Capítulo 1 - Adalgisa - Bela, Valente e Tragica

24 2 0
                                    

"Acho que todos nós a amávamos, mesmo não sabendo que se tratava de amor. Amávamos nela a obra de arte viva." (Carlos Drummond de Andrade)


A biografia de Adalgisa Nery, segundo arquivos da Fundação Casa Ruy Barbosa, conta-nos que ela nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 29 de outubro de 1905.

O seu nome de batismo era Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira, carioca de nascimento e portuguesa de descendência, era filha de Rosa Noel Cancela, natural de Portugal. O seu pai era o advogado Gualter José Ferreira, natural do Mato Grosso, funcionário público da Prefeitura do Rio de Janeiro, RJ.

Ela ficou órfã de mãe aos oito anos de idade, estudando como interna em um colégio de freiras. Adalgisa fez o Primário, sua única educação formal, neste internato e mais tarde foi expulsa por suas atitudes "subversivas" ao defender os direitos das órfãs, que eram discriminadas naquela instituição.

Segundo, Valdir Alvarenga ela viveu "uma infância solitária e sem brinquedos, só lhe restou o poder da imaginação, por isso, a descoberta do eco, numa casa abandonada, foi um de seus primeiros deslumbramentos." Quando o seu pai casou-se novamente com a espanhola Aurélia, a sua vida ficou muito difícil, pois as duas não se relacionavam bem.

Aos 16 anos, em 1922, fugiu de casa para casar-se com Ismael Nery, pintor modernista e poeta paraense, que era de família rica e morava ao lado de sua casa no Rio de Janeiro, passando a assumir o sobrenome "Nery" e a conviver com intelectuais da época, entre os quais, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Aníbal Machado e Jorge de Lima. Eles faziam reuniões e saraus literários na casa de Ismael e Adalgisa, que apenas participava como anfitriã e ouvinte. O crítico Marido Pedrosa, escreveu sobre a sua figura nestes encontros, disse: "A jovem mulher, bela como um jarro de flores, dava com sua presença, o toque de graça terrena e feminina àquelas reuniões, por vezes perdidas em especulações abstrusas."

Ela teve um casamento apaixonado e conturbado com Ismael Nery, que não acreditava muito em sua sensibilidade poética e em seu talento literário. Com o falecimento do marido em 1934, vítima de tuberculose, Adalgisa inicia a carreira literária publicando o seu primeiro trabalho em 1935, na Revista Acadêmica, onde passa a contribuir com vários periódicos. Os seus primeiros contos e crônicas foram publicados em O Jornal, Dom Casmurro e O Cruzeiro. Ela tornou-se musa de escritores como Drummond, que a chamava de "A Deusa" e Jorge de Lima, que lhe dedicou o poema, "O Nome da Musa". Deste período, destacam-se a correspondência com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, arquivados na Fundação Casa de Rui Barbosa

Em 1940 casou-se com Lourival Fontes, chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Getulio Vargas. O casal viajava muito pelo exterior e quando Lourival foi nomeado embaixador no México, Adalgisa tornou-se embaixatriz e personalidade bem quista entre os intelectuais daquele País. Tornou-se amiga da pintora Frida Khalo e foi retratada por Diego Rivera e José Orosco. Ela foi a primeira mulher a receber o prêmio "A Águia Asteca", do governo mexicano, por conferências e artigos escritos sobre a religiosa sóror Juana de La Cruz naquele país.

De volta ao Brasil, ela dedica-se a escrever e publica o seu maior sucesso, o romance autobiográfico "A Imaginária" , em 1959, onde a personagem Berenice narra o tormento que é viver ao lado do marido. Na verdade, Adalgisa narra o tempo em que viveu com sua mãe e depois até a morte de Ismael Nery. Ela descreve como que a paixão e admiração que sentia pelo marido no início do casamento foram substituídas por um sentimento de horror pela violência que ele podia assumir na vida íntima. Assim escreveu sobre Ismael: "Aquele homem tão amado por mim, a quem eu havia dado toda a frescura e beleza do meu primeiro amor, partia, desatando a vida dos sofrimentos físicos e morais... havia deixado sobre o meu corpo todos os desabamentos, todas as ruínas, todos os desesperos e todos os desencantos. Era um amontoado de misérias e desgostos difíceis de serem depurados pela minha idade".

