Homo sexualis: abandonado e destituído
Como afirmou Lévi-Strauss, o encontro dos sexos é o terreno em que natureza e cultura se
deparam um com o outro pela primeira vez. É, além disso, o ponto de partida, a origem de toda cultura. O
sexo foi o primeiro ingrediente de que o homo sapiens foi naturalmente dotado sobre o qual foram
talhadas distinções artificiais, convencionais e arbitrárias - a atividade básica de toda cultura (em
particular, o ato fundador da cultura, a proibição do incesto: a divisão das fêmeas em categorias
disponíveis e indisponíveis para a coabitação sexual).
É fácil perceber que esse papel do sexo não foi acidental. Das muitas tendências, inclinações e
propensões "naturais" dos seres humanos, o desejo sexual foi e continua sendo a mais óbvia, indubitável e
incontestavelmente social. Ele se estende na direção de outro ser humano, exige sua presença e se esforça
para transformá-la em união. Ele anseia por convívio. Torna qualquer ser humano - ainda que realizado
e, sob todos os outros aspectos, auto-suficiente - incompleto e insatisfeito, a menos que esteja unido a
um outro.
Do encontro dos sexos nasceu a cultura. Nesse encontro ela praticou pela primeira vez sua arte
criativa da diferenciação. Desde então, nunca mais foi suspensa, muito menos abandonada, a íntima
cooperação da cultura e da natureza em tudo que se refere ao sexo. A ars erotica, criação eminentemente
cultural, guiou a partir de então o impulso sexual na direção de sua satisfação no convívio humano.
Salvo raras exceções, nossa cultura "não produziu uma ars erotica, mas sim uma scientia sexualis",
afirma o eminente sexólogo alemão Volkmar Sigusch. (1)
É como se Antero, irmão de Eros e "gênio vingativo do amor rejeitado", tivesse tomado de seu
irmão o domínio sobre o reino do sexo. "Hoje, a sexualidade não condensa mais o potencial de prazer e
felicidade. Ela não é mais mistificada positivamente como êxtase e transgressão, mas negativamente,
como fonte de opressão, desigualdade, violência, abuso e infecção mortal."
Antero era conhecido por ser altamente passional, excitável, lascivo e exaltado, mas, uma vez
transformado em senhor indiscutível do reino, teve de proibir a paixão entre seus súditos e proclamar que
o sexo devia ser um ato racional, calculado com sobriedade, realizado considerando todos os riscos e
regras e, acima de tudo, totalmente desmistificado e desprovido de ilusão. "O olhar do cientista", afirma
Sigusch, "sempre foi frio e distante: não devia haver segredos." Resultado? "Hoje todo mundo está por
dentro, e ninguém tem a mínima a idéia."
Não que esse frustrante efeito da postura fria e da visão distante tenha depreciado a autoridade de
Antero e de sua agência, a scientia sexualis, nem tampouco reduzido as fileiras de seus devotados,
agradecidos e esperançosos seguidores. A demanda por seus serviços (por serviços novos e aperfeiçoados,
e no entanto apenas "mais do mesmo") tende a crescer, não a diminuir, já que eles sempre adiam o
cumprimento de suas promessas. "A ciência sexual, não obstante, continua a existir, porque a miséria
sexual se recusa a desaparecer."
A scientia sexualis prometia livrar os homini sexuali de sua miséria; ela continua prometendo
exatamente a mesma coisa, e essa promessa continua motivando confiança e crença pela simples razão de
que, uma vez cortados de todas as outras modalidades humanas e entregues a seus próprios meios, os
homini sexuali se tornaram "objetos naturais" da investigação científica - sentem-se em casa apenas no
laboratório e no consultório terapêutico, e visíveis para si mesmos e para os outros somente à luz dos
projetores dos cientistas. Além disso, o homo sexualis, abandonado [orphaned] e destituído, não tem mais
a quem recorrer em busca de conselho, socorro e ajuda.
Orfão de Eros. Eros com certeza não está morto. Mas, exilado de seu domínio hereditário - tal como
Ahaspher, o Judeu Errante -, ele foi condenado a perambular pelas ruas numa infindável e eternamente
vã procura de abrigo. Eros agora pode ser encontrado em toda parte, mas não permanecerá por muito
tempo em lugar nenhum. Ele não tem endereço fixo: se você quiser encontrá-lo, escreva para a postarestante
e mantenha a esperança.
27
Destituído pelo futuro. E portanto pela expectativa e pelo compromisso que são as propriedades
legítimas e monopolizadoras do futuro. Abandonado pelos espectros da paternidade e da maternidade,
esses mensageiros da eternidade e do Grande Além que costumavam pairar sobre os encontros sexuais e
incutir na união física algo daquela mística surreal e da mistura sublime de fé e apreensão, alegria e terror,
que eram sua marca registrada.
Atualmente a medicina compete com o sexo pela responsabilidade da "reprodução".
Os médicos competem com os homini sexuali pelo papel de autores principais do drama. O
resultado da disputa é uma conclusão inevitável: agradece-se pelo que a medicina pode fazer, mas
também pelo que se espera que ela faça e pelo que dela desejam os estudantes e ex-alunos da escola de
marketing da vida dos consumidores. A possibilidade fascinante que se encontra bem ali na esquina é a
oportunidade (para citar Sigusch novamente) de "escolher um filho num catálogo de doadores atraentes
quase da mesma forma como eles [os consumidores contemporâneos] estão acostumados a comprar pelo
correio ou por meio de revistas de moda" - e adquirir a criança escolhida no momento preferido. Seria
contrário à natureza de um consumidor experiente não ter o desejo de dobrar aquela esquina.
Houve uma época (de lares/oficinas, de agricultura familiar) em que os filhos eram produtores.
Nessa época, a divisão do trabalho e a distribuição dos papéis familiares se superpunham. O filho
deveria juntar-se ao oikos familiar, somar-se à força de trabalho da oficina ou da fazenda - e assim,
naquela época, quando a riqueza derivava ou era extraída do trabalho, a chegada de um filho trazia
consigo a expectativa de melhoria do bem-estar da família. Os filhos podiam ser tratados com dureza,
mantidos sob rédea curta, mas esse era um tratamento comum a todos os outros trabalhadores. Não se
esperava que o trabalho trouxesse alegria ou causasse prazer ao empregado - a idéia de "satisfação no
trabalho' ainda estava para ser inventada. Os filhos eram, na visão de todos, bons investimentos, e como
tal eram saudados. Quanto mais, melhor. Além disso, dizia a voz da razão, era uma aposta: a expectativa
de vida era curta e todos se perguntavam se o recém-nascido viveria o suficiente para que suas
contribuições à renda familiar pudessem se fazer sentir. Para os autores da Bíblia, a promessa de Deus a
Abraão - "Vossa semente haverá de multiplicar-se como as estrelas no céu e como a areia sobre as
praias do oceano" - era, inequivocamente, uma bênção, embora muitos de nossos contemporâneos
percebam nela antes uma ameaça, uma maldição ou ambas.
Houve uma época (das fortunas de família passadas de geração para geração, segundo a árvore
genealógica, e da posição social hereditária) em que os filhos eram pontes entre a mortalidade e a
imortalidade, entre uma vida individual abominavelmente curta e a infinita (esperava-se) duração da
família. Morrer sem filhos significava nunca ter construído uma ponte como essa. A morte de um homem
sem filhos (embora o mesmo não ocorresse, necessariamente com a de uma mulher sem filhos, a menos
que se tratasse de uma rainha ou algo semelhante) significava a morte da família - negligenciar o mais
importante dos deveres, descumprir a mais imperativa das tarefas.
Com a nova fragilidade das estruturas familiares, com a expectativa de vida de muitas famílias
sendo mais curta do que a de seus membros, com a participação em determinada linhagem familiar
tornando-se rapidamente um dos elementos "indetermináveis" da líquida era moderna e com a adesão a
uma das diversas redes de parentesco disponíveis transformando -se, para um crescente número de
indivíduos, numa questão de escolha - e uma escolha, até segunda ordem, revogável -, um filho pode
ser ainda "uma ponte" para algo mais duradouro. Mas a margem a que essa ponte conduz está coberta por
uma neblina que ninguém espera que venha a se dissipar, e portanto é improvável que provoque muita
emoção, menos ainda que alimente o desejo inspirados da ação. Se uma súbita rajada de vento viesse a
afastar a neblina, ninguém sabe ao certo que tipo de margem iria se revelar, nem se da névoa emergeria
uma terra suficientemente firme para sustentar um lar permanente. Pontes que levam a lugar nenhum, ou
a nenhum lugar em particular: quem precisa delas? Para quê? Quem perderia seu tempo e seu bom
dinheiro para planejá-las e construí-Ias?
Esta é uma época em que um filho é, acima de tudo, um objeto de consumo emocional.
Objetos de consumo servem a necessidades, desejos ou impulsos do consumidor. Assim também
os filhos. Eles não são desejados pelas alegrias do prazer paternal ou maternal que se espera que
proporcionem - alegrias de uma espécie que nenhum objeto de consumo, por mais engenhoso e
28
sofisticado que seja, pode proporcionar. Para a tristeza dos comerciantes, o mercado de bens de
consumo não é capaz de fornecer substitutos à altura, embora essa tristeza de alguma forma seja
compensada pelo espaço cada vez maior que o mundo do comércio vem ganhando na produção e
manutenção desses bens.
Quando se trata de objetos de consumo, a satisfação esperada tende a ser medida pelo custo -
busca-se o "valor em dinheiro".
Os filhos estão entre as aquisições mais caras que o consumidor médio pode fazer ao longo de
toda a sua vida. Em termos puramente monetários, eles custam mais do que um carro luxuoso do ano,
uma volta ao mundo em um cruzeiro ou até mesmo uma mansão. Pior ainda, o custo total tende a crescer
com o tempo, e seu volume não pode ser fixado de antemão nem estimado com algum grau de certeza.
Num mundo que não oferece mais planos de carreira e empregos estáveis, assinar um contrato de hipoteca
com prestações de valor desconhecido, a serem pagas por um tempo indefinido, significa, para pessoas
que saem de um projeto para o outro e ganham a vida nessas mudanças, expor-se a um nível de risco
atipicamente elevado e a uma fonte prolífica de ansiedade e medo. É provável que se pense duas vezes
antes de assinar, e que, quanto mais se pense, mais se tornem óbvios os riscos envolvidos. E nenhuma
dose de determinação e ponderação poderá remover a sombra de dúvida que tende a adulterar a alegria.
Além disso, ter filhos é, em nossa época, uma questão de decisão, não um acidente - o que aumenta a
ansiedade. Tê-los ou não é comprovadamente a decisão com maiores conseqüências e de maior alcance
que existe, e portanto também a mais angustiante e estressante.
