Rónán acordou assustado de um pesadelo horrível.
Passou a mão em seus olhos mas para seu infortúnio o pesadelo era a realidade. Depois de dois dias ao lado da carne em constante putrefação, finalmente se permitiu chorar.
Desde que a chuva começou, Abele não se recordava de um dia com tantos trovões quanto aquele. Tudo o que ela ansiava era por apenas um dia de paz. Acabara de ser interrompida por duas trovejadas. Um trovão que a fez iniciar essa linha de pensamento e outro assim que concluiu o raciocínio. Esperou por um breve momento e assim que constatou o fim dos trovões, tornou a escrever.
Parte da névoa na frente de Rónán começou a dissipar-se lentamente.
"Vejo que o cheiro desse corpo mascarou sua presença.
Inteligente, devo admitir. Agora me diga o que almejas."
Dessa vez, lágrimas eram o que impediam Rónán de enxergar direito. Enxugou os olhos e espantou-se com a presença diante de si.
"Pelos deuses... Vossa Majestade existe!"
"Vieste aqui apenas para comprovar o lógico?"
Siobhan respondeu com raiva.
— Senhorita, pelo amor do nosso Senhor. — Consolata invadiu o quarto sem se importar com os bons modos.
Abele respirou bem fundo, enchendo seus pulmões até o limite e os esvaziou com calma.
— O que foi dessa vez, Consolata?
— Não encontro vosso pai, senhorita. As cozinheiras também desapareceram. Por favor, senhorita. Algo muito obscuro está acontecendo.
— Tenho certeza que há uma boa explicação para isso. Não há motivos para se preocupar. Por favor, quero muito terminar esse texto — disse assinalando para que saísse.
— Senhori...
— Basta, Consolata. Por favor, deixe-me só!
Abele encarou a criada. Consolata estava imóvel e com os olhos arregalados, sabia que não deveria desobedecer sua senhorita, mas o medo não a permitia raciocinar.
— Consolata! — Abele gritou em voz de ordem.
No mesmo momento, um relâmpago invadiu o quarto fazendo com que a ordem da menina recebesse um ar de fúria. A criada encolheu-se e começou a fechar a porta para criar um obstáculo entre as duas e outro estrondo surgiu dos céus assim que a porta se fechou.
Abele virou-se para o papiro sem mesmo refletir sobre a raiva que tomara conta de si segundos atrás.
Rónán conseguia notar silhuetas aproximando-se à sua volta.
"Sejas piedosa, por favor!"
Ele percebia que os olhos e mãos de Siobhan começavam a brilhar em uma cor púrpura. Quanto mais brilhavam, mais as silhuetas aparentavam ser de formas humanas.
"Tenho um pedido, por favor, o meu irmão!"
Soluçando, ele mergulhou a cabeça no peito do defunto.
As mãos e os olhos de Siobhan deixaram de brilhar.
"Enuncie vosso desejo mas esteja ciente de vossa dívida."
Siobhan já não tinha raiva mas ainda era notável a autoridade em sua voz.
Consolata abriu a porta do quarto com força.
— Abele, escute-me, não há mais ninguém nessa casa além de nós duas.
— Chega, Consolata — respondeu sem se preocupar em olhar para trás. — Eu não quero mais ouvir tuas insanidades. Saia do meu quarto já!
E assim, o último trovão daquele temporal caiu dos céus.
A menina escutou o barulho de algo acertando o chão atrás de si.
Consolata não estava mais ali. No chão, apenas o castiçal que a criada carregava.
Abele levantou-se, calmamente, e foi até o objeto para apagar a vela. Não se preocupou em procurar a ama. Apenas voltou para a mesa e terminou seu conto.
"Eu suplico! Tragas meu irmão de volta, ele não merecia ter partido!"
Siobhan caminhou até o rapaz sentado.
Ela se abaixou, passou a mão pelos cabelos de Rónán e beijou sua testa.
"Atenderei vosso desejo, meu lacaio."
E assim Siobhan torceu o pescoço de Rónán com uma força descomunal.
Agora haviam dois corpos no chão, porém apenas um morto.
A necromante assistiu enquanto o cérebro de Rónán perdia a capacidade de controlar os pulmões e coração. Ela conseguia sentir a vida esvaindo-se aos poucos.
Agora eram os dois sem vida.
As mãos de Siobhan tornaram a brilhar.
Ela repousou as mãos em ambos os corpos.
Os olhos dos dois mortos começaram a brilhar da mesma cor púrpura proveniente de Siobhan.
Ela se levantou e assistiu serenamente enquanto Rónán e seu irmão despertavam.
"Ajoelhem perante vossa rainha."
E assim Abele Basilio finalmente terminava seu conto com um notável sorriso em seu rosto. Nunca havia se empolgado tanto de ler uma história que ela mesmo escrevera. Antes de aceitar que o conto estava terminado, decidiu reler do início ao fim. Dessa vez sem as repetidas interrupções.
Ela não percebeu, mas a chuva havia finalmente findado. Deixou de notar também que a porta do seu quarto estava aberta. Nenhum barulho habitava mais aquele castelo. A moça ainda não sabia o preço que havia pago pela história, mas logo descobriria que o silêncio que sempre almejara era muito mais torturante que a agitação da vida que costumava ter à sua volta.
FIM.
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Taciturno
Mystère / ThrillerUm temporal sem fim toma conta da província de Messina. A jovem Abele, uma escritora aspirante, decide aproveitar-se da chuva como fonte de inspiração para escrever sem ser distraída por sua agitada família. O que parecia ser mais uma habitual noi...