Capítulo III

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Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marquesa de Alegros.


Seu pai era criado do marquês; a mãe era criada de quarto; quase uma amiga da


senhora marquesa. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das Selvas, com


bárbaras imagens coloridas que tinha escrito na primeira página branca: À minha


muito estimada criada Joana Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido, -


Marquesa de Alegros. Possuía também um dagtterreótipo de sua mãe: era uma


mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma


cor ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãe, que fora sempre


tão sã, sucumbiu, daí a um ano, a uma tísica de laringe. Amaro completara então


seis anos. Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em


Coimbra, e um tio, merceeiro abastado do bairro da Estrela. Mas a senhora


marquesa ganhara amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adoção


tácita: e começou, com grandes escrúpulos, a vigiar a sua educação.


A marquesa de Alegros ficara viúva aos quarenta e três anos, e passava a


maior parte do ano retirada na sua quinta de Carcavelos. Era uma pessoa passiva,


de bondade indolente, com capela em casa, um respeito devoto pelos padres de S.


Luís, sempre preocupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no


receio do céu e nas preocupações da Moda, eram beatas e faziam o chique falando


com igual fervor da humildade cristã e do último figurino de Bruxelas. Um jornalista


de então dissera delas: - Pensam todos os dias na toalete com que hão-de entrar


no Paraíso.


No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocráticas


onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade


eram então ocupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da


freguesia, bordavam frontais para os altares da igreja. De Maio a Outubro estavam


inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e


doces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e


cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de Verão.
A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na


vida eclesiástica. A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido:


era já afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado ao pé das


mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas. A senhora marquesa


não o quis mandar ao colégio porque receava a impiedade dos tempos, e as


camaradagens imorais. O capelão da casa ensinava- lhe o latim, e a filha mais

O crime do padre AmaroOnde histórias criam vida. Descubra agora