Capitulo 1 - Lucas

97 9 0
                                    

            Não havia se passado nem uma hora desde que embarquei no ônibus e essa era a terceira vez que minha mãe me ligava.

Na primeira ligação ela disse que estava preocupada com a suspensão do ônibus, disse que viu como o ônibus se jogava todo para o lado direito quando partiu comigo dentro. Ela havia me ligado de dentro do carro. Disse que procurou alguém na gerência da companhia de ônibus pra poder solicitar o retorno imediato á rodoviária por medidas de segurança, mas não encontrou ninguém com quem gritar —Graças a deus. — Foi difícil, mas convenci ela de que estava tudo bem e desliguei antes dela ter tempo pra contra atacar.

Trinta minutos depois ela ligou perguntando se eu estava bem. Respirei fundo e disse que estava tudo certo. Senti o silêncio do outro lado da linha, ela iria começar a chorar, então eu teria que fazer alguma coisa antes dela surtar, porque é sempre assim: quando o silêncio pré-choro é acionado, tenho que fazer de tudo pra conter antes que o tsunami de lágrimas e sentimentos maternos sejam expostos pra fora. Então digo que me sentei do lado esquerdo do ônibus, porque achei que seria o que ela quisesse que eu fizesse. Ela fez um barulho abafado do outro lado da linha, o que me aliviou, ela estava sorrindo abafadamente, eu me permiti bufar um sorriso também, tsunami de sentimentos maternos contido com sucesso.

E então agora a terceira ligação:

— Oi de novo mãe.

— Oi querido, então estou só ligando porque olhei pra porta do banheiro agora que cheguei em casa e notei que é branca, então eu associei a imagem da porta á dentes brancos e então lembrei que talvez você possa ter esquecido sua escova de dente, então eu fui ver na prateleira do banheiro e você esqueceu sua escova aqui, acho que se você não descer na Capital dá tempo de voltar, pegar a escova aqui em casa e ainda embarcar de novo no ônibus que saí amanha as nove. Estou te esperando.

E lá vamos nós de novo.

— Eu sabia que estava esquecendo alguma coisa. — Disse tentando disfarçar o tom sarcástico da voz. — Mas mãe, escuta, não acho que seja necessário eu voltar pra casa, posso comprar uma escova nova assim que chegar na Capital.

Ouço o soluçar.

Por favor, não chora, não chora, não chora.

— Mãe — Digo antes que ela comece — Olha só, a gente já conversou sobre isso lembra? Você me prometeu que daria meu espaço. Prometeu que reprimiria esse temperamento de mãe coruja. Você me prometeu.

Mais soluços.

— Mãe, eu te amo, você sabe disso. A senhora me criou, me educou, me preparou para o mundo. Não é justo consigo mesma ficar se preocupando assim, certo?

— Eu...Sei...Meu....Filho — soluços — é que é tão difícil te ver ...partindo assim — soluços e lagrimas — meu coração de mãe não aguenta, e se você ficar doente, e se precisar se internar, e se for algo grave, como é que vou cuidar de você estando em outra cidade?

— Mãe, vai dar tudo certo, eu prometo, não vou ficar doente, vou te ligar todos os dias á noite. Mãe, eu vou ficar bem.

— Vai me ligar todas as noites mesmo?

— Vou sim, eu prometo.

Ela provavelmente ainda continuaria, mas felizmente o celular ficou sem sinal.

Eu não a culpo por ser super protetora assim, entenda, sou filho único, concebido — de acordo com minha mãe — por um milagre, já que ela teve muitas dificuldades para engravidar.

Desde que consigo me lembrar, nunca havia ficado mais de um dia longe de casa, nunca participei de nenhuma excursão escolar que durasse mais de 24 horas e definitivamente nunca peguei um ônibus sozinho. Era compreensível a preocupação dela.

Quando recebi o resultado do vestibular e descobri que havia sido aceito na Academia Prodígio e que iria estudar na capital, que fica a três horas da minha cidade natal, quase surtei. Lembro-me de pular insanamente no meu quarto em frente ao computador por mais de dez minutos.

A Academia Preparatória Prodígio é uma renomada instituição aonde alunos recém-formados no segundo grau que não sabem que vocação profissional seguir se matriculam para ter um ano experimentando todas as áreas profissionais possíveis. Pioneira nessa ideia de Colégio Vocacional a Academia se tornou um grande sonho para todos os adolescentes do Estado. Muitos veem a Academia Prodígio como a salvação para a total falta de experiência no mercado de trabalho. Eu a vejo como minha carta de alforria.

Eu havia feito a inscrição para o vestibular em novembro do ano passado em segredo, pois se meus pais — principalmente a minha mãe — soubessem que eu ao menos cogitava a ideia de estudar em outro lugar que não fosse à universidade da cidade, eu sabia que ela teria um SMC , que basicamente é um Surto Mãe Coruja, então preferi manter em segredo meus planos pós-ensino médio e adiar ao máximo o SMC.

Peguei carona com um amigo até a capital para fazer a prova e obviamente menti sobre a real intenção daquela viagem. — Eu não suportava a ideia de mentir pra eles, não mereciam isso, são excelentes em seus cargos como Mãe e Pai, mas eu não podia mais ficar naquela cidade, eu não conseguia mais aguentar aquela superproteção toda, eu precisava de espaço, eu precisava ter um tempo para ser eu mesmo e não o herdeiro da Família Andrade, eu precisava descobrir quem eu era.

A minha família, era dona da maior lavoura de soja do estado. Agricultura era o que nos movia. Plantar, colher e exportar soja , era o que todos esperavam de mim, o herdeiro de tudo isso.

Contar para os meus pais que eu havia passado pra cursar um ano na Academia Prodígio foi de longe a coisa mais difícil que eu já havia feito na minha vida. Nada podia me preparar para o maior SMC da história dos SMS's.

Meu pai demorou pra acreditar que eu iria perder um ano da minha vida em uma academia preparatória sendo que eu podia já estrar direto pra Faculdade Particular da cidade e dentro de alguns anos já estaria trabalhando na safra de soja. Mas no fim acabou aceitando minha escolha depois que eu disse que precisava desse tempo.

Minha mãe chorou por horas, depois dias, semanas. Era mais que difícil pra ela aceitar que eu não estaria debaixo das asas protetoras dela nos próximos meses. Ela fechou a cara pra mim e pro meu pai, disse que eu estava louco por querer ir pra um lugar aonde não conhecia ninguém, disse que meu pai estava louco por concordar com aquilo e disse que nunca iria me deixar ir. Mas eu não estava pedindo permissão.

Eu ainda não conseguia acreditar que havia conseguido, que eu estava indo morar na Capital. Não posso dizer que isso é um sonho que se tornou realidade, porque não é a verdade. Nunca havia pensado na Capital como um sonho mas sim como uma esperança. Esperança de poder ser eu mesmo em um lugar aonde eu poderia ser quem eu quiser.

Liberdade.

Essa é a palavra que define a sensação que sinto agora olhando a paisagem passar pela janela do ônibus. As árvores secas e a vegetação rasteira dos longos campos que beiram a rodovia revelam o cerrado lá fora.

O sol está se pondo atrás das montanhas ao sul, e provavelmente nascendo em algum lugar — penso.

Inclino um pouco a poltrona pra trás, deito a cabeça confortavelmente sobre o ombro e fecho os olhos. O ônibus segue descendo a serra rumo á capital.


Não Estou Preparado Para o AgoraOnde histórias criam vida. Descubra agora