Ademais, nem todos os custos são monetários, e os que não o são jamais poderão ser medidos e
calculados. Eles desafiam as capacidades e as propensões dos agentes racionais que somos preparados
para ser, e que lutamos para ser. "Formar uma família" é como pular de cabeça em águas inexploradas e
de profundidade insondável. Cancelar ou adiar outras sedutoras alegrias consumistas de uma atração
ainda não experimentada, desconhecida e imprevisível - em si mesmo um sacrifício assustador que se
choca fortemente com os hábitos do consumidor prudente - não é a única conseqüência provável.
Ter filhos significa avaliar o bem-estar de outro ser, mais fraco e dependente, em relação ao nosso
próprio conforto. A autonomia de nossas preferências tende a ser comprometida, e continuamente: ano
após ano, dia após dia. A pessoa pode tornar-se - horror dos horrores - "dependente" Ter filhos pode
significar a necessidade de diminuir as ambições pessoais, "sacrificar uma carreira",como pessoas
submetidas à avaliação de seu desempenho profissional olham de soslaio em busca de algum sinal de
lealdade dividida. Mais dolorosamente, ter filhos significa aceitar essa dependência divisora da lealdade
por um tempo indefinido, aceitando o compromisso amplo e irrevogável, sem uma cláusula adicional "até
segunda ordem" - o tipo de obrigação que se choca com a essência da política de vida do líquido mundo
moderno e que a maioria das pessoas evita, quase sempre com fervor, em outras manifestações de sua
existência. Tomar consciência de tal compromisso pode ser uma experiência traumática. A depressão e as
crises conjugais pós-parto parecem enfermidades específicas de nossa "modernidade líquida", da mesma
forma que a anorexia, a bulimia e incontáveis variedades de alergia.
As alegrias da paternidade e da maternidade vêm, por assim dizer, num pacote que inclui as dores
do auto-sacrifício e os temores de perigos inexplorados.
Um cálculo sóbrio e fidedigno de perdas e ganhos está obstinada e irritantemente além do alcance
e da compreensão dos pais em potencial.
Qualquer aquisição feita por um consumidor envolve riscos - mas os vendedores de outros bens
de consumo, em particular daqueles inapropriadamente chamados de bens "duráveis", fazem de tudo para
assegurar aos possíveis clientes que os riscos assumidos foram reduzidos ao mínimo. Oferecem amplas
garantias (ainda que só alguns deles possam afirmar de boa-fé que a empresa sobreviverá ao prazo de
duração da garantia, e praticamente nenhum possa assegurar que os atrativos da mercadoria adquirida,
capazes de mantê-la distante da lata de lixo, não se desvanecerão bem antes disso), promessas de
devolução do dinheiro e de assistência longa ou perpétua. Dignas ou não de crédito, nenhuma dessas
garantias é oferecida no caso do parto.
Não surpreende que os institutos de pesquisas médicas e as clínicas de atendimento pré-natal
estejam nadando em dinheiro proveniente de empresas comerciais. Há uma demanda potencialmente infinita pela redução dos riscos endêmicos do parto, pelo menos ao nível declarado nos rótulos das
mercadorias à venda nas prateleiras das lojas. Companhias que ofereçam a chance de "escolher um filho
num catálogo de doadores atraentes" e clínicas de boa reputação que componham por encomenda o
espectro genético de uma criança em gestação não precisam se preocupar com a falta de clientes ou a
redução do volume de negócios lucrativos.
Resumindo: a separação entre sexo e reprodução, amplamente observada, tem a anuência do
poder. É o produto conjunto do líquido ambiente da vida moderna e do consumismo como estratégia
escolhida, e a única disponível, de "procurar soluções biográficas para problemas socialmente
produzidos" (Ulrich Beck). É a mistura de ambos os fatores que leva ao deslocamento das questões da
reprodução e do parto para longe do sexo e na direção de uma esfera totalmente diferente, operada por
uma lógica e um conjunto de regras inteiramente diversos dos que regem a atividade sexual. A destituição
do homo sexualis é sobredeterminada.
Como que antecipando o padrão que iria prevalecer em nossa época, Erich Fromm tentou explicar
a atração do "sexo em si" (do sexo "pelo sexo", praticado separadamente de suas funções
ortodoxas), referindo-se à sua qualidade como uma (enganosa) resposta ao desejo, demasiadamente
humano, de "fusão total" por meio de uma "ilusão de união" (2).
União - porque é exatamente o que homens e mulheres procuram ardentemente em seu
desespero para escapar da solidão que já sofrem ou temem estar por vir. Ilusão - porque a união
alcançada no breve instante do clímax orgástico "deixa os estranhos tão distantes um do outro como
estavam antes", de modo que "eles sentem seu estranhamento de maneira ainda mais acentuada". Nesse
papel, o orgasmo sexual "assume uma função que o torna não muito diferente do alcoolismo e do vício
em drogas". Tal como estes, ele é intenso - mas "transitório e periódico" (3).
A união é ilusória e, no final, a experiência tende a ser frustrante, diz Fromm, por ser separada do
amor (ou seja, permitam-me explicar, do tipo de relacionamento Fürsein; de um compromisso
intencionalmente duradouro e indefinido com o bem-estar do parceiro). Na visão de Fromm, o sexo só
pode ser um instrumento de fusão genuína - em vez de uma efêmera, dúbia e, em última instância,
autodestrutiva impressão de fusão - graças a sua conjunção com o amor. Qualquer que seja a capacidade
geradora de fusão que o sexo possa ter, ela vem de sua "camaradagem" com o amor.
Desde que Fromm escreveu sobre a questão, o isolamento do sexo em relação a outros domínios da
vida tem avançado mais do que nunca.
Hoje o sexo é a própria síntese, talvez o silencioso/secreto arquétipo, daquele "relacionamento
puro" (um paradoxo, com certeza: os relacionamentos humanos tendem a preencher, infestar e modificar
todos os recessos e frestas, por mais remotos, do Lebenswelt, de modo que podem ser tudo menos
"puros") que, como indica Anthony Giddens, se tornou o modelo alvo/ideal predominante da parceria
humana. Agora espera-se que o sexo seja auto-sustentável e auto-suficiente, que "se mantenha sobre os
próprios pés", para ser julgado unicamente pela satisfação que possa trazer por si mesmo (ainda que, em
regra, ela seja interrompida bem antes da expectativa gerada pela mídia). Não admira que também tenha
crescido enormemente sua capacidade de gerar frustração e de exacerbar a própria sensação de
estrangulamento que se esperava que curasse. A vitória do sexo na grande guerra de independência tem
sido, na melhor das circunstâncias, uma vitória de Pirro. Os remédios maravilhosos parecem produzir
moléstias e sofrimentos não menos numerosos e comprovadamente mais agudos do que aqueles que
prometiam curar.
Abandonar e destituir foram celebrados, por um breve período, como a derradeira libertação do
sexo da prisão em que era mantido por uma sociedade patriarcal, puritana, desmancha-prazeres,
hipócrita e ainda por cima desafortunadamente vitoriana.
Aqui estava, afinal, um relacionamento mais puro que a pureza, um encontro que não servia a outro
propósito senão o prazer e a alegria. Uma felicidade de sonho, sem restrições, sem medo de efeitos
colaterais e portanto alegremente cega às suas conseqüências. Uma felicidade do tipo "satisfação
garantida ou seu dinheiro de volta" A mais completa encarnação da liberdade, tal como definida pela
sabedoria e pela prática populares da sociedade de consumo.
30
É correto, talvez até estimulante e ao mesmo tempo maravilhoso, que o sexo seja assim
liberado. O problema é como mantê-lo no lugar quando o lastro foi lançado ao mar; como mantê-lo na
fôrma se não se dispõe mais das estruturas. Voar suavemente traz contentamento, voar sem direção
provoca estresse. A mudança é jubilosa; a volatilidade, incômoda. A insustentável leveza do sexo?
Volkmar Sigusch é terapeuta. Diariamente, trava conhecimento com vítimas do "sexo puro:
registra as queixas de seus pacientes - e a lista de lamúrias a exigir a intervenção de um especialista
cresce indefinidamente. O sumário de suas descobertas é tão sombrio quanto ponderado.
Todas as formas de relacionamento íntimo atualmente em voga portam a mesma máscara de falsa
felicidade que foi usada pelo amor conjugal e mais tarde pelo amor livre ... Ao olharmos mais de perto e
afastarmos a máscara, descobrimos anseios não-realizados, nervos em frangalhos, amores frustrados,
sofrimentos, medos, solidão, hipocrisia, egoísmo e compulsão à repetição ... As performances substituíram
o êxtase, o físico está por dentro, a metafísica, por fora ... A abstinência, a monogamia e a promiscuidade
estão todas igualmente distantes da livre vida da sensualidade que nenhum de nós conhece. (4)
Considerações técnicas igualam infortúnio a emoções. A concentração na performance não deixa
tempo nem espaço para o êxtase. O físico não é o caminho que leva à metafísica. O poder de sedução do
sexo costumava fluir da emoção, do êxtase e da metafísica - como ocorreria agora, mas o mistério se foi
e desse modo os anseios não podem continuar irrealizados...
Quando o sexo se apresenta como um evento fisiológico do corpo e a palavra "sensualidade"
pouco evoca senão uma prazerosa sensação física, ele não está liberado de fardos supérfluos, avulsos,
inúteis, incômodos e restritivos. Está, ao contrário, sobrecarregado, inundado de expectativas que
superam sua capacidade de realização.
As íntimas conexões do sexo com o amor, a segurança, a permanência e a imortalidade via
continuação da família não eram, afinal de contas, tão inúteis e constrangedoras como se imaginava, se
sentia e se acusava que fossem. Os antigos companheiros do sexo, supostamente antiquados, talvez
fossem seus sustentáculos necessários (não pela perfeição técnica da performance, mas por sua
recompensa potencial). Talvez as contradições de que a sensualidade está endemicamente tomada não
tenham maiores possibilidades de serem resolvidas (mitigadas, esvaziadas, neutralizadas) na ausência de
"restrições" do que na presença destas. Talvez essas restrições sejam proezas da engenhosidade cultural
em vez de símbolos de equívocos ou fracassos nesse terreno.
A líquida racionalidade moderna recomenda mantos leves e condena as caixas de aço.
Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento
permanente percebe a dependência incapacitante. Essa razão nega direitos aos vínculos e liames, espaciais
ou temporais. Eles não têm necessidade ou uso que possam ser justificados pela líquida racionalidade
moderna dos consumidores. Vínculos e liames tornam "impuras" as relações humanas - como o fariam
com qualquer ato de consumo que presuma a satisfação instantânea e, de modo semelhante, a instantânea
obsolescência do objeto consumido. Os advogados de defesa das "relações impuras" teriam de se esforçar
para tentar convencer os jurados e obter sua aprovação.
