continuação - Prefácio

1.8K 28 2
                                    

Eu procurava decifrar qual era a lição. Mas era muito mais agradável pensar sobre o assunto no calor do apartamento, olhando pela janela da sala para baia de Nova York do que me arriscar alguma nova de graça nas ruas lá embaixo.

Como frequentemente fazia, minha mãe tinha mudado de roupa e maquiado o rosto, preparando se para chegada de meu pai. Falamos sobre a minha briga com Snoony. O sol estava quase desaparecendo e juntos ficamos olhando as águas agitadas.

- Há gente lutando lá longe, matando-se uns aos outros - Disse ela, acenando vagamente para o outro lado do Atlântico. Eu concentrou meu olhar.

- sei - respondi. - Posso vê-los.
- Não, você não pode vê los - replicou ela, céticamente, quase severamente, antes de voltar para a cozinha. - Estão longe demais.

Como é que ela sabia se eu podia vê los ou não? Fiquei pensando. Forçando o olhar, eu tinha imaginado distinguir uma faixa estreita de terra no horizonte, onde figuras minúsculas estavam se empurrando, se agredindo e duelando com espadas, como faziam em classic cosmic. Mas talvez tivesse sido apenas a km nha imaginação, um pouco como os monstros da meia noite que, de vez em quando, ainda me despertavam de um sono profundo, meu pijama encharcado de suor, meu coração batendo.

Como se pode saber quando alguém está apenas imaginando? Fiquei olhando as águas cinzentas lá fora até que a noite caísse e me chamassem para lavar as mãos antes do jantar. Quando chegou em casa, meu Pai me abraçou. Pude sentir o frio lá de fora quando encostei na sua barba de um dia.

Num domingo daquele mesmo ano, meu pai pacientemente me dera explicação sobre o zero ser uma espécie de variável na aritmética, sobre os nomes dos números grandes que tinham sons desagradáveis, sobre o fato de não existir o maior número. ("Sempre se pode tomar mais um", ele me ensinara) De repente, fui tomado por uma compulsão infantil de escrever em sequência todos os inteiros de um a mil. Não tínhamos folhas de papel, mas meu pai me ofereceu uma pilha de papelões cinza que andara guardando das idas de suas camisas a lavanderia. Comecei o projeto ansiosamente, mas fiquei surpreso ao ver como andava devagar. Ainda não tinha ido além das primeiras centenas, quando minha mãe avisou que estava na hora de tomar banho. Fiquei desconsolado. Eu tinha que chegar a mil. Mediador durante toda a sua vida, meu pai interveio: se eu me submetesse de bom grado ao banho, ele continuaria a sequência. Fiquei super feliz. Quando sai do banho cheguei a mil só tinha um pouquinho depois da minha hora habitual de dormir. A magnitude dos números grandes nunca deixou de me impressionar.

Foi também em 1939 que meus pais me levaram a Feira Mundial de Nova York. Ali me foi oferecida a visão de um futuro perfeito que a ciência e a alta tecnologia tornavam possível. Uma cápsula do tempo foi enterrada, cheia de artefatos de nossa época, para o proveito dos seres no futuro distante - que, espantosamente, poderia não saber muita coisa sobre as pessoas de 1939. O mundo de amanhã seria luzidio, limpo, aerodinâmico e pelo que eu podia perceber, não teria nem sinal de pessoas pobres.

" Veja o som" era o comando fantástico de uma das exposições. E efetivamente, quando o diapasão era atingido pelo martelinho, uma bela onda sinusoidal passava pela tela do osciloscópio. "Escute a luz", exortava outro cartaz. E, efetivamente, quando a lanterna brilhava sobre a célula fotoelétrica, eu conseguia escutar algo parecido com a estática de nosso aparelho de rádio Motorola, sempre que o mostrador ficava entre as estações. Estava claro que o mundo continha maravilhas que eu jamais imaginara. Como é que um tom podia se tornar imagem e a luz se tornar ruído?

