exploradores pioneiros?
Questões desse tipo só podem ser respondidas em retrospecto - se é que podem.
Por exemplo, podemos ver agora - com o benefício do retrospecto - que os judeus que
deixaram os guetos no século XIX foram os primeiros a experimentar e compreender em sua totalidade a
incongruência do projeto de assimilação, assim como as contradições internas do preceito corrente de
auto-afirmação, vivenciadas mais tarde por todos os habitantes da modernidade emergente. E agora
começamos a ver, novamente com o beneficio do retrospecto, que os membros da intelligentsia
multiétnica pós-colonial (como Ralph Singh, nos Mímicos de Naipaul, que não conseguia se esquecer de
ter oferecido uma maçã a sua professora favorita, como se supõe que faça toda criança inglesa bemeducada,
embora soubesse muito bem que não há maçãs na ilha caribenha em que ficava a escola) foram
os primeiros a experimentar e compreender as falhas, a incoerência e a falta de coesão fatais do preceito
da construção de identidade que seriam vivenciadas pouco depois pelos demais habitantes do líquido
mundo moderno.
Talvez chegue o momento de se descobrir o papel de vanguarda desempenhado pelos atuais
refugiados - de explorar o sabor da vida na nowhereville e a obstinada permanência da transitoriedade
que pode se tornar o hábitat comum dos moradores de nosso planeta total e globalizado.
Só o tipo de comunidade que ocupa a maior parte do discurso político de hoje, mas não pode ser
encontrada em nenhum outro lugar - a comunidade global, uma comunidade inclusiva, mas não
exclusiva, que se ajusta à visão de Kant da allgemeine Vereinigung in der Menschengattung -,
poderia tirar os atuais refugiados do vácuo sociopolítico ao qual foram relegados.
Todas as comunidades são imaginadas. A "comunidade global" não é exceção. Mas a imaginação
tende a se transformar numa força integradora tangível, potente e efetiva quando auxiliada pelas
instituições socialmente produzidas e politicamente sustentadas da auto-identificação e do autogoverno
coletivos. Isso já aconteceu antes - no caso das nações modernas, casadas, na alegria e na tristeza, até
que a morte os separe, com os modernos Estados soberanos.
No que se refere à comunidade global imaginada, uma rede institucional similar (que agora só
pode ser constituída por agencias globais de controle democrático, por um sistema jurídico globalmente
sustentado e por princípios éticos globalmente defendidos) é totalmente inexistente. E isso, sugiro eu, é
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uma causa importante, talvez a principal, daquela maciça produção de desumanidade a que,
eufemisticamente, se deu o nome de "problema dos refugiados".
À época em que Kant anotou seus pensamentos sobre a comunidade humana, totalmente humana,
que a Natureza decretou ser o destino de nossa espécie, a universalidade da liberdade individual foi
declarada o propósito e a visão orientadora cujo advento os homens da prática, inspirados e observados de
perto pelos homens do pensamento, deveriam e seriam instados a perseguir e acelerar. A comunidade
humana e a liberdade individual eram vistas como duas faces da mesma tarefa (ou, com mais precisão,
como irmãs siamesas), já que a liberdade (para citar o estudo de Alain Finkielkraut sobre a herança do
século XX publicado sob o adequado título de "A perda da humanidade" (32)) era concebida como
equivalente à "irredutibilidade do indivíduo à sua posição, status, comunidade, nação, origens e
linhagem". Os destinos da comunidade planetária e da liberdade individual eram considerados, com boa
razão, inseparáveis. Presumia-se, quando se pensava sobre o tema, que a Vereinigung in der
Menschengattung e a liberdade de todos os seus membros só poderiam prosperar juntas, ou juntas fenecer
e morrer, mas nunca nascer sozinhas ou viver separadas. Ou a participação na espécie humana supera
todas as outras atribuições e alianças, mais particulares, quando se trata da formulação e alocação de leis e
direitos produzidos pelo homem, ou a causa da liberdade como direito humano inalienável está
comprometida ou mesmo totalmente perdida. Tertium non datur.
