''O memorando adverte: permaneça no subsolo. Qualquer pessoa não autorizada que for encontrada acima da linha de demarcação será exonerada'"
Essas são sempre as palavras que escuto todos os dias antes de ir pra escola.
Desde que me conheço por gente, vivo no subsolo do planeta terra, tudo isso por conta de uma explosão radioativa do sol que a 50 anos devastou o planeta e o tornou inabitável.Tento viver como uma típica adolescente de 15 anos, mas o fato de viver enclausurada e não saber o que tem lá em cima me torna cada vez mais louca.
- Charlotte, levanta, já são quase seis da manhã, você vai se atrasar. - Ouço a voz de minha mãe ressoar pelo corredor.
Minha mãe me acorda, mas continuo deitada na cama, analisando como todo mundo acha normal viver em um lugar como esse.
A minha casa fica perto da vila férrea, não sei porque possui esse nome, já que não há a menor condição de se passar uma linha férrea no subsolo do planeta. Talvez seja uma espécie de código, mas se for, nunca vou saber.
Finalmente tomo coragem e levanto da cama, pego meu casaco cinza com botões de cor marrom e uma maçã.
Passo pelos corredores de casa que praticamente são iguais ao de todas as outras. O governo diz que é pra manter um padrão, e ser mais fácil localizar cada indivíduo no caso de alguma doença ou algo do tipo. No entanto, sempre achei curioso todo esse monitoramento.
O caminho é sempre o mesmo, os mesmos lugares, as mesmas pessoas, o mesmo ar pra respirar e o mesmo desejo, o de sair daqui.
O colégio é como um presídio, são regras a cumprir e áreas com a qual não se pode avançar. Paredes compridas e sem cor, completamente sem vida, não há iluminação direito no lugar, e sinto que a qualquer momento vou explodir.
No momento seguinte, ouço passos e sei que eles são de Klaus .
- Charlotte. - Me viro e o vejo me encarando.
- Oi K. , alguma novidade no relatório ?
- Claro, se como novidade você julga o mesmo memorando de sempre, tem sim, várias.
Ele sorri e eu retribuo. Klaus é meu único amigo aqui, o único em que eu posso confiar.
- Preparada pra triagem ?
- Claro.- Digo com um ar de confiança, mas ele sabe muito bem que não estou nem um pouco, mesmo assim, ele finge que acredita nas minhas palavras. Isso é uma das coisas que mais gosto nele.
- Hm, confiante como sempre, gostei. Vai se inscrever pra que ?
- Analisadora
No momento em que soltei aquelas palavras, vi a reação gélida no rosto de Klaus. É, ele realmente pensou que eu estava ficando louca, mas não o julgo, porque ser um analisador é difícil e muito arriscado, já que a maioria dos que vão pra superfície não sobrevivem por muito tempo, e os que sobrevivem, não são autorizados a comentar sobre o que fica fora da zona de demarcação.
- Analisadora ? Está falando sério ? Você nem ao menos consegue cuidar de si própria.
Klaus consegue ser bem estraga prazer quando quer. Entretanto, eu sei que ele quer me proteger, somos como irmãos, fomos criados como irmãos, e o fato de eu escolher ser uma Analisadora é realmente assustador.
-- Mas e você ? Vai escolher para que ?
-- Alimentário
Suas palavras me atingiram abruptamente. Tudo bem, devo admitir que ele faz o melhor omelete que eu já comi em toda a minha vida, mas fala sério, alimentário ? Aqui no subsolo, é a profissão mais sem graça de todas. Pra mim, não há designação pior, é como se você só tivesse utilidade pra alimentar a barriga dos outros.
No entanto, é a escolha de Klaus e não há nada que eu possa fazer, porque de alguma maneira ele sempre consegue me convencer de que não é tão ruim assim.
O sinal toca e é hora de recolhermos os pratos das mesas e retornar para a aula. Passo por um corredor fedido e mau iluminado, e infelizmente vejo os olhos do Chanceler Richard me fitando, são como olhos de cobra, embora eu nunca tenha visto uma, sei que é traiçoeiro e dá medo. Por algum motivo eu sinto que ele me odeia.
