–Mais dez minutos e vamos sair desta lata de sardinha.
Harry sorri, guardando seu iPod.
–Dormiu melhor?
– É, até que dormi — passo a mão na nuca. — Obrigado pela sugestão involuntária.
–Disponha sempre. Denver? — pergunta me olhando.
–É daqui a quase sete horas.
Harry balança a cabeça, parecendo tão insatisfeito quanto eu com a duração da viagem, o ônibus encosta na rodoviária de Garden City, tem três vezes mais gente que na ultima rodoviária e isso me preocupa. Harry desaparece num canto passando por baixo da placa que indica as lanchonetes e volta com um Mountain Dew e um saco de batata frita.
Ele senta do meu lado e abre a lata de refrigerante.
– Que foi? — pergunta, olhando para mim.
Não havia percebido que estava o encarando tomar aquele refrigerante com uma expressão enojada.
– Nada, só acho isso um nojo. —desvio o olhar.
Eu o ouço rir baixinho, abrindo o saco de batata frita.
– Pelo jeito você acha um monte de coisa um nojo.
– Quando foi a ultima vez que comeu algo menos... Causador de infartos?
– Eu como o que estiver a fim de comer. Você é o que? Um daqueles vegetarianozinhos metidos que reclamam que o fast-food tá fazendo o país todo engordar?
– Não sou desses, mas acho que vegetarianozinhos metidos podem ter razão.
Ele mastiga algumas batatas, toma mais um gole de refrigerante e sorri pra mim.
– Não é fast-food que fazem as pessoas engordarem. — ele argumenta sem parar de mastigar. — As pessoas fazem suas próprias escolhas, as redes de fast-food só tiram proveito da burrice dos americanos que decidem comer aquilo.
– Você ta se chamando de burro. — sorrio.
– Acho que sim, quando minha escolha está limitada a máquinas de refrigerantes e lanchonetes pé-sujo.
– Ah tá — reviro os olhos — até parece que você ia escolher comer algo melhor se tivesse escolha, fala sério.
Harry ri alto.
– Com certeza eu iria escolher algo melhor. Prefiro sempre um filé de cinquenta dólares do que hambúrguer dormido ou uma cerveja em vez de um refri. — balanço a cabeça, mas não consigo parar de sorrir totalmente. — O que você come afinal? Saladas e tofu?
–Eca, de jeito nenhum comeria tofu e saladas é só um modismo para quem quer emagrecer. Sinceramente?
– Sim, claro, desembucha.
Ele está me olhando como se eu fosse algo engraçado ou bonitinho que precisa ser estudado.
– Gosto de macarrão enlatado com almôndegas e sushi.
– O que? Tudo isso misturado? — agora ele que parece levemente enojado.
– Ah não, —balanço a cabeça — isso também seria um nojo, aliás. Eu não sou fã de carne, mas comeria um filé se alguém me oferecesse.
– ah então você está me pedindo para te convidar pra jantar?
Arregalo os olhos.
– Não! — coro — Eu só tava dizendo que...
Ele ri mais uma vez.
– Eu sei, eu sei, não se preocupe. Eu jamais pensaria em te convidar para um jantar.
Eu arregalo os olhos mais ainda e abro a bocam sentindo meu rosto pegar fogo.
– Caramba, garoto. — fala rindo um pouco — você é não muito rápido para sacar as coisas, não é?
Eu franzo a testa, ele também, mas de certa forma ele continua sorrindo.
– Vamos fazer o seguinte — diz parando um pouco mais sério — se a gente tiver sorte de encontrar, numa dessas paradas, um restaurante que consiga preparar um filé nos quinze minutos que temos antes do ônibus deixou a gente para trás, eu vou te convidar e enquanto a gente come o filé no ônibus, você decide se será em encontro ou não.
– Bom, posso te dizer desde já que não vai ser.
– Então não vai. Pra mim tá bom assim, mas então o que vai ser se não for um encontro?
– Como assim? Vai ser um lance de amizade, eu acho. Sabe, duas pessoas fazendo uma refeição juntas.
– Então agora somos amigos?
– Claro, acho que somos amigos, pelo menos até Wyoming.
Ele estica o braço e me oferece sua mãe, relutante eu aperto. Seu aperto é delicado, mas firme, seu sorriso genuíno e gentil.
– Amigos até Wyoming, então. — ele balança minha mão uma vez e solta.