Esse axioma logo perdeu sua incipiente auto-evidência e veio a ser quase esquecido conforme os
seres humanos, libertos do confinamento em propriedades e linhagens hereditárias, eram prontamente
encarcerados na nova prisão trina da aliança território/nação/Estado, enquanto os "direitos humanos"- na
prática política, se não na teoria filosófica - eram redefinidos como produto da união pessoal entre o
súdito de um Estado, o membro de uma nação e o residente legítimo de um território. A "comunidade
humana" parece tão distante da atual realidade planetária quanto no início da aventura moderna. Nas
presentes visões do futuro, o lugar que se tende a atribuir-lhe - se é que de fato se contempla tal
atribuição - está ainda mais distante do que há dois séculos. Ela não parece mais iminente nem
inescapável.
Até aqui, as perspectivas são sombrias.
Em sua recente e sóbria avaliação da atual tendência, David Held considera que a afirmação do
"status moral irredutível de todas as pessoas e de cada uma delas" e a rejeição da "visão dos
particularistas morais de que pertencer a determinada comunidade limita e determina o valor moral dos
indivíduos e a natureza de sua liberdade" ainda são tarefas importantes e amplamente vistas como
"desconfortáveis". (33)
Held observa uns poucos acontecimentos que trazem esperança - em especial a Declaração dos
Direitos Humanos, das Nações Unidas, de 1948 e o Estatuto do Tribunal de Crimes Internacionais de
1998, embora este último ainda esteja esperando em vão pela ratificação e seja sabotado de modo ativo
por alguns dos principais atores globais -, mas assinala ao mesmo tempo "fortes tentações no sentido de
simplesmente fechar as portas e defender apenas a posição de alguns países e nações", As perspectivas
pós-11 de setembro também não são particularmente animadoras. Elas contêm uma chance de "reforçar as
instituições multilaterais e os acordos jurídicos internacionais", mas ainda há a possibilidade de reações
que "poderiam afastar-nos dessas frágeis conquistas, na direção de um mundo com maiores antagonismos
e divisões -uma sociedade nitidamente incivil" Mas nosso consolo (o único disponível, mas também -
permitam-me acrescentar - o único de que a humanidade necessita quando cai numa era sombria) é o
fato de que "a história ainda está conosco e pode ser construída".
De fato. A história não terminou, de modo que escolhas ainda podem ser feitas - e
inevitavelmente serão. Cabe indagar, porém, se as escolhas feitas nos últimos dois séculos nos colocaram
mais perto do alvo visado por Kant, ou se, ao contrário, após 200 anos de ininterrupta promoção,
consolidação e predomínio do Princípio Trinitário, nos encontramos mais longe desse alvo do que no
início da aventura moderna.
O mundo não é humano só por ser feito de seres humanos, nem se torna assim somente porque a voz humana nele
ressoa, mas apenas quando se transforma em objeto do discurso ... Nós humanizamos o que se passa no mundo e em
nós mesmos apenas falando sobre isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos.
Esse humanitarismo a que se chega no discurso da amizade era chamado pelos gregos de filantropia, o "amor do
homem", já que se manifesta na presteza em compartilhar o mundo com outros homens.