A sala de aula é completamente fechada, as paredes brancas e sem nenhum rabisco, e uma única janela, grande e velha, além do quadro negro, como tudo por aqui, totalmente sem graça. A aula é de sobrevivência à superfície e é sem dúvidas a minha aula favorita. O Chanceler Norman dá dicas de armamentos e de como se proteger da radiação solar, mas a única que parece estar interessada sou eu. Ele é o único Chanceler que eu consigo me dar bem nesse lugar. Ao que parece ele já passou por coisas horríveis, pois comumente é visto sendo retirado de sua casa aos gritos, e não é tão raro ele ter devaneios no meio das aulas.
Olho pro lado e vejo olhos cor de mel pousados sobre mim e sei que são de Tony. Todos os dias é a mesma coisa, ele me olha como se eu estivesse cometido um crime. Isso sempre me assustou, mas como nunca fez nada contra mim. Já tentei conversar com ele, mas toda vez que tento me aproximar, ele me ignora e age como se eu nem estivesse ali.
Finalmente o sinal toca. Espero por Klaus como faço todos os dias, já que ele mora a um quilômetro de distância da minha casa.
- Como foi a aula de culinária ?
- Incrível, a Chanceler Rachel ensinou como fazer macarrão com raízes. -Diz ele de uma forma animada, e eu continuo o olhando e pensando em qual é a graça de ficar cozinhando o dia inteiro.
Decido interromper o discurso de Klaus porque quando ele começa a falar de comida, parece impossível fazê-lo parar.
- Vamos ?
- Claro, deixe-me só falar com a Chanceler Rachel, prometo que é rápido.
Quando Klaus se afasta meu sistema de programação é acionado, e vejo que é uma mensagem de minha mãe:
"O hospital me ligou e precisei vir as pressas para o programa operatório, parece que uma menina se machucou tentando transpassar a barreira, volto quando der."
Beijos, mamãe
Fico pensando no que pode acontecer com essa menina, e o que de tão grave a superfície esconde para que ninguém, além dos analisadores, possa chegar até lá. Logo interrompo esse pensamento quando me dou conta de que minha mãe falou a palavra "quando der" que geralmente significa que ela retorna às 6 da manhã.
Vejo Klaus se aproximar e seguimos até a sua casa, em silêncio, o que não é de se espantar, porque nesse lugar nunca se tem novidades. Deixo Klaus em casa e vou para a minha. Não é muito tempo de caminhada. Enquanto passo por algumas casas não deixo de reparar como todas são exatamente iguais. Sempre cinzas, quadradas. É como se estivesse realizando um funeral em cada uma delas.
Sou interrompida de meus pensamentos quando ouço passos. A medida que acelero os meus, a pessoa também acelera. Quando olho pra trás, vejo que é uma menina, ela não aparenta ter mais de 8 anos de idade, está segurando um coelho de pelúcia e me olha fixamente, é um olhar que me amedronta, mas me sinto uma idiota quando penso nisso, afinal, o que uma menininha pode fazer contra mim ? Tenho o dobro do tamanho dela, e sou bem mais forte que ela. Quando a olho, vejo que ela está dizendo alguma coisa.
- Charlotte, você é a escolhida.
- O que você disse ? -
- Charlotte, você é a escolhida.
Quando estou prestes a perguntar o que significa aquilo ela sai correndo, e some em meio as luzes fracas dos corredores.
Ao chegar em casa, tomo um banho e medito sobre o que aquela menina quis dizer. "Charlotte, você é a escolhida" o que quer dizer isso ? Escolhida pra que ? E como aquela garotinha sabia meu nome ? Da onde ela me conhecia ?. Depois de ficar pensando nisso durante uma hora, consigo pegar no sono. Afinal, a triagem é daqui a uma semana, e eu não posso ficar me preocupando com uma menininha louca e que fala coisas sem sentido.
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Triagem
General FictionCharlotte tem quinze anos e desde sempre vive no subsolo da terra devido a uma explosão solar, ela sempre se sentiu estranha e desconfortável por viver ali e para sair, seu único meio é passando pela Triagem, mas logo ela descobre que o mundo não e...