A PREVISÃO do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de
veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás
foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igre-
ja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do
globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma
raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia. porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos
dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não
as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes,
e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer fru-
galmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de pre-
ceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas
mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas
quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração
nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que
estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais dire-
tamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até in-
compreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envene-
nara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas
socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de
camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com
ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou,
dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com
efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que
rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra
descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou comple-
tamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calavrês,
varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que
possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblio-
teca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para
não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava
ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado
a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele,
numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma
das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao
levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não
havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir,
comparar e concluir do espetáculo presente alguma cousa análoga ao
passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer
a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita
complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou,
sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse: Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão.
Que queres tu? É a eterna contradição humana.