Essas palavras de Hannah Arendt poderiam - deveriam - ser lidas como prolegômenos a
quaisquer esforços futuros com o objetivo de reverter a tendência e aproximar a história do ideal de
"comunidade humana". Seguindo Lessing, seu herói intelectual, Arendt adverte que a "abertura aos
outros" é "a precondição da 'humanidade' em qualquer sentido dessa palavra ... O diálogo
verdadeiramente humano difere da mera conversa ou até da discussão por ser totalmente permeado pelo
prazer com a outra pessoa e com o que ela diz". (34) O grande mérito de Lessing, na visão de Arendt, foi
ficar "satisfeito com o número infinito de opiniões que aparecem quando os homens discutem os assuntos
deste mundo" Lessing
alegrava-se com aquilo que sempre - ou pelo menos desde Parmênides e Platão - perturbou os filósofos: que a
verdade, tão logo proferida, é imediatamente transformada numa opinião entre muitas, contestada, reformulada,
reduzida a um tema de discurso entre tantos outros. A grandeza de Lessing não consiste meramente no insight teórico
de que não pode haver uma única verdade no mundo humano, mas em sua alegria pelo fato de que ela não existe e
que, portanto, o infindável discurso entre os homens jamais terminará enquanto estes existirem. Uma única verdade
absoluta ... teria sido a morte de todas essas disputas ... e isto poderia ter significado o fim da humanidade. (35)
O fato de outros discordarem de nós (não prezarem o que prezamos, e prezarem justamente o
contrário; acreditarem que o convívio humano possa beneficiar-se de regras diferentes daquelas que
consideramos superiores; acima de tudo, duvidarem de que temos acesso a uma linha direta com a
verdade absoluta, e também de que sabemos com certeza onde uma discussão deve terminar antes mesmo
de ter começado), isso não é um obstáculo no caminho que conduz à comunidade humana. Mas a
convicção de que nossas opiniões são toda a verdade, nada além da verdade e sobretudo a única verdade
existente, assim como nossa crença de que as verdades dos outros, se diferentes da nossa, são "meras
opiniões", esse sim é um obstáculo. Ao logo da história, tais convicções e crenças extraem sua
credibilidade da superioridade material e/ou do poder de resistência de seus portadores - e estes baseiam
sua força na firmeza da Regra Trinitária. Com efeito, o "complexo de soberania" entrincheirado na
[anti]santíssima união de território, nação e Estado exclui efetivamente o discurso que Lessing e Arendt
consideravam a "precondição da humanidade"* Permite que os parceiros/adversários adulterem os dados
e embaralhem maliciosamente as cartas antes de começarem o jogo da comunicação mútua, e que
interrompam o debate antes que se esteja perigosamente perto de descobrir a trapaça.
A Regra Trinitária tem um impulso autoperpetuador. Ele confirma sua própria verdade à medida
que ganha ascendência sobre as vidas e mentes humanas. Um mundo dominado por essa regra é um
mundo de "populações nacionalmente frustradas" que, estimuladas por sua frustração, acabam
convencidas de que "a verdadeira liberdade, a verdadeira emancipação" só podem ser obtidas "com a
plena emancipação nacional" (36) - ou seja, mediante a mágica mistura da nação com um território e um
Estado soberano. Foi a Regra Trinitária que causou a frustração, e é ela mesma que se oferece como
remédio. A dor sofrida pelos excluídos da aliança territorial/nacional/estatal alcança suas vítimas depois
de pre viamente reprocessada na aparelhagem trinitária, e é fornecida juntamente com um folheto
explicativo e com sua receita certa de cura, travestida de sabedoria empiricamente validada. Durante o
reprocessamento, a aliança é transmutada, como num milagre, de maldição em bênção, de causa da dor
em anestésico.