Sigusch acredita que cedo ou tarde "os impulsos e desejos que escapam aos grilhões da racionalidade"
retornarão - e trarão vingança. E quando o fizerem não seremos capazes de responder "sem recorrer ao
uso de conceitos sobre instintos naturais e valores eternos corrompidos até a raiz, histórica e
politicamente".
Se isso vier a ocorrer, como Sigusch prenuncia ou prevê, vai exigir mais do que apenas uma nova
visão do sexo e das expectativas que podem ser legitimamente investidas nos atos sexuais. Exigirá nada
menos que libertar o sexo da soberania da racionalidade do consumidor. Talvez exija ainda mais: que essa
racionalidade seja destituída de sua atual soberania sobre os motivos e estratégias da política de vida
humana - que essa soberania lhe seja cassada. Isso significaria, contudo, exigir mais do que seria
razoável esperar num futuro previsível.
"Os impulsos e desejos que escapam aos grilhões da racionalidade" (da líquida racionalidade
moderna do consumidor, para ser exato) eram ligados ao sexo de modo inseparável e inextricável
31
porque este, tal como outras atividades humanas, estava entrelaçado ao modelo de vida do
produtor.
Dentro desse modelo, nem o amor "até que a morte nos separe", nem construir pontes para a
eternidade, nem consentir em "entregar reféns ao destino" e em estabelecer compromissos sem volta eram
coisas redundantes - muito menos percebidas como limitadoras ou opressivas. Pelo contrário,
costumavam ser os "instintos naturais" do homo faber, tal como agora vão de encontro aos instintos
igualmente "naturais" do homo consumens. Tampouco eram, de qualquer ponto de vista, "irracionais":
eram os equipamentos e manifestações necessários e obrigatórios da racionalidade do homo faber. O
amor e a disposição de procriar eram companheiros indispensáveis do sexo do homo faber, da mesma
forma que as uniões duradouras que ajudavam a criar eram "produtos principais" - não "efeitos
colaterais", muito menos rejeitos ou refugos, dos atos sexuais.
Para cada ganho há uma perda. Para cada realização, um preço.
Não importam o horror e a repulsa com que recordamos ou evocamos os preços pagos e as perdas
sofridas no passado - as perdas suportadas hoje e os preços a serem pagos amanhã são os que mais
incomodam e magoam. Não há sentido em comparar os sofrimentos do passado e do presente, tentando
descobrir qual deles é menos suportável. Cada angústia fere e atormenta no seu próprio tempo.
As agonias atuais do homo sexualis são as mesmas do homo consumens. Elas nasceram juntas. Se
um dia se forem, marcharão ombro a ombro.
A capacidade sexual era a ferramenta usada pelo homo faber para erigir e manter as relações
humanas.
Quando disposta no canteiro de obras dos laços humanos, a necessidade/desejo sexual encorajava
o homo sexualis a permanecer no trabalho e a enxergar através dele, uma vez iniciado. Os construtores
desejavam que o resultado de seus esforços, como se espera de todas as edificações, fossem solidamente
estruturados, duráveis e seguros (de preferência para sempre).
Com demasiada freqüência os construtores tinham muita confiança em seu poder de planejamento
para se preocupar com os sentimentos do(s) futuro(s) morador(es). O respeito é, afinal, apenas um dos
lados da faca de dois gumes da atenção, cuja outra ponta é a opressão. A indiferença e o desprezo são dois
recifes com os quais muitas intenções éticas honestas têm se chocado, e os eus morais precisam de muita
vigilância e habilidade de navegação para passar incólumes por eles. Isso dito, parece, não obstante, que a
moral - aquele Fürsein ditado pela responsabilidade por um Outro e posto em operação assim que
assumido -, com todas as suas paisagens deslumbrantes e seus desvios e emboscadas traiçoeiros, foi
feita sob medida para o homo faber.
Libertado das tarefas de construção e ressentido dos esforços exigidos por elas, o homo
consumens pode empregar seus poderes sexuais de formas novas e imaginativas. O Fürsein, porém, não é
uma delas.
O que caracteriza o consumismo não é acumular bens (quem o faz deve também estar preparado
para suportar malas pesadas e casas atulhadas), mas usá-los e descartá-los em seguida a fim de
abrir espaço para outros bens e usos.
A vida consumista favorece a leveza e a velocidade. E também a novidade e a variedade que elas
promovem e facilitam. É a rotatividade, não o volume de compras, que mede o sucesso na vida do homo
consumens.
Em geral, a capacidade de utilização de um bem sobrevive à sua utilidade para o consumidor.
Mas, usada repetidamente, a mercadoria adquirida impede a busca por variedade, e a cada uso a aparência
de novidade vai se desvanecendo e se apagando. Pobres daqueles que, em razão da escassez de recursos,
são condenados a continuar usando bens que não mais contêm a promessa de sensações novas e inéditas.
Pobres daqueles que, pela mesma razão, permanecem presos a um único bem em vez de flanar entre um
sortimento amplo e aparentemente inesgotável. Tais pessoas são os excluídos na sociedade de consumo,
os consumidores falhos, os inadequados e os incompetentes, os fracassados - famintos definhando em
meio à opulência do banquete consumista.
Aqueles que não precisam se agarrar aos bens por muito tempo, e decerto não por tempo
suficiente para permitir que o tédio se instale, são os bem-sucedidos. Na sociedade dos consumidores, o
prestidigitador é a figura de sucesso. Não fosse isto um anátema para os fornecedores de bens de
32
consumo, os consumidores fiéis ao seu caráter e destino desenvolveriam o hábito de alugar coisas em
vez de comprá-las. Diferentemente dos vendedores de mercadorias, as empresas de locação prometem, de
modo tentador, substituir com regularidade os bens alugados por modelos de último tipo. Os vendedores,
para não ficarem para trás, prometem devolver o dinheiro se o cliente não estiver plenamente satisfeito e
se (na esperança de que a satisfação não se evapore tão rápido) os bens adquiridos forem devolvidos
dentro de, digamos, dez dias.
A "purificação" do sexo permite que a prática sexual seja adaptada a esses avançados padrões de
compra/locação. O "sexo puro" é construído tendo-se em vista uma espécie de garantia de reembolso - e
os parceiros do "encontro puramente sexual" podem se sentir seguros, conscientes de que a inexistência
de "restrições" compensa a perturbadora fragilidade de seu engajamento.
Graças a um inteligente estratagema publicitário, o significado vernáculo de "sexo seguro" foi
recentemente reduzido ao uso de preservativos. O slogan não seria o sucesso comercial que é se não
atingisse um ponto sensível de milhões de pessoas que desejam que suas explorações sexuais sejam
garantidas contra conseqüências indesejáveis (já que incontroláveis). Afinal, é estratégia geral nas
promoções apresentar o produto em oferta como a solução procurada para problemas que ou já vinham
assombrando seus prováveis clientes ou acabaram de ser inventados para se adequarem ao potencial do
produto.
Com muita freqüência, a peça publicitária substitui o todo pela parte. As vendas crescem graças a
suprimentos de angústia que excedem em muito a capacidade de cura do produto. Com efeito, usar
preservativo protege os parceiros sexuais de serem infectados pelo HIV. Mas essa infecção não é senão
uma das muitas conseqüências imprevistas e certamente não-negociadas dos encontros sexuais que
tornam o homo sexualis desejoso de que o sexo seja "seguro". Tendo escapado de um porto exíguo,
embora controlado para navegar por águas inexploradas, sem mapa nem bússola, o sexo começou a ser
visto como decididamente "inseguro" bem antes que a descoberta da aids fornecesse o rótulo e o ponto
focal para temores difusos e inominados.
O maior deles provinha da ambigüidade do encontro sexual: seria esse o passo inicial na direção
de um relacionamento ou sua coroação e seu término? Um estágio numa seqüência significativa ou um
episódio singular, um meio para um fim ou um ato independente? Nenhuma união de corpos pode, por
mais que se tente, escapar à moldura social e cortar todas as conexões com outras facetas da existência
social. Privado de seu antigo prestígio social e de significados que antes eram socialmente aprovados, o
sexo encapsulava a incerteza aflitiva e alarmante que se tornou a principal ruína da líquida vida moderna.
Qualificar os parceiros sexuais tornou-se o primeiro foco de ansiedade. Que tipo de
compromissos, se é que algum, a união de corpos impõe? De que forma eles afetam o futuro dos
parceiros, se é que afetam? O encontro sexual pode ser isolado dos demais propósitos da vida, ou será que
ele vai (tender a, ganhar espaço para) esparramar-se pelo resto da existência, saturando-a e
transformando-a?
Em si mesma, a união sexual é de curta duração - na vida dos parceiros, é um episódio. Como
aponta Milan Kundera, um episódio "não é a conseqüência inevitável de uma ação precedente, nem a
causa do que virá em seguida"'. A imaculada conceição cum esterilidade, a ausência essencial da
possibilidade de contágio, é uma das belezas do episódio - e assim, podemos dizer, também é a beleza
de um encontro sexual, contanto que este continue sendo um episódio. O problema, porém, é que
"ninguém pode garantir que um evento totalmente episódico não contenha em si uma força capaz de
algum dia transformar-se, inesperadamente, na causa de eventos futuros". Para resumir uma longa
história: "nenhum episódio está condenado a priori a permanecer eternamente como um episódio"
Nenhum episódio está a salvo de suas conseqüências. A insegurança decorrente é eterna. A incerteza
nunca se dissipará de modo total e irrevogável. Pode apenas ser suspensa por um tempo indeterminado -
mas o próprio recipiente da suspensão é assaltado por dúvidas e assim se torna outra fonte de cansativa
insegurança.
O casamento é, pode-se dizer, a aceitação da causalidade que os encontros casuais se recusam a
aceitar (ou pelo menos uma declaração da intenção de aceitá-la - enquanto a união durar).
Nesse caso, a ambigüidade se resolve e a incerteza é substituída pela garantia de que os atos
realmente têm uma importância que ultrapassa o seu próprio espaço temporal e acarretam conseqüências que podem durar mais do que as suas causas. A incerteza é exilada da vida dos parceiros e seu retorno
é impedido enquanto o término do casamento não esteja em vista.
Mas será possível banir a incerteza sem concordar com essa condição - um preço que muitos
parceiros considerariam alto demais? Impossível, se nunca se pode estar certo de que, como indica
Kundera, o episódio não foi nada mais que um episódio. Mas ainda se pode tentar, e de fato se tenta, e por
mais adversas que sejam as probabilidades dificilmente desistimos de tentar mudá-las em nosso favor.
