2 ~ "És Mesmo Porreiro"

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No dia seguinte, uma manhã fria de sábado, Lucas encontrava-se enrolado nos lençóis da cama, livros de história e de português empilhados na secretária do outro lado do quarto, prontos para uma eventual sessão de estudo, se houver paciência. Nas suas mãos estava o iPhone 5 que recebera há dois natais, e que ainda não tinha sofrido quedas graves - uma surpresa para alguém tão desastrado como ele.

Uma vibração inesperada fez as suas mãos relaxarem, fazendo o aparelho cair-lhe em cheio no nariz, seguido de um silencioso gemido de dor, para não acordar ninguém. "bom dia!!" dizia o ecrã, com uma cara sorridente e o nome 'Francisco' visível em cima do texto, juntamente de 'emojis' aleatórios.

Lucas não conseguiu resistir ao sorriso que se formara na cara dele. Já há um tempo que sonhava com o dia em que alguém lhe mandaria uma mensagem de bom dia - um dos gestos considerados 'românticos' nesta época digital cheia de mensagens instantâneas, redes sociais e fotos de pré-adolescentes editadas até parecerem saídas de um desenho animado de mau orçamento. Uma caraterística pouco genuína de uma época pouco genuína, especialmente quando comparada aos gestos dos cavalheiros de antigamente.

"bom dia!! :)x" - respondeu Lucas, com uma expressão facial igual à que tinha deixado transparecer na mensagem de texto.

"acordei-te?" - perguntou Francisco do outro lado do ecrã

"não não haha" "mas caiu-me o telemóvel na cara por tua culpa!"

"epa desculpa, eu compenso-te!! queres que eu deixe cair o telemóvel na minha cara?" - ambos os rapazes pareciam imitar aquele boneco a rir que Francisco mandara junto da pergunta

"não queremos estragar a tua cara, vá!!" "depois encontramos uma forma de compensares, mas vê, deves-me uma pelos espirros todos que vou dar hoje"

"é bem, é bem, ficamos assim hahaha" "importas que te faça uma pergunta?"

A expressão de Lucas mostrava-se confusa e ansiosa, como se o que ele fosse perguntar fosse algo decisivo. - "claro, o que quiseres"

"como é que foi quando tu" "tu sabes" "saíste do armário?" "acho que é assim que se diz"

"quando eu contei às pessoas que era gay?" - Lucas riu-se internamente. Imaginava-o com uma cara pensativa e embaraçada. - "não é uma história lá muito boa para dizer a verdade" "queres mesmo saber?"

"quero!!" "gosto imenso de saber as experiências das pessoas e assim" "muito estranho?"

"não, nada! eu também sou assim, adoro ouvir as histórias das pessoas" "então aqui vai"

Seguiu-se uma pausa de pouco menos de dez minutos enquanto Lucas tocava nos pequenos retângulos daquela tela de vidro que agiam como um teclado. Seria uma história não muito comprido, e tão pouco interessante quanto arrumar a sala de estar depois de uma festa de aniversário de uma rapariga de 8 anos.

Tudo se passou há seis semanas, no jantar de aniversário de Lucas. Por coincidência, outra festa estava a ser organizada no mesmo restaurante - um restaurante chinês perto da costa. E por uma segunda coincidência, um amigo do rapaz loiro, que também era a paixoneta dele, era um dos convidados dessa outra festa. Isabel, que teria sido a primeira pessoa a quem ele teria contado o seu maior segredo, estava ciente da paixão do seu colega e não tardou em armar o espalhafato que já lhe era típico.

- Está ali o Filipe! - disse ela num grito sussurrado, que mal se ouviu à distância que estavam um do outro. Ouvindo isto, Lucas ganhou uma vermelhidão quase instantânea e fez os possíveis para não ser visto pelo rapaz da mesa em frente. Observando a reação do aniversariante, rumores e perguntas começaram a circular na mesa, tornando-se um jogo de ténis entre aqueles que sabiam o obscuro segredo de Lucas, e aqueles que continuavam na ignorância. A única coisa que Lucas se lembra depois de se aperceber dessas mesmas perguntas, foi um ligeiro pânico quando duas das convidadas, ambas colegas de turma e ambas chamadas Madalena se levantaram das comfortáveis cadeiras de madeira almofadadas e se movimentaram na direção da ponta da mesa, com ar de quem tinha questões na ponta da língua.

- Lucas... és mesmo...? - perguntou a Madalena Vieira, ajoelhando-se ao lado da cadeira de Lucas, respondida apenas por um sorriso embaraçado e um aceno de cabeça do rapaz que partilhava a turma com ela há sete anos.

- Não acredito!! - exclamou a Madalena Nóbrega ao lado, retirando uma madeixa do seu longo cabelo ondulado da frente da cara, revelando dois grandes olhos azuis claros, muito parecidos aos do rapaz loiro ainda sentado com uma vermelhidão no rosto. O jantar que se seguiu foi quase como uma celebração. Uma festa para celebrar o fim do peso que Lucas levava nos ombros, de todas as inseguranças, as noites solitárias, dos momentos de tristeza, das sensações de desespero por não ser aceite. Marcava o fim de tudo. E Lucas arrepender-se-ia tanto se negasse a sua sexualidade, nesse dia, pois foi nesse mesmo dia que inadvertidamente tudo mudou.

Seis semanas depois, Lucas passou de uma pessoa que toda a gente conhecia mas pela qual ninguém se interessava particularmente, para uma pessoa conhecida pelos que importavam e adorado pelos que o conheciam, e ter a possibilidade de ter a vida que teria ganho era algo pelo qual Lucas ansiava há anos.

"omg..." "isso é tão fixe!! opa quem me dera, deve ter sido brutal"

"foi mesmo haha, foi o melhor dia da minha vida até hoje! tu ainda não assumiste, pois não?"

"verdade seja dita, ainda não" "quer dizer, eu tenho tipo 3 amigos, e eles sabem e aceitam mais ou menos. mas ainda não" "se bem que há uma miúda na minha turma que anda a espalhar rumores, só porque me ouviu a falar com uma amiga minha, é alta treta" "agora tenho gente a olhar para mim de lado, mas enfim" "sempre foi assim"

"eu compreendo que é difícil, mas não te rales meu" "só quando estiveres pronto" "e que se lixe essa miúda, rumores só podem chegar a um certo ponto"

"acho que tens razão haha" "posso te fazer outra pergunta?" "esta não tem nada a ver com o teu passado, não te preocupes"

"força nisso"

"queres sair comigo e com uma amiga minha para a semana?" "íamos ao centro depois das aulas e tal" "seria fixe"

Lucas sentiu-se um pouco atordoado pela pergunta para ser honesto, mas aceitou sem hesitar. Francisco parecia-lhe ser alguém tão simpático, e tinham-se dado tão bem que parecia ser uma excelente ideia, mesmo que fosse um pouco repentina. "quinta feira estás livre?"

"perfeito!" "fica quinta feira então" "eu tenho de ir ok?" "falamos mais tarde!" "já agora, só para dizer" "és mesmo porreiro :)" "ainda bem que meti conversa"

E assim foi. Deixando o rapaz loiro com um sorriso pastado na cara durante a próxima hora, Francisco ficou ausente em qualquer rede social do conhecimento de Lucas e só regressou a meio da tarde, onde conversaram mais e mais sobre sabe-se lá o quê.

E nesse dia, pareceu que dois opostos se atraem tanto no amor com na ciência.


X - As Coisas Que Ele Me Disse [PT-PT]Where stories live. Discover now