Arendt conclui seu ensaio "Sobre a humanidade em tempos sombrios" com uma citação de
Lessing: "Jeder sage, was ihm Wahrheit dünkt,/ und die Wahrheit selbst sei Gott empfohlen"
("Que cada homem diga o que considera a verdade,/ e que a própria verdade seja confiada a Deus"
). (37)
A mensagem de Lessing/Arendt é muito direta. Confiar a verdade a Deus significa deixar em
aberto a questão da verdade (de "quem está certo"). A verdade só pode emergir bem no final da conversa
- e numa conversa genuína (quer dizer, que não seja um solilóquio disfarçado). Nenhum parceiro tem
certeza, ou capacidade, de saber qual pode ser esse final (se é que ele existe). Um orador, e também um
pensador que pensa do "modo orador", não pode, como assinala Franz Rosenzweig, "prever coisa alguma;
deve ser capaz de esperar porque depende da palavra do outro - precisa de tempo". (38) E como aponta
Nathan Glazer, o mais perspicaz dos discípulos de Rosenzweig, há "um curioso paralelo" entre esse
modelo de pensador no "modo orador" e o conceito processual/dialético de verdade proposto por William
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James: "A verdade acontece a uma idéia. Ela se torna verdade, é transformada em verdade pelos
eventos. Sua veracidade é de fato um evento, um processo: o de verificar-se, sua veri-ficação. Sua
validade é o processo de sua validação." (39) A afinidade, com efeito, é impressionante - embora, para
Rosenzweig, a fala que se engaja honesta e esperançosamente num diálogo, uma fala incerta do resultado
deste e portanto de sua própria verdade, seja a principal substância do "evento" em que se "faz" a verdade,
e o principal instrumento desse "fazer"
A verdade é um conceito eminentemente agonístico. Nasce do confronto entre crenças que
resistem à conciliação e entre seus portadores relutantes em chegar a um acordo. Sem esse confronto, a
idéia de "verdade" dificilmente teria ocorrido, para começo de conversa. "Saber como ir em frente" seria
tudo de que se precisaria - e o ambiente em que se faz necessário "ir em frente", a menos que desafiado
e assim tornado "estranho" e esvaziado de sua "auto-evidência", tende a se completar com a inequívoca
prescrição de "ir em frente". Debater a verdade é uma resposta à "dissonância cognitiva" Ela é instigada
pelo impulso a desvalorizar e desempoderar (despotencializar) outra leitura do ambiente e/ou outra
prescrição de ação que lance dúvida sobre a leitura e a rotina de ação de alguém. Esse impulso crescerá de
intensidade quanto mais as objeções/obstáculos se tornarem vociferantes e difíceis de abafar. O interesse
em debater a verdade, e o principal propósito de sua auto-afirmação, é prova de que o parceiro/adversário
está errado e de que, portanto, as objeções são inválidas e podem ser desprezadas.
Quando se trata de discutir a verdade, as chances de uma "comunicação não-distorcida", tal como
foi postulado por Jürgen Habermas, se tornam diminutas. (40) Os protagonistas dificilmente resistirão à
tentação de recorrer a outros meios, mais efetivos, que não a elegância lógica e o poder persuasivo de
seus argumentos. Em vez disso, farão o possível para tornar os argumentos do adversário inconseqüentes,
de preferência inaudíveis ou, melhor ainda, jamais vocalizados, pela desqualificação daqueles que, se
pudessem, os vocalizariam. Um argumento que tem grande chance de ser apresentado é o da
inelegibilidade do adversário como interlocutor pelo fato de ele ser inepto, mentiroso ou inconfiável, malintencionado
ou claramente inferior.
Se isso fosse possível, em vez de argumentar seria preferível recusar a conversa ou abandonar o
debate. Entrar na discussão é, afinal, uma confirmação oblíqua das credenciais do parceiro e uma
promessa de seguir as regras e padrões do discurso (contrafactualmente) lege artis e bona fide. Acima de
tudo, entrar na discussão significa, como apontou Lessing, confiar a verdade a Deus. Em termos mais
objetivos, significa fazer do resultado do debate um refém do destino. É mais seguro, se possível, declarar
os adversários errados a priori e privá-los da capacidade de apelar do veredicto do que tentar enredá-los
num litígio judicial e expor o próprio argumento a um interrogatório rigoroso, arriscando que seja
rejeitado ou derrotado.
O expediente de desqualificar o adversário num debate sobre a verdade é usado com maior
freqüência pelo lado mais forte - nem tanto por sua maior iniqüidade, mas por sua maior engenhosidade.
Podemos dizer que a capacidade de ignorar os adversários e fechar os ouvidos às causas que eles
promovem é o índice pelo qual se pode medir o volume e o poder relativos dos recursos. Inversamente,
voltar atrás na recusa para debater e concordar em negociar a verdade é com muita freqüência um sinal de
fraqueza - circunstância que torna o lado mais forte (ou alguém que deseje demonstrar sua força
superior) ainda mais relutante em abandonar sua posição de rejeição.
