1- Tormentas

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O cheiro de carniça impregnava a mina.

Resquícios de um velho infeliz, que os mineiros tentavam esquecer enquanto esfarelavam as pedras com suas picaretas. Mas o cheiro ainda os assombrava, como um barulho no fundo da cabeça, que gritava palavras incompreensíveis. Até por que sabiam, que por debaixo de seus pés, engolido pela terra barrenta da caverna, um defunto apodrecia. Enterraram o infeliz, sem cerimônia, a poucos dias, cada minuto escondendo o morto era descontado do pagamento do fim do mês. Então o fizeram as pressas, temendo não ter cruzeiros o suficiente para viver mais um longo dia. Cavaram uma cova rasa, jogaram o colega lá, e deixaram os vermes terminar o serviço. Um pequeno lírio solitário marcava sua memória. "Inferno" pensava Montenegro ao coçar sua barba castanha e suja, imediatamente voltando ao trabalho. Virou sua cabeça para a direita, e viu os homens debaixo dos capacetes, viu as paredes de pedra cinza e úmida, mas se limitou à rítmica bateção de pedras. Um trabalho onde um homem como Montenegro tinha todo o tempo do mundo para sonhar e imaginar a vida fora da sua, as dos homens que moravam nestes prédios cinzas e brancos espalhados pelas cidades, até aqueles que moravam nas longínquas montanhas geladas, aquelas que viu muitos estudiosos se referirem como "Cordilheira dos Andes". Para ele, mau importava nome disso, nome daquilo, eram terras para nenhum homem, e estes quebradores de regra procuravam, de suas maneiras, suas próprias formas de viver. Este tempo para sonhar era o único que tinha, afinal, como as olheiras debaixo de seus olhos sugeriam, as noites eram longas e tortuosas para Montenegro. Se via incapaz de dormir, apenas poderia pensar em tudo que passara, pensar nos pensamentos que lhe passaram por sua cabeça, que muitos não considerariam das mais brilhantes. A estranheza de um homem, que durante o dia era um trovador, homem de bem que muitos tinham orgulho de chamar de camarada, e pelas noites, se via congelado na cama, sua mulher ao lado dormindo e ele próprio, absorvido pelos próprios olhos queimando e perfurando seu copo, tal estranheza dava nos nervos de Fernandes, um mineiro que culpava o próprio Diabo por tais estranhezas da vida. Montenegro não sabia exatamente no que acreditar, sabia apenas, que durante a noite, se metamorfoseava em pedra, qualidade que muitos já deram a ele, desconhecendo claro, deste fenômeno que lhe ataca nas noites frias Catarinenses. Sentia-se inclusive, naquela velha história do homem que era forçado a carregar uma imensa pedra para o topo de uma colina, mas chegando ao topo, tal pedra rola de volta, e o homem voltava e o repetiria até o fim dos tempos, mas ele, se via como a pedra em si, sendo tomado por esta coisa que muitos se referiam como "Insônia", imaginava-se, mineiro como era, rolando para cima e para baixo, vendo a tolice e tristeza do homem, sem poder dizer uma palavra. Mantinha estes sentimentos só para si, por mais que gostasse de prosear com os outros, guardava as dores e lamentações para si mesmo, não achava que mereciam ouvir de suas tragédias quando muitos ficam sem um mísero pedaço do pão que Jesus partiu na Última Ceia, o único paciente o suficiente era Fernandes, mas por este, Montenegro já ouvira lamentações infinitas e vira aquele bom homem em seus piores momentos, tomava orgulho disso. Desviava sua mente divagadora, mas não parecia poder escapar de tantas infelicidades, ainda lamentava de sua forma, o homem que morrera de um ataque do coração, sem direito a últimas palavras. Apenas meros grunhidos e uivos de agonia marcavam seus últimos momentos. Na sua cabeça, Montenegro fazia o trabalho de um padre nessa situação, pensava no bom homem que morrera, mas o fazia em silêncio. Mesmo que todos os trinta e poucos mineiros ainda estivessem abalados com isso, eles faziam o que podiam para esquecer esta tragédia. Cantarolavam, assoviavam e contavam histórias sobre dias melhores.

O suor escorria pelo rosto de Montenegro, pingos de cansaço e frustração. Era como em um fogão-a-lenha dentro daquele grosso casaco, do tipo em que seu pai preparava um carreteiro meio queimado para seus jantares solitários. Lembrava-se disso ao olhar para o braço direito, a bandana vermelha com o desenho da cabeça de um cavalo em branco, a última lembrança de seu pai. Mas era necessário usar o casaco, afinal, o inverno Catarinense não perdoava ninguém. Congelaria se tirasse o casaco, e derreteria se continuasse usando ele, "Como cheguei nessa merda?" Perguntava-se rindo da ironia. Se fosse apenas o casaco grosso, rude e barato, estaria tudo bem, mas a luz forte dos lampiões aquecia a fornalha. Estes lampiões, pendurados por correntes e deixados em cima de bancos, eram seus pequenos anjos da guarda, fiéis e zelosos. Os mineiros tinham a sombra refletida nas paredes da caverna, Platão iria dar gargalhadas destes infelizes. A luz alaranjada e cintilante era a única que tinham naquele estreito corredor onde trabalhavam. Ainda haviam centenas de quilômetros desta mina que perfurava a caverna, um complexo gigante que tornava esta grande montanha, praticamente oca. O patrão dizia que era o ciclo da vida, um faz, o outro aproveita, o trabalho que Deus fez, mas todos sabiam que não era verdade, até mesmo os que não eram bem entendidos e até os que nunca foram para a escola podiam ver isso. Os ângulos em que as minas perfuravam a montanha e criavam um conveniente espaço para explorar os desafortunados, simplesmente não podia ser obra de seja lá o que criou este mundo. Era obra de homem, "Homem da cidade grande, do patrão e dos outros engravatados" lembrava Montenegro.

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