DO LADO DE CÁ DOS TRILHOS

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De um lado, sou neto de latifundiários; de outro, comerciante italiano da rua Santa Rosa. Filho


de engenheiro e advogada, tenho quadros bonitos na parede e piso em tapetes persas. O único


calo que tenho em minhas mãos é de tocar violão. Não tenho marcas de estilete nem de balas


pelo corpo, apenas arranhões devido a uma infância debaixo das traves. Sempre joguei no gol.


Nasci do lado de cá dos trilhos, de marginal somente no colegial, onde os colegas eram


príncipes; eu, apenas burguês. Eles calçavam All Star, um tênis todo fresco, americano, que


encantava as menininhas, dando um porte de jogador de basquete da Harvard University. Eu


usava um Bamba, figurando um goleiro do Vasquinho, meu time de futebol.


O Tietê enche, mas não molha minha casa; o temporal cai, mas não atola minha rua. Nunca tive


que trabalhar. Meu berço não era de ouro, mas era um berço. Só aos 10 anos peguei no


batente, no Rio de Janeiro. Fora eleito presidente do Vasquinho. Era um cargo glorioso, mas


tinha que pôr dinheiro na Caixa. Varria quintais e ganhava Cr$5,00. Em outras palavras,


cinquenta chicletes. Sempre fui um grande pidão, e, nos jantares que meus pais ofereciam, eu


punha uma urna na entrada, escrito:


"DÊ UMA COLABORAÇÃO A UM POBRE GAROTO."


Eles achavam graça e davam. Como os jantares eram frequentes, já estava me tornando um


milionário. Resolvi investir, capitalizar minhas economias. Virei um sócio fanático da Caixa


Econômica Federal. No Natal e no meu aniversário, o bolo era grande. Pensei até em investir


no overnight, mas não tinha know-how para tanto. No dia seguinte, ia direto para minha amiga


Caixa, onde os caras já me conheciam, e todo dia 26 de dezembro ou 2 de maio já tinha um


comprovante de depósito preenchido em meu nome no valor de Cr$500,00 (cinco mil


chicletes), era o bolo da minha avó. Pena que todo ano, até hoje, a ficha continue preenchida


em Cr$500,00. Minha avó não entende nada de correção monetária.


A conta crescia, começava a ficar apetitosa. Andava pelas vitrines escolhendo o que poderia e


o que não poderia ser meu. Um dia, encheu o saco. Não queria morrer rico sem ter nada em


mãos. Primeiro foi uma prancha de isopor, dessas de pegar jacaré. Fiquei bom no mar, passei


pruma de surfe, mas vim morar em São Paulo, e, até agora, as ondas do laguinho do Ibirapuera


não subiram. Tinha de fazer um investimento mais paulistano: comprei um violão. Aos 17


anos, conheci uma linda paraguaia na Unicamp. Com as férias, veio o convite. Nunca havia


saído do Brasil. Então, fechei a conta numa aventura ao Paraguai. Que decepção: ela tinha um


namorado paraguaio. Tinha carregado o Fabião comigo, mas ele também levou um fora de uma


muchacha. Decidimos então ir à Argentina, mas comemoramos a última noite paraguaia numa


boate. Bêbados e mal-amados, uns caras insistiram para irmos pro "quilombo". Quilombo?


Deve ser algum gueto de negros, pensei. Que nada, era um puteiro. Bêbados, mas nem tão mal-


amados, eu e o Fabião fomos pra Argentina, onde torramos todo o dinheiro em cassinos e mulheres. Que besteira, ficamos duros. Tenho um pouco de vergonha, mas também um pouco


de orgulho, pois não era só nos filmes que os caras se estrepavam em Las Vegas. Nós também.


Estávamos com fome e frio em Buenos Aires. Como explicar às nossas famílias que não


tínhamos dinheiro pra voltar? Apelamos para a criatividade:


- Fomos assaltados.


- Que coisa horrível.


Em dois dias havia dinheiro suficiente para passarmos mais um mês, porém, cinco minutos


depois, fomos pra rodoviária, pegamos um Pluma. Quarenta e oito horas de viagem sem abrir


a boca. A Argentina e o Paraguai riram de nós como quem diz: "Enganamos mais dois


trouxas."

Feliz ano velhoOnde histórias criam vida. Descubra agora