Descoberta

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- Rafael! Rafael levanta já são 07 da manhã!

Minha mãe abre a janela e a luz do sol banha o quarto escuro. Abro os olhos vagarosamente e sinto o calor de um novo dia invadir minha órbita. Por fim, relutante, decido finalmente levantar.

- Anda garoto, o café da manha já esta quase pronto. Eu tenho que sair pro trabalho daqui 40 minutos, se apresse se quiser carona pra escola.

Levantei tropeçando nos meus próprios pés. Ensopado de suor sigo em direção ao banheiro ainda sonolento.

- A mãe do Matheus ligou e disse que estava preocupada com você. - Continuo escovando os dentes sem dar a mínima.
- Ela disse que você não estava na casa dele ontem como disse que estaria. - Surpreso continuo fingindo desinteresse, como psicóloga, qualquer reação estranha minha seria o suficiente para minha mãe me analisar.
- Você sabe que aquela mulher é louca, não ligue pro que ela fala.
- E onde você estava então?
- Droga mãe! Estávamos no quarto com a porta fechada, ela não deve ter visto direito! Estava cheio de gente la! - Me arrependo assim que termino de gritar, essa era a chance que ela precisava.
- Sua reação não foi a de alguém que diz a verdade.
- Quer perguntar pra ele? Pro Caio? Pro Fernando?

Ela permanece na porta me encarando. Termino de escovar os dentes e tento me manter pleno, confiante encaro de volta.

Flashbacks da noite passada começam a aparecer na minha cabeça...

Música alta, um cheiro pútrido de banheiro de boate invade minha narina e queima meus olhos. Extasiado pela bebida apenas sinto meus olhos rodando nas órbitas, sinto vomito na minha camisa e tenho uma leve impressão de que não é meu.

- Fael! Sua vez, me faça um desafio. - A voz veio de um garoto sentado na minha frente. Estávamos todos sentados em um circulo jogando algo que parecia verdade ou consequência. Eu nem conhecia esse garoto direito, só sei que também é do terceiro ano e que se chama Augusto.
- E se vivemos todos numa fenda espaço-tempo em que tudo se inverte ao contrario do que nos aqui nessa dimensão fazemos ou agimos? - Respondi o desafio com outro desafio, entender alguma coisa do que eu falava, nem eu mesmo estava me entendendo.
Todos se olharam. Alguns rindo e outros tão bêbados ou drogados, ocupados demais nos seus próprios devaneios para prestar atenção em mim.
- O que eu quero dizer, é que, o meu desafio pra você é fazer um desafio pra mim.
- Me deixa pensar - um sorriso cafajeste brotando no canto de sua boca. - Rafael. Eu te desafio a me beijar.

Confesso que fiquei muito surpreso. Novamente todos se olharam confusos e uns ate riram da possibilidade. O que acontece é que eu não era gay e muito menos ele.
- Cara isso é uma brincadeira? Isso deve ser uma brinca... - Sinto os lábios do garoto nos meus. Na hora do susto tento empurra-lo, mas ele pressiona seu corpo contra o meu tão forte que fica difícil ate pra me mexer.

Abro meus olhos. O azul intenso do olho dele encara a neblina em meus olhos escuros, me sinto completamente descoberto, foi como se naquele momento aquele garoto que eu só sabia o nome tivesse alcançado o fundo da minha alma. Senti como se ele soubesse todos os meus medos, sonhos, pensamentos. Ele tinha lutado cara a cara com os meus demônios, estes que nem eu mesmo havia ainda enfrentado.

Consigo me soltar dos seus braços.
A bebida mexendo com meus sentidos, uma tontura me atinge e de repente sinto o chão frio de madeira da boate encontrar meu rosto e adormeço.

Acordo na minha cama com a minha mãe puxando as cortinas...

- Então foi isso! - Começo a me lembrar de tudo que aconteceu.
- Foi isso o que? - Mamãe esta parada atrás de mim como um coronel.
- Nada, a mãe do Matheus não deve ter me visto porque sai com o Caio pra comprar refrigerante. - Ela baixa a guarda, parece estar acreditando.

Tantos anos convivendo com alguém formado em analisar e descobrir as mentiras que as pessoas contam todos os dias a si mesmas me transformou em uma máquina de mentir. Contei essa parte com tanta convicção que até eu mesmo quase acreditei.

- Seu café esta em cima da mesa, demorou demais. Vai ter que ir a pé pra escola.
- Tudo bem. - Prefiro caminhar pelo tempo frio, vai me ajudar a colocar a cabeça no lugar.

O caminho é rápido. Apenas algumas quadras e já consigo enxergar a aglomeração de pessoas em frente a escola.
-Rafa! Rafael me espera!
Quando olho pra trás consigo enxergar Caio e paro, ele consegue me alcançar e seguimos juntos.

- Eu não me lembro de nada que aconteceu ontem a noite cara! Na verdade eu acho que dormi em cima do vômito da Selena Bauregardi assim que você chegou.

- Eu também não lembro. Alias, se minha mãe perguntar alguma coisa pra você, eu estava na casa do Matheus e só sai com você pra comprar refrigerante.
- Ta bom mas...
- A mãe do Matheus ligou pra ela.
- Entendi agora.

Chegamos ao prédio da escola. Muita gritaria, pessoas correndo, rodas de skate raspando o chão de concreto fazendo um barulho estridente. Minha cabeça dói tanto que sinto como se estas rodas estivessem riscando o meu cérebro.
Fecho o olho por um momento tentando me recuperar.

- Algum problema Rafa? - Sinto a mão do Caio no meu ombro.
- Eu to de boa.
- Você não parece alguém que ta de boa Rafael.
- Eu to de boa já disse! Que saco! - Chuto o bebedouro e corri pra sala de aula com tanto ódio que senti as veias do meu pescoço pularem.

Sentei no último lugar da sala, encostado numa parede sem janelas. Minha intenção é dormir até a hora da saída.

Enquanto retiro minhas coisas a mochila reparo num vulto andando a minha frente. Um rapaz que provavelmente é um aluno novo senta duas carteiras a minha frente.

Continuo retirando minhas coisas e levanto a cabeça. Foi quando meus olhos encontraram o do garoto novo, sinto minhas bochechas roxas e viro o rosto.

Vários pensamentos atingem minha cabeça como uma faca.
Porque ele estava me olhando? Confesso que fiquei ate assustado na hora mas finamente paro de ver chifre na cabeça de cavalo e deixo de pensar coisas que não existem.

A voz da professora ecoa pela sala e sinto meus olhos pesando. Minha cabeça vai despencando aos poucos ate atingir a carteira. Meus olhos fechados. Estou quase me entregando aos braços do sono quando escuto um eco distante. A voz da professora esta mais alta, afastando minha sonolência.

- Turma se vocês repararam temos um aluno novo! Ele poderá se apresentar assim que O RAFAEL LEVANTAR E ABRIR OS OLHOS.

Instantaneamente fico erecto. Minha bochecha esta queimando de vergonha e todos os alunos me encaram.

- D-Desculpa.
- Agora, você querido, pode levantar-se e dizer seu nome a turma.
- Eu me chamo Heitor e tenho 18 anos. Me mudei pra cidade recentemente.

Novamente ele se levanta e olha pra mim.
Abaixo os olhos na mesma hora, fingindo desinteresse.

Ele se senta e a professora segue com a aula.

- Ei! Psiu! Rafael!
Me viro pra responder o Caio.
- Que foi?
- Você viu que babaca metido? Precisava se levantar pra dizer o nome?
- Caio e dai? Se ele quer, o problema é dele!

Deitei na carteira e sem perceber peguei no sono.

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