Reconhecidamente, os parisienses tentam mais que a maioria, e de modo mais engenhoso. Em
Paris, o échangisme11 (um nome novo e, dada a recente igualdade entre os sexos, mais politicamente
correto para um conceito um pouco mais antigo, recendendo a patriarcalismo, a troca de esposas)
supostamente se tornou a moda, o jogo mais popular e o principal assunto do momento.
Les échangistes estão matando dois coelhos com uma só cajadada. Em primeiro lugar, eles
afrouxam um pouco os grilhões do compromisso matrimonial, concordando em tornar menos obrigatórias
as suas conseqüências e, portanto, um pouco menos angustiante a incerteza gerada pela obscuridade
endêmica das expectativas. Em segundo lugar, conseguem cúmplices leais em seu esforço para rechaçar
as conseqüências incertas, e portanto irritantes, do encontro sexual - já que todas as partes interessadas,
tendo participado do evento e portanto desejosas de evitar que escape à moldura do episódio, seguramente
estarão juntas nesse rechaço.
Como estratégia para enfrentar o espectro da incerteza, do qual, como se sabe, os episódios
sexuais estão repletos, o échangisme tem uma vantagem sobre o sexo casual e outros encontros
igualmente arriscados e de curta duração. A proteção contra conseqüências indesejáveis é, nesse caso,
dever e preocupação de outra pessoa e, na pior das circunstâncias, não constitui um esforço solitário, mas
uma tarefa compartilhada com aliados poderosos e dedicados. A vantagem do échangisme sobre o
simples adultério é particularmente gritante. Nenhum dos échangistes é traído, nenhum deles tem os
interesses ameaçados e, tal como no modelo ideal de Habermas da "comunicação não-distorcida", todos
são participantes. O ménage à quatre (ou six, huit... quanto mais melhor) está livre de todas as pragas e
deficiências que se sabe serem a maldição do ménage à trois.
Como se poderia esperar quando o propósito e alvo da iniciativa é afastar o fantasma da
insegurança, o échangisme procura entrincheirar-se em instituições contratuais e obter o apoio da lei. A
pessoa torna-se échangiste ingressando num clube, assinando um formulário, prometendo obediência às
regras (e esperando que todos os outros à sua volta tenham feito o mesmo) e recebendo um cartão de
sócio para garantir o ingresso e assegurar que quem está lá dentro seja simultaneamente um parceiro e um
jogo. Já que todos os que lá se encontram conhecem os objetivos e regras do clube e prometeram observá-
los, toda discussão ou uso da força, todos os perigos da sedução e de outras preliminares incômodas e
precárias, infestadas de resultados incertos, se tornaram redundantes.
Ou assim parece, por algum tempo. As convenções do échangisme podem, como já prometeram
os cartões de crédito, evitar a espera para se satisfazer os desejos. Da mesma forma que a maioria das
inovações tecnológicas recentes, elas encurtam a distância entre o impulso e sua satisfação e fazem com
que a passagem de um a outro seja mais rápida e menos trabalhosa. E podem também evitar que um
parceiro exija mais benefícios do que o encontro episódico permite.
Mas será que elas defendem o homo sexualis de si mesmo? Será que os anseios irrealizados, as
frustrações amorosas, os temores de ficar só e de se ferir, a hipocrisia e a culpa são deixados para trás
depois de uma visita ao clube? Será possível encontrar lá a intimidade, a alegria, a ternura, a afeição e o
amor? Bem, o visitante pode dizer de boa-fé: isto é sexo, seu estúpido - não tem nada a ver com nada
disso. Mas se ele ou ela estiver certo(a), será que o sexo em si é importante? Ou que, seguindo Sigusch, se
a substância da atividade sexual é a obtenção do prazer instantâneo, "então o mais importante não é o que
se faz, mas simplesmente que aconteça".
Comentando Bodies that matter: On the discursive limits of sex, obra altamente influente de Judith
Butler (6), Sigusch assinala que, "de acordo com as teóricas que agora dão o tom no discurso de
gênero, tanto sexo quanto gênero são inteiramente determinados pela cultura, desprovidos de
qualquer caráter natural e, portanto, alteráveis, transitórios e passíveis de subversão".
É como se a oposição natureza-cultura não fosse o melhor arcabouço no qual se pudessem
inscrever os dilemas do atual embaraço a respeito de sexo/gênero. O que está em disputa é o grau em que vários tipos de inclinações/preferências/identidades são flexíveis, alteráveis e dependentes da escolha
do sujeito. Mas as oposições entre cultura e natureza, e entre "é uma questão de escolha" e "os seres
humanos são incapazes de evitar e nada podem fazer a respeito", mais se superpõem como durante grande
parte da história moderna e até recentemente. No discurso popular, a cultura se apresenta cada vez mais
como a parte herdada da identidade que não se pode nem deve remendar (senão por obra e risco de quem
remenda), enquanto os traços e atributos tradicionalmente classificados como "naturais" (hereditários,
geneticamente transmitidos) são cada vez mais considerados sujeitos à manipulação humana e portanto
abertos à escolha - uma escolha em relação à qual, como sempre, quem escolhe deve sentir-se
responsável e assim ser visto pelos outros.
Desse modo, não importa muito se as predileções sexuais (articuladas como "identidade sexual")
são "dons da natureza" ou "construtos culturais". O que realmente importa é se cabe ao homo sexualis
determinar (descobrir ou inventar) qual (ou quais) das múltiplas identidades sexuais melhor se ajusta a ele
ou ela, ou se, tal como o homo sapiens no caso da "comunidade de nascimento", ele ou ela está
destinado(a) a abraçar esse destino e viver sua vida de uma forma que transforme uma sina inalterável
numa vocação pessoal.
Qualquer que seja o vocabulário usado para articular a atual situação do homo sexualis, e quer se
vejam o autotreinamento e a autodescoberta ou as intervenções médicas e genéticas como o caminho
certo para se atingir a identidade sexual adequada/desejada, o essencial continua sendo a "alterabilidade",
a transitoriedade, a não-finalidade das identidades sexuais assumidas, quaisquer que sejam. A vida do
homo sexualis é, por esse motivo, carregada de ansiedade. Há sempre a suspeita - mesmo que
apaziguada e inativa por algum tempo - de que se esteja vivendo uma mentira ou um equívoco; de que
algo de importância crucial foi esquecido, perdido, negligenciado, permanecendo não-ensaiado e
inexplorado; de que não se cumpriu uma obrigação vital para o eu autêntico da própria pessoa, ou de que
algumas oportunidades de felicidade de um tipo desconhecido, completamente diferentes do que se
vivenciou antes, ainda não foram aproveitadas e tendem a se perder para sempre se continuarem
desconsideradas.
O homo sexualis está condenado a permanecer para sempre incompleto e irrealizado - mesmo numa era
em que o fogo sexual, que no passado se teria arrefecido, agora deve ser, espera-se, novamente insuflado
pelos esforços conjuntos de nossas ginásticas miraculosas e de nossos remédios maravilhosos. A viagem
nunca termina, o itinerário é recomposto a cada estação e o destino final é sempre desconhecido.
A subdefinição, a incompletude e a ausência de finalidade da identidade sexual (tal como todas as
outras facetas da identidade nos líquidos ambientes modernos) são um veneno e seu antídoto
misturados numa poderosa superdroga antitranqüilizante.
A consciência dessa ambivalência é desalentadora e não produz o fim da ansiedade. Gera uma
incerteza que só pode ser temporariamente apaziguada, jamais totalmente extinta. Contamina qualquer
condição escolhida/atingida com dúvidas persistentes a respeito de sua propriedade e sabedoria. Mas
também protege da humilhação que vem com o fracasso parcial ou total. Há sempre a possibilidade de
pôr a culpa numa escolha, considerando-a equivocada, e não na incapacidade de aproveitar as
oportunidades por ela oferecidas, pelo fato de a bem-aventurança prevista não ter conseguido se
materializar. Há sempre uma chance de abandonar a estrada pela qual se chegaria à realização e
recomeçar - mesmo que a partir do zero, se as perspectivas parecerem atraentes.
O efeito combinado do veneno e do antídoto é manter o homo sexualis em perpétuo movimento,
empurrado à frente ("esse tipo de sexualidade não conseguiu produzir a experiência culminante que me
disseram que traria") e puxado para trás ("outros tipos que vi e ouvi estão ao meu alcance - é apenas
uma questão de decisão e esforço").
O homo sexualis não é uma condição, muito menos uma condição permanente e imutável, mas um
processo, cheio de tentativas e erros, viagens exploratórias arriscadas e descobertas ocasionais,
intercaladas por numerosos tropeços, arrependimentos por oportunidades perdidas e alegrias por prazeres
ilusórios.
Em seu ensaio sobre a moral sexual "civilizada" (7), Sigmund Freud insinua que a civilização se
baseia em grande parte na exploração e mobilização da capacidade natural humana de "sublimar"
35
os instintos sexuais: "trocar [o] propósito originalmente sexual por algum outro" -
particularmente por causas socialmente úteis.
Para atingir esse efeito, os escoadouros "naturais" dos instintos sexuais (tanto auto-eróticos quanto
objeto-eróticos) são represados - cortados de vez ou pelo menos parcialmente bloqueados. Imprestável e
em desuso, o impulso sexual é então redirecionado por meio de dutos socialmente construídos para alvos
resultantes do mesmo processo. "As forças que podem ser empregadas para atividades culturais são,
portanto, em grande medida, obtidas por meio da supressão daquilo que se conhece como elementos
perversos da excitação sexual."
Segundo Derrida, é justificado suspeitarmos de uma circularidade fatal nessa última proposição.
Certos "elementos de excitação sexual" são considerados "perversos" porque resistem à supressão e,
portanto, não podem ser empregados para as atividades definidas como culturais (isto é, meritórias). No
entanto, para o homo sexualis inserido no líquido ambiente moderno, as fronteiras que separam as
manifestações "saudáveis" e "perversas" em matéria de instintos sexuais estão totalmente embaçadas.
Todas as formas de atividade sexual são não apenas toleradas, mas freqüentemente indicadas como
terapias úteis para uma ou outra forma de enfermidade psicológica, e cada vez mais aceitas como vias
legítimas na busca individual da felicidade, sendo estimulada a sua exibição em público. (A pedofilia e a
pornografia infantil constituem possivelmente os únicos escoadouros do impulso sexual que continuam
sendo quase unanimemente execrados como perversos. Sobre esse aspecto, porém, Sigusch comenta, de
modo cáustico embora correto, que o segredo dessa unanimidade atípica pode estar no fato de que a
oposição à pornografia infantil "nada exige de nós senão o óleo do humanismo que tão efetivamente
lubrificou, no passado, as rodas da violência. Só alguns, contudo, se colocam seriamente a favor de
programas capazes de salvar vidas de crianças, já que custariam dinheiro e conforto ao mesmo tempo em
que exigiriam a adoção de um modo de existência diferente".)