Não sei ao certo o que acabo de fazer, mas sinto que não é algo de que eu vá me arrepender mais tarde. Posso imaginar mil pessoas diferentes que Harry poderia ser e seriam pior. Ele é inofensivo e admito que é interessante conversar com ele, não é uma velhinha querendo contar historias de quando tinha minha idade ou um homem mais velho e iludido que ainda se imagina tão gatão quanto era aos dezessete e jura que eu o vejo da mesma forma. Não, Harry é proverbial meio-termo virtuoso, a escolha de cachinhos dourados. Pelos menos é da minha faixa etária e não é nenhum pouco feio. Harry Styles passou longe da fila de feiura. Na verdade, ele entrou varias vezes na fila da beleza e acho que essa é a única coisa que me incomoda nessa história toda.
Você sabe muito bem que não importa tanto o que esteja acontecendo na sua vida, que você perdeu quanto você odeia o mundo ou quão inadequado seja se sentir atraído por alguém antes que a fase recuperação chegue a uma etapa aceitável. Você continua humano e assim que vê uma pessoa atraente não tem como não notar. É nossa natureza.
Por outro lado agir motivado por isso é outra história e é aí que eu ponho meu limite.
Isso não vai acontecer, haja o que houver.
Mas sim, o fato de ele ser um gato me incomoda porque significa simplesmente que vou ter que me esforçar muito mais para garantir que nada que eu diga ou faça passe a impressão errada. Caras gatos sabem que são gatos. Sabem e pronto, até aqueles que não ficam se mostrando. E também é da natureza humana dos caras gatos achar automaticamente que um sorriso inocente ou uma conversa que continua por três minutos sem silêncio constrangedor são sinais de atração.
Portanto, essa amizade vai me dar muito trabalho. Eu quero ser legal, mas não legal demais. Quero rir quando ele disser algo engraçado, mas não quero que ele pense que é uma risada to tão parado na tua.
É, isso vai me dar trabalho mesmo, talvez uma velhinha fosse melhor, no fim das contas. Harry e eu esperamos uma hora até que o próximo ônibus encosta e como era de se imaginar, parece que não vamos ter duas poltronas livres para cada um, pelo tamanho da fila de embarque já estou vendo que talvez não tenha lugar para sentar para todos. Dilema. Saco. Harry e eu somos amigos de repente, mas não consigo pedir para que ele sente comigo. Portanto, quando a fila avança ele vem logo atrás de mim, estou torcendo para que ele decida se sentar do meu lado por conta própria.
Vou para o meio do ônibus e acho duas poltronas vazias, me sento na janela. Ele senta ao meu lado e eu fico secretamente aliviado.
– Já que chegou primeiro — diz colocando a mala no chão — vou te deixar sentar na janelinha.
A viagem não parece tão longa e tortuosa, agora que tenho alguém pra conversar. Só levou uma hora de conversa constante sobre tudo desde bandas de rock clássico favoritas dele até o motivo de gostar de Pink e o quanto acho que as musicas dela são melhores do que Boston ou Foreigner, que para mim soam iguais. Discutimos isso em vinte minutos dessa uma hora — ele é muito teimoso, mas ele diz o mesmo pra mim, então acho que a culpa é dos dois. Eu conto quem é "Z", mas não falo dos detalhes sanguinolentos do meu relacionamento com ele.
Quando anoitece percebo que não ouve nem um minuto de silencio constrangedor entre nós dois desde que subimos no ônibus e ele decidiu sentar ao meu lado.
– Quanto tempo vai ficar em Idaho?
– Uns dias.
– E ai vai voltar de ônibus? — o rosto de Harry perdeu todo o bom humor.
– Vou.
O ouço suspirar.
– Não é da minha conta, mas você não deveria viajar sozinho assim.
– Bom, eu meio preciso.
– Por quê? Não to te paquerando nem nada, mas é perigoso para um garoto jovem e diabolicamente lindo como você viajar sozinho pelas bibocas de rodoviárias dos EUA.
– Você não ta me paquerando, mas me chama de "diabolicamente lindo" e praticamente usa a velha cantada do "o que uma pessoa como você faz nu, lugar assim" na mesma frase.
Ele parece um pouco ofendido.
– To falando sério, Louis. — ele insiste e meu sorriso brincalhão se dissolve.
– Não se preocupe. Confio na minha capacidade de gritar bem alto se for atacado.
Ele balança a cabeça e respira fundo, cedendo aos poucos às minhas tentativas de aliviar o clima.
– Então, me fala do seu pai.
O quase sorriso desaparece do rosto de Harry e ele desvia o olhar. Não foi por acaso que toquei nesse assunto, não sei, mas tenho a estranha sensação de que ele está escondendo alguma coisa. No Kansas, quando ele falou rapidamente que seu pai estava morrendo, exteriormente isso não pareceu afetá-lo, mas se está indo tão longe, de ônibus, ainda por cima, para ver o pai antes que morra, então deve amá-lo. Sinto muito, mas você nunca fica indiferente quando alguém que você ama morre ou está morrendo.