A rejeição do estilo de Rosenzweig de "pensamento orador" é capaz de se perpetuar e fortalecer.
Do lado do mais forte, a recusa em conversar pode passar por um sinal de que se "tem razão", mas para o
lado oposto a negação do direito de defender sua causa que essa recusa acarreta, e conseqüentemente a
recusa em reconhecer seu direito de ser ouvido e levado a sério como um portador de direitos humanos,
constituem as maiores afrontas e humilhações - ofensas que não podem ser aceitas placidamente sem
que se perca a dignidade...
A humilhação é uma arma poderosa - mas do tipo bumerangue. Pode ser usada para demonstrar
ou provar a desigualdade fundamental e irreconciliável entre quem humilha e quem é humilhado. Mas,
contrariando essa intenção, ela de fato autentica, verifica a simetria, a semelhança, a paridade de ambos.
Porém o grau da humilhação invariavelmente provocada por todo ato de recusa em conversar não
é a única razão para que esta se autoperpetue. Na terra de fronteira em que nosso planeta está rapidamente
se transformando, em conseqüência da globalização unilateral, (41) as repetidas tentativas de superar,
despotencializar e desqualificar o adversário freqüentemente atingem os efeitos pretendidos, embora com
resultados que vão muito além daquilo que seus perpetradores previam ou gostariam. Grandes partes da
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África, Ásia e América Latina estão cobertas de traços duradouros deixados por antigas campanhas de
despotencialização: as numerosas terras de fronteira locais, efeitos colaterais, ou dejetos, de que padecem
as forças beneficiárias das condições da terra de fronteira global, as quais elas não podem deixar de
disseminar e propagar.
Os exercícios de despotencialização são considerados "bem-sucedidos" se o desarmamento do
adversário for feito de tal forma que elimine a esperança de recuperação. As estruturas de autoridade são
desmanteladas, os laços sociais, cortados, as fontes costumeiras de subsistência, devastadas e postas fora
de operação (na terminologia política da moda, os territórios assim afligidos são ditos "Estados fracos"
embora o termo "Estado", apesar da restrição, só possa se justificar nesse caso por ser empregado sons
rature, como diria Derrida). Quando sustentadas por um arsenal hightech, as palavras tendem a se
transformar em carne, obliterando assim sua própria necessidade e propósito. Nas terras de fronteira
locais, não ficou nenhuma para contar a história - CQD.
Numa piada irlandesa, quando um motorista pergunta ao transeunte "como se vai daqui para
Dublin", este lhe responde: "Se eu quisesse ir para Dublin, não partiria daqui."
Com efeito, pode-se facilmente imaginar um mundo mais adequado para a jornada rumo à
"unidade universal da humanidade" kantiana do que aquele que por acaso habitamos hoje, ao fim da era
da trindade território/nação/Estado. Mas não existe outro mundo, e assim não há outro lugar de onde se
partir. No entanto não iniciar a jornada, ou não iniciá-la logo, não é - neste caso, sem dúvida - uma
opção.
A unidade da espécie humana postulada por Kant pode ser, como ele sugeria, compatível com a
intenção da Natureza, mas certamente não parece algo "historicamente determinado" O continuado
descontrole da rede já global de dependência mútua e de "vulnerabilidade reciprocamente assegurada"
decerto não aumenta a chance de se alcançar tal unidade. Isso só significa, contudo, que em nenhuma
outra época a intensa busca por uma humanidade comum, assim como a prática que segue tal pressuposto,
foi tão urgente e imperativa como agora.
Na era da globalização, a causa e a política da humanidade compartilhada enfrentam a mais
decisiva de todas as fases que já atravessaram em sua longa história.

AMOR LÍQUIDO - Sobre a fragilidade dos laços humanosOnde histórias criam vida. Descubra agora