Em nossa líquida era moderna, os poderes constituídos não mais parecem interessados em traçar a
fronteira entre o sexo correto" e o "perverso" A razão talvez seja a rápida queda da demanda pelo
emprego da energia sexual economizada em favor de "causas civilizantes" (leia-se: a produção de
disciplina sobre os padrões de comportamento rotineiro, funcionais numa sociedade de produtores) -
desvio que Freud, escrevendo no início do século XX, dificilmente poderia ter adivinhado, para não dizer
visualizado.
Os objetos "socialmente úteis" oferecidos para descarga sexual não precisam mais ser disfarçados
como "causas culturais". Eles desfilam, com orgulho e, sobretudo, grandes benefícios, sua sexualidade
endêmica ou inventada. Depois da época em que a energia sexual tinha de ser sublimada para que a linha
de montagem de automóveis se mantivesse em movimento, veio uma época em que a energia sexual
precisava ser ampliada e liberada para selecionar qualquer canal que pudesse estar à mão e estimulada a
se expandir, de modo que os veículos que saíam da linha de montagem pudessem ser ardentemente
desejados como objetos sexuais.
Parece que o elo entre a sublimação do instinto sexual e sua repressão, que Freud considerava
condição indispensável de qualquer arranjo social disciplinado, foi rompido. A líquida sociedade moderna
descobriu uma forma de explorar a propensão/ receptividade humana a sublimar os instintos sexuais sem
recorrer à repressão, ou pelo menos limitando-a radicalmente. Isso aconteceu graças à progressiva
desregulação do processo sublimatório, agora difuso e disperso, o tempo todo mudando de direção e
guiado pelasedução dos objetos de desejo sexual em oferta, e não por quaisquer pressões coercitivas.
Communitas em oferta
Quando a qualidade o decepciona, você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não
está disponível, é a rapidez da mudança que pode redimi-lo.
Se você se sente pouco à vontade nesse mundo fluido, perdido em meio à profusão de sinais de
trânsito contraditórios que parecem mover-se como uma estante sobre rodinhas, visite um ou mais
daqueles especialistas para cujos serviços nunca houve demanda nem oferta maiores.
Adivinhos e astrólogos de eras passadas costumavam dizer a seus clientes como seria o seu futuro,
pré-decidido, imutável e implacável, independente do que fizessem ou deixassem de fazer. Os
especialistas de nossa fluida era moderna, mais provavelmente, repassariam a responsabilidade a seus
confusos e perplexos clientes.
36
Estes descobririam que sua ansiedade pode ser atribuída a seus feitos e desfeitos, e procurariam
(e certamente encontrariam os erros cometidos ao longo de suas vidas): pouca autoconfiança,
autoproteção ou auto-adestramento, porém mais provavelmente, falta de flexibilidade, apego demasiado a
velhas rotinas, pessoas ou lugares, carência de entusiasmo por mudanças e uma indisposição para mudar
uma segunda vez. Os especialistas podem recomendar mais apreço, vigília e cuidado por si mesmo, maior
atenção à capacidade interior para o prazer e a satisfação - assim como "depender" menos dos outros e
dar menos consideração às demandas destes por atenção e cuidado; maior distanciamento e sobriedade ao
fazer o balanço das expectativas razoáveis de ganhos e das perspectivas realistas de perdas. Os clientes
que aprenderam diligentemente as lições e seguiram fielmente os conselhos de agora em diante devem se
perguntar com maior freqüência "o que eu ganho com isso?" e exigir mais resolutamente dos parceiros, e
de todos os demais, que lhes dêem "mais espaço" - ou seja, manter-se distanciados e não esperar,
tolamente, que os compromissos assumidos durem para sempre.
Não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados. Lembre-se de que, quanto mais profundas e
densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos. Não confunda a rede - um
turbilhão de caminhos sobre os quais se pode deslizar - com uma malha, essa coisa traiçoeira que, vista
de dentro, parece uma gaiola.
E lembre-se, claro, de que apostar todas as suas fichas em um só numero é a máxima insensatez!
Seu celular está sempre tocando (ou assim você espera).
Uma mensagem brilha na tela em busca de outra. Seus dedos estão sempre ocupados: você
pressiona as teclas, digitando novos números para responder às chamadas ou compondo suas próprias
mensagens. Você permanece conectado - mesmo estando em constante movimento, e ainda que os
remetentes ou destinatários invisíveis das mensagens recebidas e enviadas também estejam em
movimento, cada qual seguindo suas próprias trajetórias. Os celulares são para pessoas em movimento.
Você nunca perde de vista o seu celular. Sua roupa de jogging tem um bolso especial para ele, e
você nunca sai com aquele bolso vazio, da mesma forma que não vai correr sem o seu tênis. Na verdade,
você não iria a nenhum lugar sem o celular ("nenhum lugar" é, afinal, o espaço sem um celular, com um
celular fora de área ou sem bateria). Estando com o seu celular, você nunca está fora ou longe. Encontrase
sempre dentro - mas jamais trancado em um lugar. Encasulado numa teia de chamadas e mensagens,
você está invulnerável. As pessoas a seu redor não podem rejeitá-lo e, mesmo que tentassem, nada do que
realmente importa iria mudar.
Não importa onde você está, quem são as pessoas à sua volta e o que você está fazendo nesse lugar onde
estão essas pessoas. A diferença entre um lugar e outro, entre um e outro grupo de pessoas ao alcance de
sua visão e de seu toque, foi suprimida, tornou-se nula e vazia. Você é o único ponto estável num
universo de objetos em movimento - e assim o são igualmente (graças a você, graças a você!) suas
extensões: suas conexões. Estas permanecerão incólumes apesar de os que estão conectados por elas se
moverem. Conexões são rochas em meio a areias movediças. Com elas você pode contar - e, já que
confia na sua solidariedade, pode parar de se preocupar com o aspecto lamacento e traiçoeiramente
escorregadio do terreno onde está pisando quando uma chamada ou mensagem é enviada ou recebida.
Uma chamada não foi respondida? Uma mensagem não foi retornada? Também não há motivo
para preocupação. Existem muitos outros números de telefones na lista, e aparentemente não há limite
para o volume de mensagens que você pode, com a ajuda de algumas teclas diminutas, comprimir naquele
pequeno objeto que se encaixa tão bem em sua mão. Pense nisto (quer dizer, se houver tempo para
pensar): é absolutamente improvável chegar ao fim de seu catálogo portátil ou digitar todas as mensagens
possíveis. Há sempre mais conexões para serem usadas - e assim não tem grande importância quantas
delas se tenham mostrado frágeis e passíveis de ruptura. O ritmo e a velocidade do uso e do desgaste
tampouco importam. Cada conexão pode ter vida curta, mas seu excesso é indestrutível. Em meio à
eternidade dessa rede imperecível, você pode se sentir seguro diante da fragilidade irreparável de cada
conexão singular e transitória.
Dentro da rede, você pode sempre correr em busca de abrigo quando a multidão à sua volta ficar
delirante demais para o seu gosto. Graças ao que se torna possível desde que seu celular esteja escondido
com segurança no seu bolso, você se destaca da multidão - e destacar-se é a ficha de inscrição para
sócio, o termo de admissão nessa multidão. Uma multidão de pessoas destacadas: um enxame, para ser mais preciso. Um agregado de indivíduos
autopropulsores que não precisam de comandantes, testas-de-ferro, porta-vozes, agentes provocadores ou
informantes para se manterem juntos. Um agregado em movimento no qual cada unidade móvel faz a
mesma coisa, mas nada é feito em conjunto. As unidades marcham no mesmo passo sem sair do
alinhamento. Coerente consigo mesma, a multidão expulsa ou atropela as unidades que se destacam -
mas são apenas essas as unidades toleradas pelo enxame.
Os telefones celulares não criam o enxame, embora sem dúvida ajudem a mantê-lo como é - um
enxame. Este, por sua vez, estava esperando por Nokias e Ericssons e Motorolas ávidos por servi-lo. Se
não houvesse enxame, qual seria a utilidade dos celulares?
Aos que se mantêm à parte, os celulares permitem permanecer em contato. Aos que permanecem
em contato, os celulares permitem manter-se à parte...
Jonathan Rowe nos lembra:
No final da década de 1990, em meio ao boom da alta tecnologia, passei algumas horas num café na área dos teatros
de São Francisco... Observei uma cena recorrente lá fora. A mãe está amamentando o bebê. Os garotos estão
beliscando seus bolinhos, em suas cadeiras, com os pés balançando. E lá está o pai, ligeiramente reclinado sobre a
mesa, falando ao celular ... Deveria ser uma "revolução nas comunicações", e no entanto aqui, no epicentro
tecnológico, os membros dessa família estavam evitando os olhares uns dos outros (8)
Dois anos depois, Rowe provavelmente veria quatro celulares em operação em torno da mesa. Os
aparelhos não impediriam que a mãe amamentasse o bebê nem que os garotos beliscassem seus bolinhos.
Mas tornariam desnecessário que eles evitassem olhar-se nos olhos: àquela altura, de qualquer forma, os
olhos já se teriam tornado paredes em branco - e uma parede em branco não pode sofrer danos por
encarar uma outra. Com tempo suficiente, os celulares treinariam os olhos a olhar sem ver.
Como aponta John Urry, "as relações de co-presença sempre envolvem contigüidade e
afastamento, proximidade e distância, sensatez e imaginação" (9). É verdade; mas a presença ubíqua e
contínua da terceira - da "proximidade virtual", universal e permanentemente disponível graças à rede
eletrônica - faz a balança pender decididamente em favor do afastamento, da distância e da imaginação.
Ela anuncia (ou será que pressagia?) uma separação final entre o "fisicamente distante" e o
"espiritualmente remoto". O primeiro não é mais condição para o segundo. Este agora tem sua própria
"base material" high-tech, infinitamente mais ampla, flexível, variada, atraente e prenhe de aventura do
que qualquer rearranjo de corpos materiais. E a proximidade física tem menos chance do que nunca de
interferir no afastamento espiritual...
Urry está correto ao descartar as profecias que falam de um iminente desaparecimento das
viagens, tornadas redundantes pela facilidade de conexão eletrônica. Se não por outro motivo, porque o
advento do deslocamento eletronicamente garantido faz com que viajar se torne mais seguro, menos
arriscado e excludente- e assim anula muitos dos antigos limites ao poder magnético de "conhecer
lugares". Os celulares assinalam, material e simbolicamente, a derradeira libertação em relação ao lugar.