– Ele é um bom homem. — Harry diz, ainda olhando pra frente.
Ele, então, olha pra mim sorrindo, mas não é um sorriso que tenta esconder alguma dor, é um sorriso motivado por uma boa lembrança.
– Em vez de me levar pra um jogo de beisebol, meu pai me levou pra ver uma luta de boxe.
– É mesmo? E como foi?
Ele volta a olhar pra frente, porém a ternura continua em seu rosto.
– Papai queria que fôssemos lutadores. Não lutadores de boxe ou de verdade, embora não se incomodasse se a gente fosse. Mas to dizendo lutadores no geral, na vida. Metaforicamente.
Balanço a cabeça pra mostrar que tava entendendo.
– Fiquei sentado perto do ringue, com oito anos de idade, hipnotizado por aqueles homens batendo um no outro e o tempo todo ouvindo meu pai falando por cima do barulho do publico, ao meu lado: "Eles não tem medo de nada, filho. E todos os movimentos deles são calculados, cada movimento que fazem pode funcionar ou não. Mas eles aprendem alguma coisa a cada movimento, a cada decisão.".
Harry me olha nos olhos, com uma expressão neutra.
– Ele me contou que um lutador de verdade nunca chora, nunca deixa o peso de um golpe derrubá-lo. A não ser aquele golpe final, o inevitável, mas até nessa hora, eles caem como homens.
Também não estou mais sorrindo. Não sei exatamente o que se passa pela cabeça de Harry agora, mas compartilhamos o mesmo humor sóbrio. Quero perguntar se ele está bem, porque é obvio que ele não está, porem o momento não parece adequado. É esquisito, porque não o conheço o suficiente para ficar cavoucando em suas emoções.
Não digo nada.
– Você deve me achar um babaca.
– Não, por que você diz isso?
Ele recua imediatamente e minimiza a seriedade, deixando aquele sorriso devastador aflorar à superfície novamente.
– Vou ver o velho antes que ele bata as botas, porque é isso que a gente faz, certo? É um costume, como dizer "saúde" quando alguém espirra, ou perguntar pra alguém como foi seu fim de semana quando na verdade você ta pouco se fodendo.
Cacete, de onde está vindo tudo isso?
– É preciso viver no presente — ele continua e eu fico discretamente atordoado. — Não acha? — sua cabeça pende pro lado e ele me olha novamente.
– Viver o presente — repito, mas ao mesmo tempo pensando na minha própria crença de amar no presente. — Acho que você tem razão.
Endireito as costas na poltrona e levanto a cabeça um pouco para examiná-lo mais de perto. É como se de repente eu tivesse um enorme desejo de saber tudo sobre a crença dele. Saber tudo sobre ele.
– O que viver no presente significa pra você? — pergunto.
Noto que uma das suas sobrancelhas treme por um segundo e ele muda sua expressão, surpreso com a seriedade da minha pergunta ou o nível do meu interesse. Com as duas coisas, talvez.
– Apenas que ficar se prendendo e planejando é uma besteira, se você ficar se prendendo no passado, não consegue seguir em frente. Se passa muito tempo planejando o futuro, você se empurra pra trás ou fica estagnado no mesmo lugar a vida toda. — seus olhos encontram os meus — Viva o momento, aqui, onde tudo está certo, vá com calma e limite suas más lembranças e você chegará ao seu destino, seja qual for, muito mais rápido e com menos acidentes de percurso.
O silencio entre nós é apenas o de duas mentes pensando no que ele acabou de dizer. Me pergunto se os pensamentos dele são iguais aos meus. Também me pergunto, mais do que quero admitir, por que tantos pensamentos dele já me fazem sentir que estou me olhando no espelho quando olho pra ele.
O ônibus corre pesadamente pela estrada, sempre barulhento, raramente com suavidade. Mas depois de tanto tempo, é fácil esquecer o quanto a viagem de ônibus é desagradável, comparada com o luxo de um carro. E quando você pensa mais nos aspectos positivos do que nos negativos, é fácil esquecer qualquer coisa negativa nela. Tem um cara do meu lado com lindos olhos verdes, um lindo rosto esculpido e uma linda maneira de pensar. Não existe viagem ruim quando você está na companhia de uma coisa linda.
Eu não deveria estar aqui...
Harry
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Entre o Agora e o Nunca
Fiksi Remaja"Sempre achei que depressão era algo supervalorizado, pelo modo como as pessoas usam essa palavra a toda hora (como aquele palavrão que começa com A e que eu nunca mais vou dizer pra algum enquanto eu viver). Depressão significava pra mim três palav...