19 de Novembro 19h57

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Jasmine

"Posso chorar, arruinando a minha maquiagem
Lavando todas as coisas que você tomou
E eu não ligo se não estou bonita Garotas crescidas choram
Quando seus corações estão partidos"

Sia, Big Girls Cry

xxx

Era a última casa da rua 23. Não havia nada de encantador quanto as casas de famílias comuns. Mas, lá, cresceu uma flor de tamanho esplendor e formosura que o seio de nenhuma família comum poderia acobertar. Na verdade, ninguém em sã consciência tinha coragem de aproximar-se tanto da casa. São poucos aqueles os que acreditam, ainda, que no maior dos lodos pode nascer a mais linda princesa flor.

Era a última casa da rua 23. Em meio aos matagais e as pilhas de lixo, o cheiro da flor se alastrava em forma de canção de ninar para as ratazanas. Era a última casa da rua 23. Sem poste de luz, sem luar, sem vagalumes ou Lucíolas. Uma flor crescia à sombra do desprezo do mundo e dos cegos mundanos, imergia da lama e erguia suas pétalas com a graciosidade de uma flor pura.

Era a última casa da rua 23 que amparava as batidas descompassadas da paz inexistente de uma flor. Ó, flor. Se tão puras, és, teus pensamentos pecaminosos, por outro lado, aos meus olhos, ferem o sentido da palavra "vida".

"Estou pronta, estou pronta". Repetia consigo como um mantra invencível ou, até mesmo, inesquecível e... Inocente. "Estou pronta". A voz demasiadamente rouca suspendia os sentimentos mais ignóbeis — no momento —
como compaixão e alegria. O ar pesava sobre seus ombros, esmagando as últimas esperanças de manter-se viva. E, o vazio, ah, o vazio... O vazio vinha como um vento de inverno cobrindo, primeiramente, o solado de seus pés descalços, subindo, logo em seguida, para as panturrilhas e congelando. Congelando as esperanças, congelando os sentidos, os medos e as lágrimas outrora impenetráveis. Até chegar ao maior dos vazios ou ao maior dos buracos, se desejas chamar o coração assim, onde a fagulha das lembranças felizes e afetuosas era definitivamente abafada pelo bafo da realidade.

Não estava pronta. Essa era uma realidade convicta. Os olhos marejados e avermelhados fechavam-se com força, tal como uma criança após ter um pesadelo. O vazio, ou seja lá o nome para isso, rasgava-a em duas de dentro para fora. Abriu a boca várias vezes buscando um pouco de ar para acalmar a ansiedade, contudo, nenhum átomo entrava em seu corpo. Nenhum átomo chegava aos alvéolos. Nenhuma gota de sobriedade lhe sobrou nos segundos seguintes os quais sua mente vagou, sem fôlego, desesperada pela saída mais próxima.

Era fraca. É verdade, eu não minto. Era fraca demais para engolir um pouquinho do líquido. Era fraca e ponto final. Não é tão simples assim, afinal. O ato era em si muito arcaico, por mais que o caminho, o não-saber, um tal desconhecido ou o escuro do fundo do túnel a assombrava, aquela era a única saída encontrada. O que haveria do outro lado, se encontraria ou não seu pai ou sua mãe... Não, não, mamãe está no céu e você irá para o inferno, pequeno demoniozinho.

A casa de tijolos pequenos e vermelhos ficava em um bairro afastado do centro da cidade. De fato, era grande demais e a fazia sentir-se uma bonequinha dentro dela. Contudo, a casa era sua única amiga com "A" bem maiúsculo. As paredes eram as melhores psicólogas e o chão o mais próximo de um abraço que ela conseguiria ter no fim do dia. Não importava o que acontecesse lá fora, sempre poderia voltar para seu lar e conversar com as paredes enquanto deitava-se no chão frio. Às vezes, adormecia ali, outras, caía derrotada pelas lágrimas no sofá surrado e sujo. Pela manhã, abria um olho por vez, procurando não se deparar com o possível pesadelo que a atormentara a madrugada toda e levantava cada músculo por vez, certificando-se de que estava viva e ainda não desaprendera a respirar.

E vivia tal como andava. Uma perna por vez, um dia por vez. Tão mecânico quanto um computador, tão fria quanta a pele de um cadáver. Tão quieta quanto os pensamentos de uma estátua. Tão observadora quanto a torre Eiffel. Tão mendiga por sorrisos quanto a tristeza.

O imóvel era pobremente mobiliado. Podíamos contar nos dedos a parede sem infiltração ou as cerâmicas em estado pleno. A cozinha se resumia a uma pia com o encanamento mal feito e um fogão de duas bocas o qual apoiava-se em um botijão de gás quase vazio. Duas panelas, dois garfos, duas facas, duas colheres e dois pratos. Na sala, o sofá verde-musgo ostentava o posto de estrela ao lado de uma pequena televisão 14 polegadas e um armário no canto de tudo com algumas roupas. E dois quartos. Um banheiro. Duas toalhas. O resto não importa muito, o que deveras importa é: ela já não tinha nada. Encontrava-se na sala.

Nem teria, pensou como se lesse meus pensamentos. Não deveria ter, não deveria.

— NÃO DEVERIA! NÃO DEVERIA! NÃO DEVERIA! SOU IDIOTA, IDIOTA, IDIOTA — as unhas alcançaram o antebraço branquelo e fincaram-se fortemente até descer rasgando o tecido e chegando ao pulso, o qual foi lavado por uma gota de sangue.

Caiu em pranto e os joelhos chocaram-se contra o piso. O "tec" ressoou pelos quatro cantos do universo e ela chorava. Chorava tentando expulsar a dor do peito. Chorava procurando paz. Chorava ainda se perguntando o motivo de o pai lhe entregar aquela bomba que era viver sozinha. Chorava culpando-se. Chorava, chorava, chorava, como a mais conturbada tempestade. Chorava por não poder simplesmente morrer e esquecer os medos, os deveres, os dedos indicadores que apontavam-lhe incessantemente, o pai, a mãe e ela. Era flor, mas era triste. Era flor, mas infeliz. Bonita, porém mal regada. Pequena, todavia com deveres grandes. Era uma menina, por mais que já estivesse crescida. Tinha maioridade perante à lei, mas perante à vida, não passava de um broto de flor, nascido em meio à lama, sem adubo, sem jardineiro, sem amor.

O ar, em algum momento, faltou aos seus pulmões, provocando a terrível sensação de queimação em seu peito. Estava definitivamente sem rumo. Não enxergava-se vivendo o dia posterior, muito menos o próximo mês. Para Jasmine, o fim do mundo era naqueles instantes: sentada no chão frio, sozinha e embargada em tantos choros, em tantos passados que ela havia perdido o fio das miçangas. No mundo do zero ou cem, não há espaços para cinqüentas ou quarentas. Supostamente, a sua condição aos dezoito anos diz muito sobre seu futuro e pelo o que a sociedade me ensinou a ler, o futuro da Jasmine ficaria para sempre travado na estava zero.

Quando o ar finalmente regularizou-se com as células da morena, a resposta surgiu como estalos espontâneos em sua mente. Era a última casa da rua 23 a qual abrigava um pássaro que tinha voz. Que tinha voz. Mas nunca cantara e agora cantaria.

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