Estar perto de uma tomada não é mais a única condição para "permanecer conectado". Os viajantes
podem eliminar de seus cálculos de perdas e ganhos as diferenças entre partir e ficar, distância e
proximidade, civilização e isolamento.
Muito software e hardware foi enterrado no cemitério dos computadores desde que o inesquecível
Peter Sellers tentou em vão no filme Muito além do jardim (1979), de Hal Ashby, desligar um bando de
freiras com a ajuda de um controle remoto de televisão. Nos dias de hoje ele não teria dificuldade em
deletá-las do quadro - do quadro que ele viu, do seu quadro, a soma de todas as relevâncias do mundo
ao seu alcance. O outro lado da moeda da proximidade virtual é a distância virtual: a suspensão, talvez até
a anulação, de qualquer coisa que transforme a contigüidade topográfica em proximidade. A proximidade
não exige mais a contigüidade física; e a contigüidade física não determina mais a proximidade.
É uma questão em aberto saber qual lado da moeda mais contribuiu para fazer da rede eletrônica e
de seus implementos de entrada e saída um meio de troca tão popular e avidamente usado nas interações
humanas. Será a nova facilidade de conectar-se? Ou a de cortara conexão? Não faltam ocasiões em que
esta última parece mais urgente e importante que a primeira.
O advento da proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais freqüentes e
mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser demasiadamente breves e banais para
38
poderem condensar-se em laços. Centradas no negócio à mão, estão protegidas da possibilidade de
extrapolar e engajar os parceiros além do tempo e do tópico da mensagem digitada e lida - ao contrário
daquilo que os relacionamentos humanos, notoriamente difusos e vorazes, são conhecidos por perpetrar.
Os contatos exigem menos tempo e esforço para serem estabelecidos, e também para serem rompidos. A
distância não é obstáculo para se entrar em contato - mas entrar em contato não é obstáculo para se
permanecer à parte. Os espasmos da proximidade virtual terminam, idealmente, sem sobras nem
sedimentos permanentes. Ela pode ser encerrada, real e metaforicamente, sem nada mais que o apertar de
um botão.
A realização mais importante da proximidade virtual parece ser a separação entre comunicação e
relacionamento. Diferentemente da antiquada proximidade topográfica, ela não exige laços estabelecidos
de antemão nem resulta necessariamente em seu estabelecimento. "Estar conectado" é menos custoso do
que "estar engajado" - mas também consideravelmente menos produtivo em termos da construção e
manutenção de vínculos.
A proximidade virtual reduz a pressão que a contigüidade não-virtual tem por hábito exercer. Ela
também estabelece o padrão para todas as outras proximidades. Toda proximidade está agora no
limite de medir seus méritos e falhas pelo modelo da proximidade virtual.
A proximidade virtual e a não-virtual trocaram de lugar: agora a variedade virtual é que se tornou
a "realidade", segundo a descrição clássica de Émile Durkheim: algo que fixa, que "institui fora de nós
certas formas de agir e certos julgamentos que não dependem de cada vontade particular tomada
isoladamente"; algo que "deve ser reconhecido pelo poder de coerção externa" e pela "resistência
oferecida a todo ato individual que tenda a transgredi-la" (10). A proximidade não-virtual termina
desprovida dos rígidos padrões de comedimento e dos rigorosos paradigmas de flexibilidade que a
proximidade virtual estabeleceu. Se não puder imitar aquilo que esta transformou em norma, a
proximidade topográfica vai se tornar um "ato de transgressão" que certamente enfrentará resistência. E
assim se permite que a proximidade virtual desempenhe o papel da genuína e inalterada realidade real
pela qual todos os outros pretendentes ao status de realidade devem se avaliar e ser julgados.
Todo o mundo já viu, escutou e não conseguiu deixar de entreouvir a conversa de outros
passageiros no ônibus falando sem parar em seus telefones. Há homens de negócios ávidos por se
manterem ocupados e parecerem eficientes - ou seja, por se conectarem a tantos usuários de celulares
quanto possível e mostrarem que de fato existem muitos deles prontos a receber sua chamada. Há
adolescentes e jovens de ambos os sexos dizendo a alguém, em casa, por que estação haviam acabado de
passar e qual seria a próxima. Você pode ter tido a impressão de que eles estavam contando os minutos
que os separavam de seus lares e mal podiam esperar para estar com seus interlocutores em pessoa.
Talvez não lhe tenha ocorrido que muitas dessas conversas entreouvidas não eram ouvertures de
conversas mais longas e substantivas que prosseguiriam em seu lugar de destino - mas seus substitutos.
Que essas conversas não estavam preparando o terreno para a coisa real, mas eram, elas próprias,
exatamente isso: a coisa real... Que muitos desses jovens ávidos por dar seus paradeiros a ouvintes
invisíveis iriam dentro em breve, logo que chegassem, correr para seus próprios quartos e trancar as
portas.
Quando estávamos a uns poucos anos do súbito desenvolvimento da proximidade virtual
eletronicamente acionada, Michael Schluter e David Lee observaram que "nós usamos a privacidade
como um traje pressurizado ... Tudo menos convidar ao encontro; tudo menos envolver-se". Os lares não
são mais ilhas de intimidade em meio aos mares, em rápido resfriamento, da privacidade. Transformaramse
de compartilhados playgrounds do amor e da amizade em locais de escaramuças territoriais, e de
canteiros de obras onde se constrói o convívio em conjuntos de bunkers fortificados. "Nós entramos em
nossas casas separadas e fechamos a porta, e então entramos em nossos quartos separados e fechamos a
porta. A casa torna-se um centro de lazer multiuso em que os membros da família podem viver, por assim
dizer, separadamente lado a lado." (11)
Seria tolo e irresponsável culpar as engenhocas eletrônicas pelo lento mas constante recuo da
proximidade contínua, pessoal, direta, face a face, multifacetada e multiuso. E no entanto a proximidade
virtual ostenta características que, no líquido mundo moderno, podem ser vistas, com boa razão, como
vantajosas - mas que não podem ser facilmente obtidas sob as condições daquele outro tête-à-tête, nãovirtual.
Não admira que a proximidade virtual tenha ganhado a preferência e seja praticada com maior
39
zelo e espontaneidade do que qualquer outra forma de contigüidade. A solidão por trás da porta
fechada de um quarto com um telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada e mais
segura do que compartilhar o terreno doméstico comum.
Quanto mais atenção humana e esforço de aprendizado forem absorvidos pela variedade virtual de
proximidade, menos tempo se dedicará à aquisição e ao exercício das habilidades que o outro tipo de
proximidade, não-virtual, exige. Essas habilidades caem em desuso - são esquecidas, nem chegam a ser
aprendidas, são evitadas ou a elas se recorre, se isso chega a acontecer, com relutância. Seu
desenvolvimento, se requerido, pode apresentar um desafio incômodo, talvez até insuperável. Isso
aumenta os encantos da proximidade virtual. Uma vez aberta, a passagem da proximidade não-virtual
para a virtual adquire seu próprio ímpeto. Ela parece autoperpetuadora, e também é capaz de se autoacelerar.
"Na medida em que a geração amamentada pela rede ingressa em seus primeiros anos de namoro,
o namoro pela internet está decolando. E não se trata de um último recurso. É uma atividade
recreativa. É diversão."
Assim pensa Louise France (12). Para os atuais corações solitários, as discotecas e bares para
solteiros são uma recordação distante, conclui ela. Eles não adquiriram (e não temem não ter adquirido) o
suficiente em termos de ferramentas de sociabilidade que fazer amigos em tais lugares exigiria. Além
disso, o namoro pela internet tem vantagens que os encontros pessoais não têm: nestes últimos, o gelo,
uma vez quebrado, pode permanecer quebrado ou derreter-se de uma vez por todas, mas no namoro pela
internet é muito diferente. Como confidenciou um entrevistado de 28 anos da Universidade de Bath:
"Você sempre pode apertar a tecla para deletar. Deixar de responder um e-mail é a coisa mais fácil do
mundo." France comenta: os usuários dos recursos de namoro on-line podem namorar com segurança,
protegidos por saberem que sempre podem retornar ao mercado para outra rodada de compras. Ou, como
o insinua o dr. Jeff Gavin, da Universidade de Bath, citado por France: na internet pode-se namorar "sem
medo de 'repercussões' no mundo real". Ou, de qualquer maneira, é assim que a pessoa se sente ao
conseguir parceiros na internet. É como folhear um catálogo de reembolso postal que traz na primeira
página o aviso "compra não-obrigatória" e a garantia ao consumidor da "devolução do produto caso não
fique satisfeito".
Terminar quando se deseje - instantaneamente, sem confusão, sem avaliação de perdas e sem
remorsos - é a principal vantagem do namoro pela internet. Reduzir riscos e, simultaneamente, evitar a
perda de opções é o que restou de escolha racional num mundo de oportunidades fluidas, valores
cambiantes e regras instáveis. E o namoro pela internet, ao contrário da incômoda negociação de
compromissos mútuos, se ajusta perfeitamente (ou quase) aos novos padrões de escolha racional.
Os shopping centers muito têm feito para reclassificar o labor da sobrevivência como diversão e
recreação. O que costumava ser sofrido e suportado com uma mistura de ressentimento e repulsa, sob a
pressão refratária da necessidade, tem adquirido os poderes sedutores de uma promessa de prazeres
incalculáveis sem a adição de riscos igualmente incalculáveis. O que os shopping centers fizeram pelas
tarefas da sobrevivência diária, o namoro pela internet tem feito pela negociação de parceria. Mas, tal
como o alívio da necessidade e as pressões da "pura sobrevivência" eram condições necessárias para o
sucesso dos shopping centers, assim também o namoro pela internet dificilmente teria êxito se não tivesse
sido ajudado e favorecido por terem sido eliminados da lista de suas condições necessárias o engajamento
full-time, o compromisso e a obrigação "de estar à disposição quando o outro precisa".
A responsabilidade por eliminar essas condições não pode ser atribuída à porta virtual do namoro
eletrônico. Muito mais tem acontecido no caminho em direção à líquida e individualizada sociedade
moderna para tornar os compromissos de longo prazo pouco numerosos, o engajamento a longo prazo
uma rara expectativa e a obrigação de assistência mútua incondicional uma perspectiva que nem é realista
nem percebida como digna de grandes esforços.
A suposta chave para a felicidade de todos, e assim o propósito declarado da política, é o
crescimento do produto nacional bruto (PNB). E o PNB é medido pela quantidade de dinheiro gasta
por todo mundo em conjunto.
