Capítulo V

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Ela, em cima, não dormia também. Sobre a cômoda, dentro de uma bacia, a


lamparina extinguia-se, com um mau cheiro de morrão de azeite; brancuras de saias


caídas no chão destacavam; e os olhos do gato, que não sossegava, reluziam pela


escuridão do quarto com uma claridade fosfórica e verde.


Na casa vizinha, uma criança chorava sem cessar. Amélia sentia a mãe


embalar-lhe o berço, cantar-lhe baixo:


Dorme, dorme, meu menino,


Que a tua mãe foi à fonte!


Era a pobre Catarina engomadeira, que o tenente Sousa deixara com um filho


no berço, e grávida de outro - para ir casar a Extremoz! Tão bonita era, tão loura -


e mirrada agora, tão chupada!


Dorme, dorme, meu menino,


Que a tua mãe foi à fonte!


Como ela conhecia aquela cantiga! Quando tinha sete anos sua mãe dizia-a,


nas longas noites de Inverno, ao irmãozinho que morrera!
Lembrava-se bem! Moravam então noutra casa, ao pé da estrada de Lisboa;


à janela do seu quarto havia um limoeiro e a mãe punha, na sua ramagem luzidia, os


cueiros do Joãozinho, a secarem ao sol. Não conhecera o papá. Fora militar,


morrera novo; e a mãe ainda suspirava ao falar da sua bela figura com o uniforme de


cavalaria. Aos oito anos ela foi para a mestra. Como se lembrava! A mestra era uma


velhita roliça e branca, que fora tacho das freiras de Santa Joana de Aveiro; com os


seus óculos redondos, junto à janela, empurrando a agulha, morria-se por contar


histórias do convento: as perrices da escrivã, sempre a escabichar os dentes


furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata, com uma pronúncia minhota; a


mestra de cantochão, admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos


Távoras; e a legenda de uma freira que morrera de amor, e cuja alma ainda em


certas noites percorria os corredores, soltando gemidos dolorosos e clamando: -


Augusto! Augusto!


Amélia ouvia aquelas histórias, encantada. Gostava então tanto de festas de


igreja e da convivência dos santos, que desejava ser uma "freirinha, muito bonita,


com um veuzinho muito branco". A mamãe era muito visitada por padres. O chantre


Carvalhosa, um homem velho e robusto, que soprava de asma ao subir a escada e


tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa. Amélia chamava-


lhe padrinho. Quando ela voltava da mestra, à tarde, encontrava-o sempre a


palestrar com a mãe, na sala, de batina desabotoada, deixando ver o longo colete


de veludo preto com raminhos bordados a amarelo. O senhor chantre perguntava-


lhe pelas lições e fazia-a dizer a tabuada.

O crime do padre AmaroOnde histórias criam vida. Descubra agora