Estou desesperado! Sempre estive, fato! No entanto agora o desespero é ¾ de mim. Imaginando que eu sou a minha própria casa, com quatro cômodos. Nunca entendi por que não contam o banheiro como cômodo, aff não interessa, ele está entupido, cagado, cheio de moscas. Continuando: sou a minha casa, de quatro cômodos e não quatro quartos. Já destruí na Sala, minha tevê de plasma de 50 polegadas com uma marreta; na Cozinha, não há com o que me alimentar, a não ser que eu lamba os restos no ralo da pia; o Primeiro Quarto sempre esteve vazio ou pelo menos é disso que me convenci por temer os demônios que lá estão e o meu Quarto é onde estou agora, é o que me mantém lúcido, meu um 1/4 ainda não desesperado.
A Sala representa todo o meu tempo perdido. É o motivo de reclamações sobre problemas com o mundo e a minha vida, dos quais eu nunca tomei providências para resolver. Na Sala a tevê me seduziu. Reduziu minha inteligência. Foi minha dose diária de ilusão. Subverteu meus elãs. Através de ondas sonoras e informações visuais deletou meus ideais. Da minha mente a tevê foi um estupro. Pensou só no próprio lucro. Ao menos não me senti sozinho neste último mês. Mas ela me irritou! Justo num dia de clássico do rúgbi, ficar sem sinal? Rebentei mesmo a filha da puta na marreta. Os vizinhos chamaram a polícia que bateu a porta, atendi. Disse "tá tudo bem, é só uma reforma".
A Cozinha também é importante, pois a porta que da para o quintal, que da para o portão e por sua vez da para a rua, é na Cozinha. Passo por lá antes de virar um robô, palavra derivada de um antigo termo eslavo que significa escravo e que também tem alguma ligação com um termo russo que significa trabalhar; busquei no google um dia. Saio às seis da manhã e às oito da noite estou de volta. Tudo que preciso fazer neste meio tempo é atender telefonemas e assinar papéis importantes e é claro: sorrir proporcionalmente ao vazio que sinto em cada momento da jornada. Quanto mais vazio, mais largo é o sorriso. Quando comprei a casa já veio com um brinde: um quadro com um Jesus daqueles que te acompanha com os olhos. É no mínimo estranho um quadro deste na cozinha, geralmente eles ficam no quarto da vó assim como a folhinha com o Salmo de número tal que, às vezes, é substituído pelo calendário da seicho-no-ie. Nunca o tirei de lá. Um pouco por pseudo-respeito e um pouco por um medo real, malditos olhos. Já falei com ele algumas vezes. Perguntei-lhe um dia, - Ei cara, que história foi aquela de "ó Pai por que me abandonastes?". Ele não respondeu, entretanto me encarou nos olhos e eu chorei desesperadamente. Nunca conheci meu pai e nem foi por isso, eu cortava cebolas, ou seja, a culpa foi de um excesso de ácido sulfénico em estado gasoso; busquei no Google.
A vida é irônica, nunca tive religião. Minha vó me levava à igreja em baixo de tapas, entretanto sou mais amigo de Jesus que muita gente religiosinha por aí. Ele olha literalmente pra mim, não preciso cantar para ele "entra na minha casa", pois ele já está aqui. Nem cantar "Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui", pois ele vive me olhando com aqueles olhos. Quanto às coisas normais de uma cozinha, minha geladeira está desligada desde que os ratos descobriram um jeito de invadi-la. Deve ter um ninho lá, pois escuto as patinhas arranhando as paredes por dentro. O botijão de gás acabou há três semanas e não pedi um novo, só almoço em restaurante e peço pizza ou lanche, o que me levou a engordar 13 quilos.
Suponhamos que a Sala seja o Plano Terreno, a Cozinha os Céus, afinal Jesus jaz lá, então o Primeiro Quarto, o escuro, é o próprio Inferno. O canto mais sombrio do meu interior. Sempre tentei despertar os anjos dentro de mim, entretanto meus demônios nunca adormeceram e eles vivem no Quarto agora. Sempre passo acelerado na frente dele. Ouço risadas infernais. Vejo olhinhos vermelhos cintilando como lava de vulcão. O cheiro de putrefação. É cruel. Serão estes 3/4 de mim tão mórbidos? Há fantasmas lá também os escuto lamuriando e perguntando "por quê?". Nunca sei responder. Eu nunca sei o que eles, o que ela quer saber. Acho que eu os amava. Eu acho que eu as amo, mas em algum momento...
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Mas meus Demônios Nunca Adormecem
Historia Corta"Mas meus Demônios Nunca Adormecem" trata-se de uma compilação de contos obscuros, mórbidos, violentos e bizarros. Alguns mais leves e simples e outros mais pesados e pirados. O livro se chamaria "Malditos", pois a maioria dos textos se não todos aq...