40
"Deixe de lado a exacerbação e a histeria", escrevem Jonathan Rowe e Judith Silverstein, "e
crescer significará apenas 'gastar mais dinheiro'. Não faz diferença para onde o dinheiro vai, nem por
quê." (13)
Com efeito, a maior parte do dinheiro gasto, e mais ainda do crescimento dos gastos, é usada para
financiar a luta contra o equivalente, para a sociedade de consumo, das "moléstias iatrogênicas" -
problemas causados pela exacerbação e posterior apaziguamento dos impulsos e novidades de ontem. A
indústria norte-americana de alimentos gasta por ano cerca de 21 bilhões de dólares semeando e
cultivando o desejo por comidas mais sofisticadas, exóticas e supostamente mais saborosas e excitantes,
enquanto a indústria de produtos dietéticos e de emagrecimento fatura 32 bilhões, e os dispêndios com
tratamento médico, em grande parte explicados pela necessidade de enfrentar a maldição da obesidade,
devem dobrar no curso da próxima década. Os habitantes de Los Angeles pagam uma média de 800
bilhões de dólares por ano para queimar petróleo, enquanto os hospitais recebem números recordes de
pacientes sofrendo de asma, bronquite e outros problemas respiratórios causados pela poluição
atmosférica, elevando suas contas já recordistas. À medida que consumir (e gastar) mais do que ontem,
porém (espera-se) nem tanto quanto amanhã, se torna a estrada imperial para a solução de todos os
problemas sociais, e que o céu se torna o limite para o poder de sedução das sucessivas formas de atrair o
consumidor, as empresas de cobrança de débitos, as firmas de segurança e as unidades penitenciárias
tornam-se importantes contribuintes para o crescimento do PNB. É impossível medir exatamente o papel
enorme e crescente que o estresse provocado pelas preocupações desgastantes dos consumidores líquidomodernos
desempenha no sentido de elevar as estatísticas do PNB.
A maneira aceita de calcular o "produto nacional bruto" e seu crescimento, e mais particularmente
o fetiche construído pela política atual em torno dos resultados desse cálculo, baseia-se num pressuposto
que não foi testado e cuja exposição é coisa rara -embora seja amplamente contestado quando quer que
isso aconteça: que a soma total da felicidade humana cresce conforme uma quantidade maior de dinheiro
troca de mãos. Numa sociedade de mercado, o dinheiro troca de mãos em toda sorte de ocasiões. Só para
dar alguns dos exemplos pungentes recolhidos por Jonathan Rowe", o dinheiro troca de mãos quando
alguém se torna inválido e o carro é totalmente destruído em um acidente automobilístico; quando
advogados elevam seus honorários para cuidar de uma ação de divórcio; ou quando pessoas instalam
filtros ou passam a beber água mineral porque a água potável não pode mais ser consumida. E assim, em
todos esses e em casos similares, o "produto interno" cresce, para regozijo dos políticos governantes e dos
economistas que fazem parte de suas equipes.
O modelo de PNB que domina (monopoliza) a maneira como os habitantes da líquida, consumiste
e individualizada sociedade moderna pensam sobre bem-estar ou sobre uma "boa sociedade" (nas raras
ocasiões em que admitem que tais pensamentos penetrem em suas preocupações com uma vida feliz e
exitosa) é mais notável não pelo que ele classifica, de modo equivocado ou claramente errôneo, mas por
aquilo que nem chega a classificar; por aquilo que ele deixa totalmente fora do cálculo, negando assim, na
prática, qualquer relevância tópica à questão da saúde nacional e do conforto individual e coletivo.
Tal como os Estados modernos, ocupados em ordenar e classificar, não podiam suportar a
existência de "homens desgovernados", e como os modernos impérios em expansão, ávidos por
territórios, não podiam suportar a existência de terras "de ninguém", os mercados modernos não
toleram bem a "economia de não-mercado": o tipo de vida que reproduz a si mesma sem que o
dinheiro troque de mãos.
Para os teóricos da economia de mercado, essa vida não conta - e portanto não existe. Para os
praticantes da economia de mercado, ela constitui uma ofensa e um desafio - um espaço ainda não
conquistado, um permanente convite à conquista, uma tarefa ainda não cumprida clamando por ação
urgente.
Considerando a natureza temporária de todo e qualquer modos coexistendi entre os mercados e
uma economia não-monetária, os teóricos atribuem à vida auto-reprodutiva ou aos fragmentos de vida
auto-reprodutivos nomes que sugerem sua anormalidade e extinção iminente. As pessoas que conseguem
produzir os bens de que necessitam para sustentar o seu modo de vida, e que portanto dispensam as
constantes visitas ao shopping, vivem "ao deus-dará"; levam um tipo de existência que extrai seu
significado unicamente daquilo que lhe faz falta ou que ela omite - uma existência primitiva, miserável,
que precede o "salto econômico" com que tem início a vida normal, sem adjetivos. Cada exemplo de um bem trocando de mãos sem um fluxo de dinheiro na direção oposta é relegado ao domínio obscuro da
"economia informal" - novamente o termo adjetivado da oposição cujo outro membro, normal (ou seja,
a troca mediada por dinheiro), não necessita de especificação.
Os praticantes da economia de mercado fazem o possível para alcançar os lugares que os
especialistas em marketing ainda não conseguiram atingir. A expansão é ao mesmo tempo horizontal e
vertical, extensiva e intensiva: o que resta a ser conquistado são as terras ainda presas ao seu meio de vida
"ao deus-dará", mas também a parcela de tempo dedicada à economia "informal" entre as populações já
convertidas ao modo de existência comprador/consumidor. Os meios de subsistência não-monetários
precisam ser destruídos de modo que aqueles que deles vivem vejam-se diante da escolha entre comprar e
morrer de inanição (não que, uma vez convertidos à compra, tenham a garantia de escapar da fome). É
preciso mostrar que as áreas da vida ainda não mercantilizadas escondem perigos que não podem ser
afastados sem a ajuda de ferramentas e serviços comprados, ou que devem ser depreciadas como
inferiores, repulsivas e, em última instância, degradantes. E realmente o são.
O que está mais visivelmente ausente no cálculo econômico dos teóricos, e figura no topo da lista
dos alvos da guerra comercial segundo os praticantes do mercado, é a enorme área do que A.H. Halsey
denominou a "economia moral" - o compartilhamento familiar de bens e serviços, a ajuda entre
vizinhos, a cooperação entre amigos: todos os motivos, impulsos e atos com que se costuram os vínculos
e compromissos duradouros entre os seres humanos.
O único personagem que os teóricos consideram merecedor de atenção, porque é a ele que se
atribui o mérito de "manter a economia em movimento" e de lubrificar as rodas do crescimento
econômico, é o homo oeconomicus - o ator econômico solitário, auto-referente e autocentrado que
persegue o melhor ideal e se guia pela "escolha racional'; preocupado em não cair nas garras de quaisquer
emoções que resistam a ser traduzidas em ganhos monetários e vivendo num mundo cheio de outros
personagens que compartilham todas essas virtudes, e nada além. O único personagem que os praticantes
do mercado podem e querem reconhecer e acolher é o homo consumens o solitário, auto-referente e
autocentrado comprador que adotou a busca pela melhor barganha como uma cura para a solidão e não
conhece outra terapia; um personagem para quem o enxame de clientes do shopping center é a única
comunidade conhecida e necessária e que vive num mundo povoado por outros personagens que
compartilham todas essas virtudes com ele, e nada além.
Der Mann ohne Eigenschaften, o homem sem qualidades, da modernidade precoce amadureceu e
se tornou (ou teria sido obrigado a isso pela força numérica das massas?) der Mann ohne
Verwandtschaften, o homem sem vínculos.
O homo oeconomicus e o homo consumens são homens e mulheres sem vínculos sociais. São os
representantes ideais da economia de mercado e os tipos que agradam aos analistas do PNB.
Eles também são ficções.
À medida que as barreiras artificiais ao livre comércio são quebradas, uma após a outra, e as
naturais, erradicadas e destruídas, a expansão horizontal/extensiva da economia de mercado parece
caminhar para seu fim. Mas a expansão vertical/intensiva está longe de terminar, e chega-se a
duvidar se esse fim é mesmo provável - ou se, de fato, sequer é concebível.
É graças à válvula de segurança da "economia moral" que as tensões geradas pela economia de
mercado não chegam a assumir proporções explosivas. É graças ao amortecedor da "economia moral" que
os dejetos humanos gerados pela economia de mercado não chegam a se tornar incontroláveis. Não fosse
pela intervenção corretiva, lenitiva, suavizante e compensadora da economia moral, a economia de
mercado exporia seu impulso autodestrutivo. O milagre diário da salvação/ressurreição da economia de
mercado deriva de seu fracasso em seguir esse impulso até o fim.
Admitir unicamente o homo oeconomicus e o homo consumens no mundo governado pela
economia de mercado incapacita um número considerável de seres humanos para a obtenção de
permissões de residência, enquanto consente a poucos deles - se é que chega a isso - desfrutar
legalmente esse direito em qualquer época e ocasião. Poucos podem escapar da área cinzenta sem
utilidade para o mercado e que este ficaria feliz em eliminar e banir de uma vez por todas do mundo que
governa.
O que do ponto de vista da conquista de mercado - já realizada ou ainda pretendida - é
representado como uma "área cinzenta" constitui, para seus habitantes conquistados, parcialmente
42
conquistados ou destinados a isso, uma comunidade, um bairro, um círculo de amigos, parceiros na
vida e para a vida. Um mundo em que a solidariedade, a compaixão, a troca, a ajuda e a simpatia mútuas
(noções estranhas ao pensamento econômico e abominadas pela prática econômica) suspendem ou
afastam a escolha racional e a busca do auto-interesse. Um mundo cujos habitantes não são nem
concorrentes nem objetos de uso e de consumo, mas colegas (ajudantes e ajudados) no esforço contínuo e
interminável de construir vidas compartilhadas e torná-las possíveis.
A necessidade de solidariedade parece suportar as agressões do mercado e sobreviver a elas -
mas não porque o mercado deixe de tentar. Onde há necessidade há chance de lucro - e os especialistas
em marketing levam sua engenhosidade ao limite para indicar maneiras de adquirir em lojas a
solidariedade, o sorriso amigo, o convívio ou a ajuda no momento de necessidade. Constantemente têm
êxito - e constantemente fracassam. Sucedâneos comercializados não podem substituir vínculos
humanos. Em sua versão à venda, os vínculos se transformam em mercadorias, ou seja, são transportados
para um outro domínio, governado pelo mercado, e deixam de ser os tipos de vínculo capazes de
satisfazer a necessidade de convívio e que só nesta podem ser concebidos e mantidos vivos. Não pode ter
êxito a caçada movida pelo mercado ao capital descontrolado que se esconde na sociabilidade humana
(15).
