Capítulo 4

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Era parecia conformada com a necessidade imperativa de fazer silêncio para a mãe dar uma cochilada. Vida de gari não era fácil. Além de gari, estudante de psicologia à noite. Uma ventania entrava pela janela, balançando as tranças pesadas e as roupas floridas de Ana Clara. E pela janela ela mandou os olhos e a imaginação para fora do ônibus. Naquele momento todo mundo parecia interessado e se divertindo com a prosopopeia da garota que em dezembro faria sete anos. Até o motorista. E ela notou que estava causando sensação. Melhor porque ela gostava de plateia, principalmente se essa estivesse disposta a puxar conversa com ela. Uma mulher que estava no banco da frente, virou-se e a interpelou:
_ Sabia que você mesmo assim pretinha é bonita...
O restante dos passageiros ficou sem graça e a mãe aregalou os olhos, com vontade de esmurrar aquela mulher.
_ ... e muito inteligente!
_ Como é mesmo o nome da Senhora?
_ Helenira Pereira dos Santos
_ Engraçado, é um nome danado de feio. Parece com Goianira. E Goianira é um nome feio. A senhora não sabe mas eu faço capoeira, meu nome de guerra, é Garganta, e eu também faço jazz e e ballet, lá na associação comunitária. E lá eles me ensinaram que isso que a senhora falou é ra-cis-mo. E falar isso que a senhora falou dá até cadeia. De qualquer jeito obrigada por me chamar de bonita e inteligente. Mas eu já sabia disso. Todo mundo fala e até a professora, que é muito sabida, também fala.
Helenira virou-se para a frente, num misto de raiva e vergonha. Queria redarguir, mas tava com medo da língua destravada daquela garota. Resolveu ficar calada, engolindo a seco a chamada de atenção de uma criança, que tinha a lei a seu favor. "Esses pretos estão cada vez mais atrevidos. Bando de quilombolas nordestinos". Pensou, ou pelo menos acho que ela pensou. Mesmo sendo maranhense, por dentro ela não se emendava. Ficou calada, sem achar nenhuma graça naquela situação. Ao contrário do resto do ônibus que berrou em gargalhadas, rindo da astúcia da menina. Pois até quem não tem muita inteligência aprecia muito as pessoas inteligentes. E a garota era inteligente. Contrariando as ordens da mãe, Aninha levantou-se e deu uma olhada no jeitão de D. Helenira. Tava implicada com a vizinha de ônibus. Então perguntou:
_ A Senhora é crente do cu quente, não é? Sei por causa de suas roupas, pelo rabo de cavalo e pela Bíblia que a Senhora tem na mão. Mas pra mim não tem problema não. Minha catequista falou que a gente deve respeitar todas as religiões. Que a gente deve ser ecumê... Ecu o que mesmo mãe?
A mãe indiferente mas meio preocupada com o atravimento da menina respondeu:
_ Sei lá, Ana. Isso parece palavrão. Fala menos e respeite as pessoas. Tá bem?
_ Não tô desrespeitando ninguém, ela é que me desrespeitou primeiro. Acho que a minha mãe - falava para sua plateia - precisa mais de catequese que eu.
Então ocorreu nova hola de risadas. Exceto dona Helenira, que começou a ler aleatoriamente os Salmos em sua Blíbia. Até os demais crentes, que não eram poucos, também riram. No ônibus era só a menina falando, e todo mundo querendo que ela continuásse com o palavrório pernóstico. Ao contrário de sua mãe e de D. Helenira. Foi então que ela olhou para mim. Eu tava grudado num cano, meio que fazendo pole dance, para não ser defenestrado segundo as leis de Newton em vigência do trânsito de Goiânia. Ela me viu, pois eu já ria antes dela falar. Então ela percebeu que eu era um bom público.
_ Nooossa! Você é bem gordo...
_ Ana Clara Almeida!
Ela nem ouviu e continuou. Eu era a "bola" da vez em substituição a Dona Helenira.
_ ... Mas não é feio não. Qual é seu nome?
Falei meu nome e disse:
_ Obrigado! Se você estiver me elogiando.
_ É claro que tô elogiando. Banha não é defeito não. É só um jeito de ser. Tem até gente que gosta. Minha mãe por exemplo. Eu não, eu prefiro os meninos saradinhos ou magrelinhos como eu.
Naquela idade e a menina já tinha preferências em termos de sexo oposto. A mãe dela escondeu o rosto e evitava me olhar. Com vergonha de ver seus gostos sexuais assim correndo à boca miúda.
_ Cala boooca Ana! Deixa o homem em paz.
_ Deixe-a falar. Ela gosta. E a gente também
Eu disse.
_ Viu mãe! O Senhor Gordo aí falou que posso conversar. Qual é seu apelido? Seu nome é muito esquisito.


A MENINA QUE APRENDIA TUDOOnde histórias criam vida. Descubra agora