– É um dia de cão?
Ah, que ótimo.
Viro-me para Isabelle, minha colega de trabalho. Por mais que eu tente disfarçar, acabo sendo ridiculamente transparente; mas mesmo que não seja, ela me entende como ninguém. É quase como se dividíssemos a mesma vida.
– Adivinhei, não?
– Acertou. – suspirei mais alto do que o que gostaria – Não sei nem porque ainda tento fingir quando estou perto de você.
– Tenho essa mania de ler as pessoas mesmo quando não quero. Alguns acham que é intromissão, eu vejo como um dom. Modéstia à parte.
Esboço um sorriso simples. O humor de Isabelle é simples, genuíno e bem intencionado. Ela respeita meus limites assim como eu respeito os dela e assim temos convivido desde então. Talvez estejamos cientes que trabalhar em uma cafeteria minúscula em um aeroporto com ninguém mais além que nós mesmas seja uma tarefa difícil naturalmente, então optamos por colaborar para deixar o ambiente pacífico.
Quando cheguei, Isabelle já trabalhava aqui há dois, três meses. Lembro do sorriso que ela abriu quando ouviu "Esta é sua nova colega de trabalho" no meu primeiro dia. Nos demos bem de cara, e com o tempo fomos deixando de apenas ser colegas de trabalho para virarmos amigas; quase como se nos conhecêssemos há décadas.
Isabelle havia largado a faculdade de Arquitetura, a de Jornalismo e tentava fugir da de Direito como o Diabo foge da cruz.
– É difícil - ela desabafou um dia, com a voz embargada - quando seus pais colocam expectativas irreais sobre você e chocam-se de saber que você não é um marionete e tem suas próprias ideias e desejos. Eles sabem que não quero esse curso miserável, e que já fui triste demais para querer viver triste por sabe-se lá quanto tempo em troca de dinheiro. Eu não me importo de viver com pouco se isso me deixar feliz. Na verdade, o básico me basta, mas eles pensam demais. Querem esbanjar o que não tem, pensam muito pro pouco que fazem, e então querem descontar em mim. Eu sinto que não consigo aguentar muito disso.
E depois desse dia nunca mais tivemos uma conversa tão íntima.
Ela era meio... complicada em questão de abertura. Isabelle nunca fora do tipo que chega conversando sobre demais camadas de sua vida ou salpicando um diálogo com fatos aleatórios de seu passado, muito menos sendo tão profunda ao falar de seus sentimentos. Imagino muito sobre sua vida e o que a tenha feito acabar assim, mas deixo o bom senso ser mais alto e ignoro minha natureza curiosa nestes instantes.
A diferença principal entre eu e Isabelle é que ela sabe perfeitamente como segurar conversas; o assunto com ela nunca tem fim. Silenciosamente, acredito que talvez ela tenha passado por algo que tenha a feito ser tão reclusa disso e, para compensar, ela mergulhara em todos e quaisquer sítios existentes para saber sempre o que soltar em um diálogo. As vezes imagino que ela poderia ter conversas perfeitas tanto com minha vó quanto a diretora da minha escola quando eu ainda cursava o maternal. Enquanto eu vergonhosamente acabo me tendo como assunto principal em certas conversas, o que, para me justificar de antemão, pode se dar ao fato de que tive por muito tempo pais negligentes que me negaram assistência emocional e profissional, então acabo guardando muito para mim e soltando para os outros sem perceber. Isabelle jamais faria algo deste nível, e confesso que gostaria de ser mais como ela.
– Se você prometer me cobrir por alguns minutos, deixa eu te mimar? Prometo que é para o bem, não se preocupe.
Sempre que ela falava que queria me "mimar" era para ir em outro quiosque/restaurante/lanchonete por perto para pegar algo que me animasse um pouco. Já recebi alguns doces quanto estive triste, coxinhas e pastéis quando disse que estava com vontade e doses surpresa de vodka pura sextas à noite e segundas de manhã. As últimas ainda me são traumáticas, principalmente nas manhãs, e ela faz isso como forma de "começarmos bem a semana" (ou seja: eu tentando disfarçar a visível embriaguez uma vez que sou ridiculamente fraca para com bebidas e ela rindo de mim o dia todo, já que todas as santas vezes que isso acontece é, como disse, "surpresa" e sempre me faz parecer que são doses mais fortes e mais eficientes do que quando bebo por livre e espontânea vontade) e "espantar o mau humor", o que funciona para ela. Ainda espero que funcione para mim.