Quando observada através das lentes de um mundo ordenado, adequadamente construído e
funcionando em harmonia, a "área cinzenta" da solidariedade, da amizade e das parcerias
humanas é vista como o reino da anarquia.
O conceito de "anarquia" carrega o peso de sua história essencialmente antiestatal. De Godwin a
Kropotkin, passando por Proudhon e Bakunin, os teóricos e fundadores dos movimentos anarquistas
apresentaram esse termo como a designação de uma sociedade alternativa, o avesso de uma ordem
coercitiva e imposta pelo poder. Essa sociedade que postulavam diferiria da existente devido à ausência
do Estado - a síntese do poder desumano, intrinsecamente corruptor. Uma vez desmantelado e
eliminado o poder do Estado, os seres humanos recorreriam (retornariam?) aos valores da ajuda mútua,
usando, como Mikhail Bakunin vivia repetindo, sua capacidade natural de pensar e de se rebelar (16).
A fúria dos anarquistas do século XIX concentrava-se no Estado - no Estado moderno, para ser
preciso, uma novidade na época, que ainda não estava entrincheirado de modo suficientemente sólido
para reclamar legitimidade tradicional ou basear-se na obediência rotinizada. O Estado empenhava-se em
obter um controle meticuloso e ubíquo sobre todos os aspectos da vida humana que os antigos poderes
haviam deixado para os recursos coletivos locais. Reclamava o direito e os meios legais para interferir em
áreas das quais os antigos poderes, embora opressivos e exploradores, mantinham distância. Em
particular, incumbiu-se de desmantelar les pouvoirs intermédiaires, ou seja, as formas de autonomia local,
de auto-afirmação comunal e de autogoverno. Sob ataque, as formas habituais de solução dos conflitos e
problemas gerados pela vida em conjunto pareceram ser, para os pioneiros dos movimentos anárquicos,
dadas de forma não-problemática e, portanto, "naturais" Também eram imaginadas como autosustentáveis
e totalmente capazes de manter a ordem sob todas as condições e circunstâncias, desde que
protegidas das imposições originárias do Estado. A anarquia, isto é, uma sociedade sem o Estado e suas
armas de coerção, era visualizada como uma ordem não-coercitiva na qual a necessidade não se chocaria
com a liberdade nem esta se colocaria no caminho dos pré-requisitos da vida em grupo.
O Weltanschauung do anarquismo inicial compartilhava com o socialismo utópico da época um
forte sabor nostálgico (os ensinamentos de Proudhon e Weitling simbolizando sua íntima afinidade); o
sonho de sair da estrada em que se havia entrado com o nascimento de uma nova e moderna forma de
poder social e de capitalismo (ou seja, a separação entre o negócio e o lar) - de volta ao conforto, mais
romantizado do que genuinamente livre de conflito, da unidade comunal de sentimentos e ações. Foi
nessa forma inicial, nostálgica e utópica, que a idéia de "anarquia" se estabeleceu na aurora da sociedade
moderna e na maioria de suas interpretações político-científicas.
Mas havia no pensamento anarquista outro significado, menos demarcado pelo tempo, oculto por
trás de sua ostensiva rebelião antiestatal e, por essa razão, facilmente negligenciável. Esse outro
significado é próximo daquele da imagem da communitas de Victor Turner:
É como se houvesse aqui dois "modelos" importantes, justapostos e alternados, para o inter-relacionamento humano.
O primeiro é o da sociedade como um sistema estruturado, diferenciado e freqüentemente hierárquico de posições
43
político-jurídico-econômicas ... O segundo ... é o da sociedade como uma communitas, comunidade ou mesmo
comunhão, desestruturada ou estruturada de forma rudimentar, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à
autoridade geral dos dignitários rituais (17).
Turner usava a linguagem da antropologia e localizou a questão da communitas dentro da
problemática antropológica costumeira, preocupada com as diferenças entre as formas pelas quais os
agregados humanos ("sociedades", "culturas") asseguravam sua durabilidade e sua auto-reprodução
contínua. Mas os dois modelos descritos por ele também podem ser interpretados como representações de
modos complementares de coexistência humana que se misturam em diversas proporções em todo e
qualquer grupo humano, e não como diferentes tipos de sociedades.
Nenhuma variação do convívio humano é plenamente estruturada, nenhuma diferenciação interna
é totalmente abrangente, inclusiva e livre de ambivalência, nenhuma hierarquia é total e congelada. A
lógica das categorias imperfeitas preenche a diversificação endêmica e a desordem das interações
humanas. Cada tentativa de completar a estruturação deixa grande número de "fios soltos" e significados
contenciosos. Cada uma delas produz espaços em branco, áreas indefinidas, ambigüidades e territórios
"de ninguém" que carecem de levantamentos e mapas oficiais. Todas essas sobras do esforço de trazer a
ordem constituem o domínio da espontaneidade, da experimentação e da autoconstituição humanas. A
communitas é, para o bem ou para o mal, o revestimento de todo conjunto de societas - e na sua
ausência (se isso fosse concebível) esse conjunto se dispersaria: as societas se desintegrariam em suas
suturas. São as societas com sua rotina e a communitas tas com sua anarquia que, em conjunto, numa
cooperação relutante e dominada pelo conflito, fazem a diferença entre a ordem e o caos.
A tarefa que a institucionalização, com seus braços coercitivos, realizou de modo deficiente ou
deixou de cumprir ficou para ser consertada ou completada pela inventividade espontânea dos seres
humanos. Tendo-lhe sido negado o conforto da rotina, a criatividade (como apontou Bakunin) tem apenas
duas faculdades humanas em que se basear: a habilidade de pensar e a tendência (e coragem) de se
rebelar. O exercício de cada uma das duas é repleto de riscos e, ao contrário da rotina arraigada e
protegida de modo institucional, não se pode fazer muito para minimizar esses riscos, muito menos para
eliminá-los. A communitas (que não deve ser confundida com as contra-sociedades que reclamam o nome
de "comunidade", mas que se ocupam em emular os meios e recursos da societas) habita a terra da
incerteza - e não sobreviveria em nenhum outro país.
A sobrevivência e o bem-estar da communitas (e também, indiretamente, da societas) dependem
da imaginação, inventividade e coragem humanas de quebrar a rotina e tentar caminhos nãoexperimentados.
Dependem, em outras palavras, da capacidade humana de viver com riscos e de aceitar a
responsabilidade pelas conseqüências. São essas capacidades que constituem os esteios da "economia
moral" - cuidado e auxílio mútuos, viver para os outros, urdir o tecido dos compromissos humanos,
estreitar e manter os vínculos inter-humanos, traduzir direitos em obrigações, compartir a
responsabilidade pela sorte e o bem-estar de todos - indispensável para tapar os buracos escavados e
conter os fluxos liberados pelo empreendimento, eternamente inconcluso, da estruturação.
A invasão e a colonização da communitas, locus da economia moral, pelas forças do mercado
consumidor constituem o mais aterrador dos perigos que ameaçam a forma atual de convívio
humano.
Os principais alvos do ataque do mercado são os seres humanos como produtores. Numa terra
totalmente conquistada e colonizada, somente consumidores humanos poderiam obter permissão de
residência. A difusa indústria familiar das condições de vida compartilhadas seria posta fora de operação
e desmantelada. As formas de vida, e as parcerias que as sustentam, só estariam disponíveis como
mercadorias. O Estado obcecado com a ordem combateu (correndo riscos) a anarquia, aquela marca
registrada da communitas, em função da ameaça à rotina imposta pelo poder. O mercado consumidor
obcecado pelos lucros combate essa anarquia devido à turbulenta capacidade produtiva que ela apresenta,
assim como ao potencial para a auto-suficiência que, ao que se suspeita, crescerá a partir dela. É porque a
economia moral tem pouca necessidade do mercado que as forças deste se levantam contra ela.
Nessa guerra apresenta-se uma estratégia de mão dupla.
Em primeiro lugar, o maior número possível de aspectos da economia moral independente do
mercado é mercantilizado e remodelado sob a forma de aspectos do consumo.
44
Em segundo lugar, qualquer coisa na economia moral da communitas que resista a essa
mercantilização tem negada a sua relevância para a prosperidade da sociedade de consumidores. É
despida de valor numa sociedade treinada para medir os valores em dinheiro e para identificá-los com as
etiquetas de preço colocadas em objetos e serviços vendáveis e compráveis. É empurrada para longe das
atenções do público (e, espera-se, dos indivíduos) ao ser eliminada dos cômputos oficiais do bem-estar
humano.
O resultado da presente guerra é tudo menos previsível, embora até aqui pareça haver apenas um
lado na ofensiva, com o outro em retirada quase total. A communitas perdeu muito terreno. Postos de
troca ansiando por se transformarem em shopping centers afloram nos campos que ela um dia cultivou.
A perda territorial é um acontecimento sinistro e potencialmente desastroso em qualquer guerra,
mas o fator que, em última instância, decide o resultado das hostilidades é a capacidade de luta das tropas.
Um território perdido é mais fácil de se recuperar do que o espírito de luta e a confiança no propósito e
nas chances da resistência. Mais que qualquer outra coisa, é esse segundo acontecimento que causa
malefícios ao destino da economia moral.
O maior e provavelmente mais fundamental sucesso da ofensiva do mercado até agora tem sido o
gradual mas persistente (embora de modo algum se possa considerá-lo completo e irreparável)
esfacelamento das habilidades de sociabilidade. Em matéria de relações interpessoais, os atores nãoespecializados
encontram-se com freqüência cada vez maior no "modo agêntico" - agindo de maneira
heterônima, sob instruções abertas ou subliminares, e guiados basicamente pelo desejo de seguir as
instruções ao pé da letra e pelo medo de se afastar dos modelos atualmente em voga. O fascínio sedutor
da ação heterônima consiste principalmente numa renúncia à responsabilidade - compra-se uma receita
autorizada num pacote que inclui desobrigar-se da necessidade de responder pelos resultados adversos de
sua aplicação.
O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência,
inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de
consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente
oferecem e em termos de seu "valor monetário". melhor das hipóteses, os outros são avalia- dos como
companheiros na atividade essencialmente solitária do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cujas
presença e participação ativa podem intensificar esses prazeres. Nesse processo, os valores intrínsecos dos
outros como seres humanos singulares (e assim também a preocupação com eles por si mesmos, e por
essa singularidade) estão quase desaparecendo de vista. A solidariedade humana é a primeira baixa
causada pelo triunfo do mercado consumidor.