Memórias

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ROGER

Arrumei todos os papeis em cima da minha mesa, totalmente cansado e passei as mãos pelo rosto. Olhei para o porta retrato que nunca sai de cima da minha mesa. Nela, uma garotinha loira e de olhos azuis está sentada em meu colo, vestido de papai noel.

Todo Natal eu me fantasio e levo presentes para as meninas do orfanato, tiro fotos e me divirto com elas. Eu sempre tento dar a mesma atenção para todas, mas há uma especial entre elas que eu sinto maior afeto.
A minha filha, Victoria.

Minha filha! Que eu tive que abandonar quando ainda era um bebê. Mas eu tive meus motivos, claro que tive.

Até hoje eu ajudo o orfanato onde ela vive, mas nem sempre foi assim. Foi o meio que eu encontrei de poder ver minha filha crescer e pelo menos olhá-la de longe.

Sinto um vazio muito grande sempre que vou embora de lá, mas estou prestes a dar um fim nisso. Não aguento mais viver tão sozinho! Preciso dar um jeito em minha vida ou vou acabar enlouquecendo. Com isso em mente, saí da sala.

— Danna, estou saindo e não sei quando volto. Anote todos os recados e se alguém me procurar diz que fui resolver problemas pessoais. - disse à minha secretária.

— Ok senhor Reed.

Enquanto eu dirijo, eu só consigo pensar em Victoria. Eu tenho tanta coisa a dizer, mas não sei por onde começar. Nem mesmo sei como ela vai reagir quando eu contar.

Desci do carro e entrei no orfanato, já seguindo em direção à sala da diretora Levi. Bati à porta e aguardei. Fiquei olhando para aquelas meninas, procurando por Victoria.

— Senhor Reed! Como vai? - Levi abriu a porta.

— Senhora Levi, vou muito bem e você? - apertei sua mão.

— Estou bem. Vamos, entre! - ela me deu passagem. — Qual o motivo da sua visita hoje? - me sentei de frente pra ela.

— É um assunto delicado. - ela assentiu. — Eu... Eu vim contar a Victoria que ela é minha filha. - Levi arregalou os olhos e abriu a boca várias vezes. — O que foi? Não acha uma boa ideia?

— O senhor tem certeza?

— Nunca tive tanta certeza em toda a minha vida, acredite!

— A Victoria é uma garota problemática e impulsiva, senhor Reed. Se veio aqui somente para bagunçar a cabeça dela contando a verdade, sugiro que tenha calma. - eu assenti.

— Eu não vim aqui somente para contar a verdade, quero levá-la comigo. Não consigo mais viver com isso sabe? Está acabando comigo! Estou adoecendo. Já esperei demais! - falei rápido, sentindo meu coração bater forte.

— Entendo, senhor Reed. Fico feliz que tenha tomado essa decisão. - Levi sorriu. — Vou pedir para que a chamem aqui. - eu assenti.

Me levantei da cadeira não me aguentando de ansiedade. Andei de um lado pro outro, enquanto esperava Victoria chegar. Uma batida na porta e meu coração saltou no peito.

— Diretora Levi? - ela entrou na sala. — Mandou me chamar? Olha, se for pelo que fiz com as meninas...

— Victoria, tenha modos! - Levi arregalou os olhos para ela. Victoria sorriu e logo me lembrei da sua mãe. — Quero que conheça alguém.

— Hum, oi. Muito prazer. - eu sorri automaticamente.

— Oi Victoria, é um prazer conhecê-la.

— Esse é o Roger, Victoria. Roger Reed. - Victoria me olhou assustada, e ficou pálida de repente.

— Roger Reed? Mas... Não, não pode ser! - Victoria se afastou até a porta.

— Sim, sou eu Victoria. Eu sou seu pai! - ela abriu a porta e saiu correndo. — Victoria, espere!


*-*-*-*-*


Eu corri, corri muito!

A frase "eu sou seu pai" ecoava na minha cabeça, e tudo que eu via era o borrão das coisas passando por mim. Eu parei no pátio agora vazio, e coloquei as mãos nos joelhos. As lágrimas caiam dos meus olhos e a vontade de vomitar veio, me sufocando.

Respirei fundo e voltei a correr em direção aos quartos. Encontrei um canto meio escondido e fiquei ali encolhida, sem conseguir parar de chorar.

— Eu sabia que poderia reagir assim.

Me assustei com a voz masculina, pois isso não é comum por aqui. Olhei para o homem parado perto de mim e me afastei para o canto da parede.
Ele se sentou um pouco afastado, mas bem de frente pra mim. Eu pude finalmente reparar nele. Os mesmos olhos, os cabelos levemente grisalhos.

— Por que só agora? - minha voz quase não saiu. — Por que você me deixou aqui por tanto tempo? - não contive o choro.

— Eu... Victoria, eu não tinha condições de criar você. Eu passei 16 anos da minha vida lamentando por ter de deixado aqui, acredite! - eu ri.

— Então é essa sua desculpa? - perguntei sem acreditar. — Espere mais   16 anos então ok? Eu não quero nada de você! - Saí correndo de novo.

— Victoria!

