Introdução

9 1 0
                                    

"... E uma lágrima de fogo desce pela minha face:

De que nada sou para o que fui criada/E como um número ficarei

Até que minha vida passe." (Adalgisa Nery)

Os estudos semióticos buscam descortinar as camadas de hábitos e discursos que revestem nossas experiências e vivências cotidianas, principalmente, capturadas através da lente dos sentidos e do filtro subjetivo das emoções. O tema, aqui proposto, diz respeito a real existência humana, que é uma existência dos sentidos, uma existência semiótica. O Ensaio "Mulher Galatéia – a canção do corpo em Adalgisa Nery" nasceu dos meus estudos semióticos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre - Brasil.

O mito de Galatéia será o fio condutor das idéias aqui propostas. E a mulher Galatéia que presentifico, por sua beleza e força feminina e, também, por sua contemporaneidade e importância artística no cenário histórico-cultural nacional, é a escritora e jornalista Adalgisa Nery.

Sabemos que o corpo expressa-se movido pela corporeidade construída ao longo da vida. A corporeidade do homo ludens passa inevitavelmente pela memória de suas células que se organizam entorno da constituição do sentido das coisas do mundo. A Semiótica nos auxilia a pensar o sentido da experiência vivida, organiza as idéias entorno de um pensamento amplo, mas claro. E como bem diz Adalgisa Nery em seu poema "Pensamentos que reúnem um tema" : "Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões /E nos poetas que correm indefinidamente/Em busca da lucidez dos que possam atingir/A festa dos sentidos nas simples emoções."

A atuante e combativa Adalgisa Nery era uma mulher bela e inteligente, que foi sujeito-protagonista de muitas paixões. A sua "Poesia" é como um texto biográfico, livre e puro de toda a sua vida que sempre foi assim: repleta de inquietações, coragem, lucidez e arte.

A produção literária de Adalgisa é um retrato liso e transparente da mulher, da escritora e da cidadã. Sem dúvida, a poesia nos possibilita uma aproximação e uma escuta sensível da festa dos sentidos que atingem interminavelmente o corpo e alma do homem e da mulher em seus vários ciclos de existência humana.

O presente estudo pretende, não apenas, a pesquisa dos fatos cronológicos da vida da escritora, mas sim, a potência poética de sua existência, em contraponto, ao contexto sócio- artístico-cultural de nosso tempo, em âmbito local e universal.

A corporeidade passa pela sensibilização dos sentidos, que muitas vezes anestesiamos. A anestesia ocorre por motivos vários, muitas vezes fora de nosso controle. O anestesiamento de fora ocorre, por exemplo, quando a mulher - Galatéia envelhece e é jogada em um asilo para, involuntariamente, esperar a morte. O anestesiamento de dentro para fora ocorre quando a mulher – Galatéia, criada para não ser menos que perfeita, ainda jovem e pressionada pela cultura hostil, se entrega a todo tipo de excessos e agressões a sua natureza feminina.

Será abordado o conceito de Semiótica na perspectiva particular de quem lê a obra de arte. O que é ser sujeito neste universo semiótico? Qual é a relação entre corporeidade e construção de conhecimento no tempo e no espaço? O que significa educar o olhar? E, onde entra os demais sentidos na apreensão do mundo e na sua expressão cultural?

Além do estudo semiótico da pura presença poética de Adalgina Nery, também, pretendo transitar pela esclarecedora obra do filósofo Gaston Bachelard: "A Poética do Espaço" , onde o autor discorre sobre a poesia dos espaços numa metáfora entre a casa e o corpo: palavra e pensamento são condutores de imaginação, sonho, poesia, espaço e multiplicidade de imagens. A habitação é um cosmo ampliado de permanências e esquecimentos. O corpo- carne é a nossa primeira habitação. Então, sabemos o que mesmo de nossos corpos? Será que no Século XXI já dominamos este corpo físico que habitamos?

Num segundo momento, vou discorrer sobre a alfabetização do corpo, inspirado em Frijot Capra, numa perspectiva de educação para a arte, segundo o conceito de contágio de Eric Landowski, ou seja, de uma semiótica da experiência, ou da pura presença. A presença mesmo na ausência. A obra de arte, seja qual for sua área de expressão, nos provoca, nos fratura o "agora" e na maior parte das vezes evoca memórias enterradas no porão ou no sótão das experiências passadas.

Os nossos artistas são nossos familiares inventados, tornam-se nossos entes queridos, amigos de longa ou curta data. Eles ajudam a nos forjar de dentro para fora. Eles nos pertencem através do corpo das palavras e sopram em nossa presença no mundo: vida, carne e espírito. São os nossos heróis contemporâneos. Quem não conhece ou ouviu falar deles?

Cito, aqui, alguns que compõem os nossos sonhos mais íntimos: Willian Shakeaspere, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Rabindranath Tagore, Edgar Allan Poe, Gertrude Stein, Virgínia Woolf, Florbela Espanca, Pablo Neruda, Miguel de Cervantes, Anaïs Nin, Andersen, Júlio Verne, Jean de La Fontaine, Marguerite Duras , Rimbaud , Simone de Beauvoir , Stendhal, Victor Hugo, Luigi Pirandello, Marina Colasanti, Adalgisa Nery, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Lya Luft, Lygia Fagundes Telles, José de Alencar, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Josué Guimarães, Machado de Assis, Mário Quintana, Moacyr Scliar, Nelson Rodrigues, Patrícia Galvão, Vinicius de Moraes, Ruy Barbosa e Rubem Alves.

Os escritores acima citados é uma parte significativa daqueles que nos ajudam a construir grande parte de nossa história. Contudo é uma ínfima parte de toda grandeza de personalidades artísticas e intelectuais que teceram e tecem, em todos os tempos, a maior riqueza humana: a Arte e a Cultura.

Com certeza é delicado traduzir e sintetizar a admiração em nomes próprios, mas os escritores, filósofos, poetas, cronistas, atores, músicos, dançarinos, artistas visuais e circenses são inseparáveis de nossas memórias pessoais, sensoriais, coletivas e artísticas. Eles são os construtores de uma segunda natureza, que podemos denominar de a natureza do sensível. É como diz, Marly Meira, em seu livro Filosofia da Criação, "a sensibilidade, além disso, é um gesto e uma forma aos quais algumas imagens comparecem, aderem, duram, ou se vão, desfeitas pelo tempo."

Certamente, ao consultarmos nossa herança cultural entramos na teia das infinitas redes de conexões que vão gerar respostas (im) possíveis que tornam o corpo vivo de imagens e pensamentos que se grudam à mente e requerem reconhecimento. E, isso, é fundamental para o campo do sensível e para a leitura desta simbologia que adere ao nosso cotidiano em formas, cores, formas, gestos e sentidos.

E, por fim, procurarei abordar a paixão pelo saber como vocação e que muitas vezes se revela no encontro de quem ensina e de quem aprende de quem ouve e de quem fala e de quem atua e de quem assiste e de quem escreve e de quem lê. E, discorreremos o significado das coisas que capturamos na vivência e na experiência de um toque, de um perfume, de um batuque, de um sabor amargo- doce ou da apreciação de uma obra de arte "in illo tempore" e, também, na presença ou ausência de uma personalidade artística, para além do corpo físico.

Enfim, através da Semiótica do Contágio e do Mito de Galatéia, traçaremos um mapa da existência memorial de Adalgisa Nery, investigando a poesia da sua presença e a corporeidade contagiante da artista entre nós:  Adalgisa Nery, que foi e é uma Mulher Galatéia. 

Mulher Galatéia- a canção do corpo em Adalgisa Nery -Where stories live. Discover now