O testemunho de uma vizinha do casal, colhido pela virtuosa biógrafa de Adalgisa Nery, Ana Arruda Callado, abre uma brecha para que possamos vislumbrar a difícil convivência da escritora com o pintor modernista Ismael Nery, que segundo consta, na época que estava acometido de tuberculose, entre outras coisas, obrigava a esposa a ingerir os restos da bebida que tomava para se fortalecer contra a doença.

A edição de "A Imaginária" foi muito procurada e em pouco tempo se esgotou. O romance foi amplamente debatido e estudado, como por exemplo, nas reflexões da professora Sabrina Karpa-Wilson, em "A escrita autobiográfica feminina no Brasil contemporâneo e o caso de Adalgisa Nery" , onde a autora revela a representação feminina pela escrita auto-referencial, destacando a discussão da pouca autoridade da figura feminina na literatura. O estudo de Karpa-Wilson reflete a perda de importância do sujeito narrativo, culminando na desintegração de seu corpo que passa a existir, apenas, através de um texto fragmentado e limítrofe. Certamente, condição associada à vida da narradora e as pressões pelas quais ela havia passado, principalmente, devido à infância pobre e de fatos tristes e posteriormente ao desgaste pelo infeliz matrimônio.

A obra de Adalgisa Nery é reconhecida como modernista, pois acima de tudo se volta para o "Eu" e ao mesmo tempo busca ampliar o espaço profissional, o respeito pessoal e autoafirmação artístico-literária. Ela, sem dúvida, reinventa a escrita feminina, num mundo, sob o signo do conservadorismo e da marginalização da mulher, marcado pelas conflitadas relações de gênero na esfera pública e privada. O seu texto permite segundo o crítico, Affonso Romano de Sant'Anna, a investigação da construção feminina na literatura brasileira moderna.

Em artigo intitulado "Adalgisa Nery – uma mulher bela e valente" , Valdir Alvarenga nos conta que alguns de seus poemas foram publicados na França com o título de "Au delà de toi" e recebeu a admiração, entre outros, do filósofo Gaston Bachelard, , que em carta ao editor, pergunta: "Em que hemisfério vive ela, como pode cantar o amor e a vida com uma lira de tantos milhares de cordas? Como sabe e pode dizer com tão magnífico ardor coisas do amor que tocaram a minha alma – eu, um velho leitor de belos poemas? Diga-lhe que amei seus versos"

Na continuidade cronológica dos fatos, Adalgisa Nery, depois de ficar casada por treze anos, separou-se de Lourival Fontes, em 1953. E a partir daí profissionalizou- se como jornalista junto a Samuel Wainer, atuando como colaboradora no jornal Última Hora, com a coluna diária "Retratos sem Retoque". O Editor do Vespertino Última Hora, Samuel Wainer, em sua autobiografia, conta que após a publicação do primeiro artigo de Adalgisa Nery, ela telefonou-lhe dizendo: "- Eu não fico em caderno de mulher. Quero o caderno dos homens, quero o primeiro caderno." E, segundo ele, a coluna foi mesmo um sucesso, pois até então as mulheres ficavam ligadas ao âmbito doméstico e conservador das matérias publicadas.

Através de sua coluna "Retratos sem Retoque", de cunho político, nacionalista e socialista, iniciou-se na política, tendo escrito diariamente no jornal Última Hora, de 1954 a 1966. Neste período seguindo a carreira política, em 1960, foi eleita para a Assembléia Constituinte, do recém-criado estado da Guanabara, posteriormente, reeleita em 1962 e 1966. Portanto, Adalgisa Nery foi eleita deputada por dois mandatos — 1962 e 1966. E, em 1969 foi cassada pela Junta Militar.

Deprimida, faleceu em um abrigo de idosos, no Rio de Janeiro, RJ, em 7 de junho de 1980.

Obras da autora

Entre suas obras estão: Eu em ti (1937- poesias); O jardim das carícias (1938); A Mulher ausente (1940 - poesias); Ar do deserto (1943); Cantos da angústia (1948- poesias); As fronteiras da quarta dimensão (1951- poesias); OG (1943 – romance de ficção); A imaginária (1959- romance autobiográfico) Neblina (1972 - romance); e Erosão (1973- poesias). 

Mulher Galatéia- a canção do corpo em Adalgisa Nery -Where stories live. Discover now