4- Memórias Enfermas

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Anéis de ferro enferrujados eram rasgados pelas picaretas, que há muito se chocavam vigorosamente contra a cerca. Os homens, banhados pela luz alaranjada do lampião, tinham o suor a cair por suas testas, liberando o fedor ácido de mineiros sem banho. Não reclamavam do odor, sabiam que teriam de se acostumar com ele. Santos e Heckmann tinham suas faltas de fôlego começarem por pesar em seus corações, tomavam constantes intervalos onde deixavam os outros trabalhar um bocadinho. Enquanto Montenegro segurava seu lampião como um guia, os últimos olhos naquele lugar, mesmo que a ideia de ficar às escuras lhe parecesse surreal, ela já começava a plantar sementinhas de paranoia em sua cabeça. O fim do óleo seria o fim de seu guia, da luz e de seus olhos. Deixados para tatear as rochas frias e escorregar na terra barrenta, só a esperar alguém com vista, que tivesse o coração para botar um fim no seu sofrimento. Ele bufava de ódio a si mesmo, de sua cabeça em especial, seria uma travessia bem mais tranquila se não fosse por suas tentativas de pensar em tudo e racionalizar o terror em que se encontravam, mas também seria mais fácil se render ao vácuo de pensamentos vazios. Tirou seus olhos do chão e os levou aos mineiros que trabalhavam, impaciente pelo término de seu trabalho. "Então faz tu mesmo" julgava-se ele mesmo, com a mão livre limpando a sujeira de sua testa seca. Era verdade afinal, ficava ali, apenas segurando o lampião, ao ouvir os outros fazerem seus deveres. Mas eles haviam insistido que guardasse forças, e que não se incomodariam em fazer aquele pequeno trabalhinho.

Santos largou um breve grunhido de alegria, todos viraram para ele se perguntando o que pensava o velho. Ele levou sua mão até a cerca e puxou para cima um pedaço torto da cerca enferrujada. Deixando um sorriso vir ao rosto dos mineiros, já que ele formava um pequenino espaço para passarem até o outro lado, apesar de se perguntarem o que vinha depois. Seus pés não se tardaram a mover, quase em um tumulto, um engarrafamento no viaduto. Com estes cinco mineiros presentes, todos com a mesma vontade aparente de se mover, deveriam escolher que ia primeiro. E a escolha óbvia foi Montenegro, não houveram palavras ou discussões, apenas abriram caminho para o homem do lampião e o deixaram passar. O resto, entretanto, se viu pego em um empurra-empurra, resultado de nada mais do que a falta de paciência e razão, criando uma desordem desnecessária. Que poderia ser rapidamente resolvida por um breve pensamento racional, ou uma briga de quebrar dentes. Ao se lembrar disso, Montenegro passou os dedos pelas feridas em sua testa, elas começavam os primeiros passos da cicatrização, seu andar estava ainda desajeitado, mas não parecia tanto com uma aberração deformada como antes, começara o gradual processo de cura. Eventualmente, todos passaram pela cerca enferrujada, se pondo em uma fila horizontal desajeitada que pensava no que fazer. Heckmann estava fixo no velho elevador, franziu as sobrancelhas e perguntou:

- Não estás pensando em pegar o elevador?

O homem do lampião o olhou com o deboche no rosto.

- Claro! - Falava ele - Mas sabes, estou me sentindo meio barrigudo ultimamente... - Ele pegou na sua pele flácida do estômago - Então acho que vou descer de a pé mesmo.

Risadas cansadas vieram dos mineiros, ainda tinham de acordar direito e tirar suas cabeças da vontade de dormir de novo. Fernandes se virou para Montenegro, e com um sorriso de dentes, perguntou:

- Não, sério, por onde vamos?

Montenegro passou a mão no seu nariz, "Deus que me perdoe, pegar uma gripe danada por aqui, ninguém merece" pensou ele. Olhou para Fernandes e falou sobre a descida:

- Está vendo aquela porta? - Apontou seu lampião até ela, na direita - Pois é.

Confiou que todos pudessem entender o que ele queria dizer, então guiou-os até a porta, pelos passos de mineiros que calçavam botas pesadas. De frente a madeira marrom e sem vida, Ramos colocou a mão nas tábuas velhas e deu um empurrão de leve. A porta antiga se abriu com um rangido perfurante e agudo, a fresta que se abria deixava a luz alaranjada começar a iluminar um pouco do túnel. Ramos engoliu um seco, matutando talvez, sobre como descreveria isso em seu romance, e abriu o resto da porta. A luz já tomava a escuridão de assalto, o laranja substituía o negro, laranja que se dava por revelar o interior da descida que fariam. O túnel virava levemente para à esquerda e levava aos cantos mais profundos da mina, lá, Montenegro estava confiante de que uma saída se encontrava. Nesse ataque de confiança, Montenegro deu passos pesados e decididos na mistura de pedrinhas cinzas e terra seca áspera que era o chão, sendo seguido pelos outros mineiros. Olhavam os arredores curiosos e com medo, afinal, o instintivo medo e curiosidade pelo desconhecido permeava todos, até mesmo estes pobres homens que se viam forçados a enfrenta-lo. Conforme desciam pelo túnel, viam pequenas portas e aberturas, que sem dúvida levariam a outros pontos da mina, pequenos pontos barricados com madeira e até barris ficavam aos seus arredores. Mas, sabiam que caminho seguir, já que pelos seus pés, um velho trilho se estendia, meio encoberto pela terra e com toda certeza carregava as memórias de outros homens que já passaram por ali. A terra encobria boa parte dos trilhos, oscilando no quanto escondia, em alguns pontos era claro como a luz laranja, e em outros, um desavisado poderia dizer que quem falava de trilho estava a brincar com ele. Montenegro sabia um pouco da história dessa mina em particular, dos homens que trabalhavam aqui, apenas o básico, mas sabia que utilizavam estes trilhos para transportar os carrinhos de mineração, que levava o carvão dos homens que os acharam, até os patrões que com ele iriam lucrar. E ainda por cima, sabia de fato que este trilho o levaria até as antigas áreas de mineração, e essa, era exatamente sua intenção, já que de lá poderia se guiar facilmente até a saída. Se é que podia confiar nas histórias que o patrão contava sobre essa tal saída, de que fora feita para velhas emergências, mas nunca usada por alguma razão "Ficava lá... Por perto das estâncias onde os velhos homens trabalhavam. Quando fecharam esse lugar ficou bem mais barato, daí começamos a minerar o que sobrava daqueles raparigas" Lembrava do patrão dizer. Ele podia apenas esperar que o tempo tivesse sido gentil à saída, que estivesse intacta e pronta para ser usada. Ainda duvidava de algumas histórias, especialmente da parte de "nunca ter sido usada", Montenegro sabia que isso podia ser apenas cinismo seu, mas não acreditava piamente que os mineiros simplesmente pararam de trabalhar lá e que tudo era flores, sabia algo estranho rodeava estes causos e que alguma coisa foi deixada de fora das tagarelices do patrão. Também, uma parte sua questionava onde fora para sua inocência? Por que não podia simplesmente crer que simplesmente fecharam a mina e deu? Para que se incomodar com esses pensamentos desconfiados? Olhou para a bandana vermelha, com o desenho de um cavalo em branco no seu braço. Ah, mas sua inocência se perdera há muito tempo, há muitos anos doídos. E Montenegro se lembrava do dia, do dia em que o mundo virou de cabeça para baixo e a inocência se tornou apenas um sinônimo de "burro" para ele.

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