Assinto com a cabeça e a vejo sair discretamente, pendurando o avental na porta. O ar de dentro do aeroporto é calmo e agradável; não é frio ou quente (zero graus pra mim tá perfeito), é apenas... agradável. é bom de se estar presente, apesar de trazer à tona todo o sono que há em mim.
– Vida - ela entra na barraca em tempo recorde, já vestida com o avental -, trouxe um pouco de café pra ti. 'Tá meio quente, então toma cuidado pra não se queimar. Chegou algum cliente?
– Não sei o que seria da minha vida sem você. - pego o pequeno copo de isopor das mãos dela - Não, nem uma alma viva flutuando pelo ambiente, acreditas? Achei estranho até.
– Tem uma mocinha sentada ali. Vez ou outra te deu umas olhadas... ela é fofa, olha.
Ave Maria.
Ela me mostrou uma menina poucos metros do balcão. O rosto dela, por algum motivo, não me era estranho. Não queria ficar encarado, mas me segurei demais pra não olhar até lembrar de onde vi.
– Tu já viu ela em algum lugar?
– Olha, eu e minha visão meio perturbada achamos que já vimos ela por aqui. Sei que tem uma menina que tem fama de vir por aqui todos os dias, e ninguém sabe o motivo. Será que é ela?
Fama de vir todos os dias ao aeroporto? E eu não saber disso... seria no mínimo estranho se eu não fosse tão desligada.
– Não faço ideia. pior que nem sabia disso, acredita? Ela tem cara de ser mais velha do que aparenta. eu não daria mais de 20.
– Mas olha tu, já julgando os outros na aparência e nem dez da manhã é.
– Agora deu! Deixa da tua implicância. 'Tô curiosa só, posso? Você que me instigou, deixe eu lhe lembrar disso.
– 'Tá bom, 'tá bom. - ela ergueu as mãos em defesa. Por dois segundos, achei que pudesse tê-la ofendido de graça com minha grosseria repentina, mas pelas risadas que se seguiram nos segundos seguintes, aliviei-me ao notar que não - Mas eu falei porque ela te deu umas olhadas como se te conhecesse de algum lugar. Ou como se quisesse conhecer, viu? Só digo isso. - e foi saindo em câmera lenta.
– Sei... tá certo. Deixa pra escrever tua história outra hora, tá? É horário de trabalho, a gente tem que pelo menos fingir profissionalismo.
– Só é difícil quando não tem pra quem fingir.
E ela não mentiu. Estranhamente, não tinha ninguém no momento. Talvez todo mundo tenha chegado cedo demais nos seus voos e por isso não precisaram parar pra se alimentar. Talvez só não estejam com fome. Ou talvez preferiram qualquer outra opção que não seja justamente o estabelecimento que eu trabalho.
A mocinha parecia meio atônita, precisei olhar. Ela apoiava uma mão no rosto, fazendo sua bochecha elevar um pouco e a deixando um pouco mais fofa. A outra mão folheava uma espécie de caderninho. Tinha um grafite no meio dos dedos que seguravam as folhas, também.
– Será que é artista? - Isabelle veio sussurrar no pé do meu ouvido, me fazendo desligar do curto transe e meu coração acelerar de susto
– Todo mundo é um pouco artista, né? Mas do jeito que ela tá, talvez seja. Escreve, ou desenha. Ou talvez faça projeto. Pode ser uma futura arquiteta e teja aqui pra estudar uns cantos da construção.
– Mulher, viajasse na parte da arquitetura. Ia estudar todo santo dia o mesmo canto desse aeroporto? - eu não pude deixar de rir com o tom de desespero. O completo horror que Isabelle ainda tinha com qualquer coisa relacionado à Arquitetura não é tão cômico por ser trágico - Com tanto canto melhor por aqui pra se ver, até os prédios de burguês de Boa Viagem quebram o galho nessas horas.
– Por que tu não pergunta, então? A gente vai ficar aqui feito duas desocupadas o dia todo falando da menina que tava olhando pra mim pra matar o tempo?
– Quer que eu pergunte? você sabe que eu vou...
– Não. – falei, cerrando os dentes – Tu é doida, mas sabe teus limites. Lembre dos teus limites, lembre d...
E o nosso besteirol foi logo cortado por uma figura que se aproximava do balcão.
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aeroporto ✈️
Romancetodos os dias, na mesma hora na mesma cadeira da mesma mesa ela se senta. e espera.