Meus pais não eram cientistas. Não sabiam quase nada sobre ciência. Mas, ao me apresentar simultaneamente ao cetismo e a admiração, me ensinaram as duas formas de pensar, de tão difícil convivência, centrais para o método científico. Estavam a apenas um passo da pobreza. Mas quando anunciei que queria ser astrônomo, recebi apoio incondicional - mesmo que eles (como eu) só tivessem uma ideia muito rudimentar da profissão de astrônomo. Nunca sugeriram eu ser médico ou advogado.
Gostaria de poder lhes contar sobre professores de ciência inspiradores nos meus tempos de escola primária e secundária. Mas, quando penso no passado, não encontro nenhuma. Lembro me da memorização automática da tabela periódica dos elementos, das alavancas e dos planos inclinados, da fotossíntese das plantas verdes, e da diferença entre antracito e carvão betuminoso. Mas não me lembro de nenhum sentimento sublime de deslumbramento, de nenhum indico de uma perspectiva evolutiva, nem de coisas alguma sobre idéias errôneas em que outrora todos acreditavam. Nos cursos de laboratório na escola secundária, haviam uma resposta que devíamos obter. Ficávamos marcados se não a conseguimos. Não havia nenhum encorajamento para seguir nossos interesses, intuições ou erros conceituais. Nas páginas finais dos livros didáticos, havia material visivelmente interessante. O ano escolar acabava sempre antes de chegarmos até aquele ponto. Podiam-se encontrar livros maravilhosos sobre astronomia nas bibliotecas, por exemplo, mas não na sala de aula. A divisão pormenorizada era ensinada como uma receita culinária, sem nenhuma explicação sobre como essa sequência específica de pequenas divisões, multiplicações e subtrações conseguia conduzir a resposta certa. Na escola secundária, a extração da raiz quadrada era dada com reverência, como se fosse um método entregue outrora no monte Sinai. A nossa tarefa era simplesmente lembrar os mandamentos. Obtenha a resposta correta, e esqueça se você não compreende o que está fazendo. Tive um professor de álgebra muito competente, no segundo ano, com quem aprendi muita matemática, mas ele era também um valentão que gostava de fazer as meninas chorarem. Meu interesse pela ciência foi mantido durante todos esses anos escolares pela leitura de livros e revistas sobre a realidade e a ficção científica.
A escola superior foi a realização de meus sonhos: encontrei professores que não só compreendiam a ciência, mas era realmente capazes de explica lá. Tive a sorte de frequentar uma das grandes instituições de ensino da época, a Universidade de Chicago. Estudava Física num departamento que girava em torno de Enrico Fermi, descobri a verdadeira elegância matemática com Subrahmanyan Chandrasekhar, tive a oportunidade de falar sobre química com Haroldo Urey, nos verões, fui estagiário de biologia de H.J. Müller, na universidade de Indiana, e aprendi astronomia planetária com o único profissional que se dedicava em tempo integral a esse estudo na época , G.O.Kuiper.
Foi com Kuiper que adquiri pela primeira vez uma noção do método conhecido como cálculo do verso do envelope: se lhe ocorre uma explicação possível para determinado problema, você pega um envelope velho, apela para o seu conhecimento de física básica, rabisca algumas equações aproximadas sobre o envelope, substitui as variáveis por valores numéricos prováveis, e vê se sua resposta roça a solução do problema. Se não, tem que procurar uma solução diferente. Esse método corta as tolices assim como uma faça passa pela manteiga.
Na Universidade de Chicago, também tive a sorte de participar de um programa de educação geral planejado por Robert M. Hutchinson, em que a ciência era apresentada como parte integrante da magnífica tapeçaria do conhecimento humano. Considerava se impensável que alguém desejasse ser físico sem conhecer Platão, Aristóteles, Bach, Shakespeare, Gibbon, Malinowski e Freud - entre muitos outros. Numa aula de introdução a ciência, a cisão de Ptolomeu de que o Sol gira ao redor da Terra era apresentada de forma tão convincente que alguns estudantes se flagravam reavaliando seu compromisso com a teoria de Copérnico. No currículo de Hutchinson, o status dos professores não tinha quase nada a ver com a sua pesquisa, inflexivelmente - ao contrário do padrão moderno da universidade norte-americana - os professores eram avaliados pelo seu ensino, pela sua capacidade de informar e inspirar a próxima geração.
Nessa atmosfera inebriante, consegui preencher algumas das muitas lacunas na minha educação. Grande parte daquilo que era profundamente misterioso, e não apenas naa ciência, tornou se mais claro. E também testemunhei em primeira mão a alegria que sentem aqueles que tem o privilégio de revelar um pouco do funcionamento do Universo.
Sempre fui grato aos meus mentores dos anos 50, e tentei me certificar de que cada um deles soubesse do meu apreço. Mas quando recordo o passado, parece me claro que não aprendi as coisas mais essenciais com os meus professores da escola, nem mesmo com os meus mestres universitários, mas com meus pais, que nada sabiam sobre ciência, naquele remoto ano de 1939

O mundo assombrado pelos demôniosOnde histórias criam vida. Descubra agora