Entrei no quarto e bati a porta. Me joguei na cama e voltei a chorar mais uma vez. Quando é que isso vai parar?
Eu não consigo acreditar que ele apareceu depois de tantos anos! O que aconteceu pra ele me deixar aqui? E minha mãe, por que não veio com ele? Será que a Ludmilla tem razão? Estou tão confusa!

Esperei todos dormirem e saí do quarto. Olhei para os lados procurando por alguém, e não achei. Eu tenho certeza que esse homem vai voltar amanhã, mas ele não vai me achar aqui.

Fui até os fundos do orfanato, subi na árvore que eu uso para fugir, sempre tomando cuidado com a cerca elétrica, desci pelos galhos que ficam para fora do muro e pulei no chão. Saí correndo pela rua e logo estava na avenida movimentada.

Olhei para os lados, tentando decidir pra qual lado ir. Fiquei vagando pelas ruas de madrugada sem saber pra onde ir. A imagem do meu pai não sai da minha cabeça. Me sinto perdida!
Acordei com alguém balançando meu ombro.

— Ei garota! O que aconteceu com você? - quando abri os olhos, uma senhora com cara de preocupada me olhava.

— Ah, eu me deitei aqui e devo ter pegado no sono. - A praça que eu me deitei está lotada de gente andando pra cima e pra baixo.

— Está tudo bem? - a senhora perguntou.

— Está sim, obrigada! Eu tenho que ir.

A claridade incomodou meus olhos, e eu mal consigo mantê-los abertos. Eu devo estar com os olhos inchados de tanto chorar!

— Ai que fome! - minha barriga roncou. Estava andando distraída quando ouvi alguém me chamar.

— Victoria!

Quando olhei para a rua, vi o cara que diz ser meu pai dentro de um carro. Arregalei os olhos e saí correndo. Não olhei para lado nenhum, simplesmente corri para o outro lado da rua. Só deu tempo de gritar quando um carro bateu em mim e eu saí rolando pelo chão.

— VICTORIA! Victoria! Ai meu Deus, você está machucada? - um rosto recém conhecido me olha com preocupação.

— Ai garota, você está bem? Não viu que o sinal estava fechado? - a mulher do carro parecia desesperada.

— Eu estou bem! - me sentei, e o corpo todo doeu.

— Vem, vou te levar para o hospital. - Roger falou.

— Eu não vou pra lugar nenhum. Muito menos com você! - empurrei suas mãos.

— Victoria, você precisa...

— Eu não preciso de nada! - me levantei, sentindo uma dor na perna me incomodar. — Eu preciso que você me deixe em paz!

Saí mancando, enquanto todos me olham. Nem a dor na minha perna, nem os ralados vão me fazer parar de andar. Logo, um carro me seguia pelo acostamento.

— Victoria, por favor, você precisa de ajuda!

— Eu não quero sua ajuda! - falei grosseira.

Minha perna começou a doer muito e então eu parei, me apoiando no muro.

— Você está bem? - Roger agora está ao meu lado.

— Não, eu não estou bem! - eu quase gritei. — A culpa é sua! Por que você foi aparecer logo agora? Já tinha me acostumado a não ter ninguém! - eu senti uma dor no peito que não dá pra explicar em palavras.

— Eu sinto tanto, você não faz ideia! Vamos, você precisa de ajuda médica.

— Tudo bem. - eu disse, admitindo a dor latente em minha perna.

Depois que fui medicada e examinada, o médico me disse que teria que ficar ali em observação por aquele dia. Preciso dizer que eu fiquei muito feliz? É claro que estou sendo irônica! Eu poderia tentar fugir, se não tivesse uma enfermeira e o Roger em meu quarto. O engraçado de tudo, é que desde minha chegada, fui super bem atendida, recebi tratamento especial e ainda ganhei um quarto particular.

— Muito obrigado por tudo, Dr. Dwayne. - o vi apertar a mão do médico que me atendeu. — Se sente melhor? - Roger perguntou e eu assenti.

— Você não tem nada pra fazer? Não tem que ficar aqui comigo. - claro que ele deve ter sua família pra cuidar.

— Eu tenho tudo aqui agora, as outras coisas podem esperar. - ele puxou uma cadeira para perto de mim. — Você vai me dar uma oportunidade de te explicar o que aconteceu? - sua voz está mais próxima, mas eu não consigo olhar pra ele.

— Não quero ouvir.

— Você tem que me ouvir, filha! Eu preciso do seu perdão. - ouvi-lo me chamar de filha fez meu coração apertar.

— Não me chama assim ok? Eu não tenho pais, não tenho ninguém! - falei baixo.

— Eu entendo você se sentir assim. Eu não agi certo te deixando, por isso eu peço que me escute. Por favor, Victoria! Eu não iria atrás de você se não te quisesse comigo.

— Eu estou sentindo muita dor. Eu quero dormir! - eu menti, porque não sei se estou pronta pra ter essa conversa.

— Tudo bem, eu vou deixar você descansar. - ouvi seus passos pelo quarto e depois a porta batendo.

E mais uma vez, eu chorei.

Problem Girl (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora