Um homem dado às coisas do coração é um homem dado às coisas do coração

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Muié do cão. Robo meu coração. Me pediu uma rosa e eu não tinha não. Entrei no roseiral sem dominar a arte de ser ladrão. Não deu outra: fui parar na prisão.

Enjaulado conheci Juventino Magrelão. Cambito seco ele tinha. Cabra da peste. Conterrâneo dos meus pais, lá do nordeste. Magrelão não era bom exemplo, mas era gente fina. Quis causa rebelião. Sangue no zóio de revolta que tem esta gente torta. Torta, pois "temos a mesma cabeça grande, que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido, sobre as mesmas pernas finas"*. Somos gente torta de expressão morta. Este Juventino como eu ou Vírgulino tem o mesmo sangue Severino. Mas diferente destes, eu nasci dado ao romance e coisas do coração, já o Juventino pra assaltante e assassino sem deixar de ser gente fina. Talvez assim não tenha nascido e de tanto ver humilhações e maus tratos que sua família em vida seca tenha sofrido, o ódio em seu coração mais do que seu bucho com pão fora nutrido. E assim sendo por ser justiceiro lampiônico tenha se arressolvido.

Pra Magrelão me tornei querido por conta deste sangue Severino, este que usamos de pouca tinta que faz as veias iguais solos do nordeste seco. Um dia me ameaçaram por nada, quase tive um treco, por nada se faz muita briga na cadeia ou buteco. Não deviam ter me ameaçado. No outro dia de manhã o sujeito era passado, num lençol enrolado e sanguentado. Logo entendi que eu fora por Magrelão defensorado. Porque quando todos olhavam corpo sendo retirado, eu espantado, olho arregalado, Magrelão havia me piscado. De tal piscada qual era o significado? Resposta: eu mesmo cuidei deste cabra esteje relaxado.

2 de agosto dia da rebelião. A chuva resolveu ajudar. Juventino só me contou naquele dia parte do plano que ninguém sabia. Rebelião de nada servia. A não ser pra eu e ele que pro outro lado fugiria. Os outros presos como animais enfurecidos gritavam, queimavam, quebravam, matavam, refenzavam. E eram só bode expiatório. Nós no intacto refeitório, fomos escoltados pelo Cloriosvaldo, outro Severino notório, carcereiro. Sem ninguém nos ver o dia inteiro, cobertos por lixos e maus cheiros. Tivemos fuga em agosto, dia terceiro. Ainda chovia. Ninguém nos viu. Ouvimos fuzil. Manchete sangrenta da mídia noutro dia saiu. Jornalistas e policias? Monstros de um mesmo covil.

Fomos dados como mortos em meio à rebelião. E na conta bancária de Cloriosvaldo, de repente surgiu meio milhão.

Lá no lixão de mim Juventino se despediu assim "foi bom estar preso ao seu lado. Agora cada um pra um lado. Obrigado aliado". Aliado? Me senti pela primeira vez sujeito home, coisas que homens dado ao coração nem sempre sentem. Me senti cabra macho. Nuca mais eu vi Magrelão. Ele também nunca mais me viu, eu acho. Dizem que é dono do morro. Tanto potencial subvertido por uma sociedade do mal. Uma mente brilhante numa sociedade frustrante.

Eu agora considerado morto, vago como tal só que meio vivo. Escrevo em papel de pão ou papelão, moro na rua (talvez estivesse melhor lá na prisão), ando por aí e ao ver a lua, choro pensando naquela muié do cão.

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*referências ao eterno João Cabral de Melo Neto em seu "Morte e Vida Severina"

Apesar de nenhum conto aqui seguir o mesmíssimo padrão, acredito que este seja o mais diferente do livro desde a linguagem até o conteúdo, mas se repararem, o homem dado às coisas do coração bem como seu protetor e aliado, têm lá seus demônios que nunca adormecem. O conto demonstra também outras influências minhas, aqui digamos bem familiares. Obrigado aos leitores mesmo que a maioria sejam fantasmas.

ps Enjoei de colocar imagens.



Mas meus Demônios Nunca AdormecemOnde histórias criam vida. Descubra agora