De mãos e pés mais ásperos que a rocha em estado bruto, essa mulher se fez. Os cabelos da piaçava dura e o corpo forrado com os trapos que ela mesma ajuntou na indumentária. Tão insignificante quando veio à cidadezinha, que a chamavam por tudo menos o nome. Em lugar deste, usavam Maltrapilha, cuja vítima reagia mais inocuamente do que com repulsa.
Noutra dessas intentadas de trabalhar, a azarenta batia de porta em porta a procurar no que auxiliar. Mas, em troca de algo, seus serviços vinha a prestar. Um salário de rainha, uma bonificação, como ela chamava no seu linguajar provinciano. Para comprar o frango toda sexta, o pão aos domingos e pagar a pensão. Chegou à cidadezinha com seus poucos pertences, como um pente de ossos, um cobertor de tricô e o vestidinho azul cobalto preso ao corpanzil de lutadora.
Mas nem sempre foi assim de mendigar trabalho à porta dos outros ou viver de prestar serviço qualquer. Lembra-se bem e muito do único lar que teve, o mesmo por onde entrou pequena e saiu moça. Lá, além de ensino e alimento, também teve as épocas de solidão. E o que a pele lhe servia como razão de menosprezo por parte dos outros, tornava-a cada dia mais presente.
Eis que após várias tentativas em vão, na casa da colina ao sul da cidade ela foi botar os pés. E, contrariando o que os conhecidos a tinham advertido, escalou o terreno que levava à tal construção. Felizmente, tinha os pés feito barras de chumbo, o que lhe permitiu cruzar facilmente aquela terra estranha.
Passou por um jardim repleto de árvores, cujos galhos mal ostentavam ninhos de corvos, e permaneciam as esculturas vivas que todos os dias eram podadas. Sentia-se mais um animal naquele zoológico vegetariano. Finalmente chegou à porta, onde se fez avisar com o vozeirão da boca carnuda. Não demorou, uma serviçal fez questão de lhe enxotar na mesma hora. Teria sido um lapso anunciar-se de tal forma? Mal havia campainha na tal fortificação. Casa velha, daquelas que botam medo em todo mundo por rangerem suas tábuas e se fecharem suas portas sem mãos para empurrar. Eis então que, no dia seguinte, retornou. Escalou o penhasco, atravessou o jardim das delícias e à porta se prostrou, mais rente que pau seco. Desta vez, estava disposta a prestar todo tipo de auxílio, sem um mínimo retorno requerido.
À sua segunda petição, a mesma serviçal permitiu uma rápida entrada. Quão estarrecida a mulher ficou ao deparar-se com tantos luxos, nem a outra podia contar. Lembrou da faraônica escadaria, do mais lustroso mármore coberto por veludo felpudo que chega a afundar até os calos. Corrimões sinuosos de madeira trabalhada apresentavam-se ao hóspede por meio de duas estatuetas de marfim. A da direita triste, a da esquerda raivosa. Curvas tão acirradas que convidaram-na a subir as escadarias. Tão perfeitamente delineadas e que enfeitiçavam ao mais cego dos homens. Duas cobras de marfim, que conduziam a um hall superior, o qual, por sua vez, levava a outras duas câmaras.
Porém, tinha sido ela advertida que se ousasse subir tal escadaria, seriam poucos os motivos para uma provável demissão. Seu serviço porquanto limitar-se-ia a varrer os jardins e colher as folhas secas na parte externa da casa. Assim, nunca poderia sequer observar as pratarias por sobre a lareira espelhada ou espanar os candelabros de cristal.
Para repouso, lhe foi oferecido o quartinho dos fundos, onde poderia deixar seus pertences e vestir o uniforme de trabalho. Lá também passaria inúmeras noites na cama de estrado, que rangia menos do que sua coluna enferrujada. Cômico era perceber o quanto a vassoura que lhe tinha sido dada parecia em muito com o cabelo espalmado. Poucos evitaram comentar.
Ao passar dos dias nada podia fazer a não ser recolher folhas secas e varrer o piso de azulejos quebrados do jardim. Tão poucos prazeres lhe restavam naquela vidinha de trabalhos forçados que entreter-se-ia com tudo que lhe cruzava a vista. Era ímpeto para cantar, cultivar novas rosas, podar as plantas. Mais parecia uma semeadora de tão clorofilante mente que tinha. Seu hábito de a tudo dar novo toque logo irritou a todos na casa: ver a nova aparência dada por ela ao jardim, à medida que progredia, era motivo de inveja a todos os outros criados. Daí resultou a alcunha farrapenta, a qual ela detestava.
Conversar com as flores que desabrochavam, brincar com as tapearias que rodeavam a casa e tudo o mais, tornou-se um hábito. Parecia incorporar a criança que há muito aquela casa não via. Podia pressentir também que toda a beleza e luxo que lá via, era oca e sem harmonia. Que tinha de ser preenchida com muito do cuidado e dedicação, com os verdadeiros sentimentos que ninguém mais parecia ter.
Ouvia gritos também, todos os dias. Gritos de desespero, que emanavam de pessoas diferentes. Ora gritinho estridente, ora miudinho, de quem não conseguia erguer os próprios ossos. Mas, o que podia fazer a farrapenta, simples varredora de jardins?
A curiosidade tratava de lhe consumir até o último caroço da alma. Dava umas olhadelas aqui e outras acolá, mas nada saberia sem poder aquela casa adentrar. Podia subir em muro que fosse ou arrastar caixas de papelotes. Todas as janelas lhe eram altas demais já que a tal da casa rangedora também era muito imponente nas estruturas.
Tinha de haver maneira qualquer para entrar. Entretanto, ela preferiu os guineis a bisbilhotar. E foi assim que fez. Caridosa e paulatinamente, embelezou ao jardim como a própria alma que havia guardado para si até aquele momento. Os segundos restantes, reservou para polir as latarias, os leões de aço, as vigas de ferro na garagem e no depósito. Finalmente, ainda com disposição, limpou os vidros da fachada até chegar ao tapete da porta. Deste, lavou e desenroscou os fios.
Qualquer indivíduo que visse a casa for fora não a reconheceria mais como antes. Quanto aos serviçais, mal sabiam onde estavam. A Maltrapilha tinha simplesmente consertado desde tábuas rangedoras até a velha cerca de cedrinho. E o primeiro serviçal que, em sua criatividade, reparou, tratou de avisar à governanta.
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Sila - A Verdade por Trás dos Reflexos (Concluído)
RomanceGire os ponteiros sem sincronia. Vire os mapas de ponta-cabeça e embrenhe-se pelo deserto, dentre lobos famintos e árvores retorcidas. Ao encontrar a cidade de Irinos, pergunte pelo casarão no alto da colina. Se não receber uma chuva de pedras, no m...