Capítulo 2 - O Mito de Pigmaleão e Galatéia

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Às vezes julgo ver nos meus olhos

A promessa de outros seres

Que eu podia ter sido,

Se a vida tivesse sido outra.

Mas dessa fabulosa descoberta

Só me vem o terror e a mágoa

De me sentir sem forma, vaga e incerta

Como a água.

(Sophia de Mello Breynner Andressen)

Pigmaleão e Galatéia

        Pigmalião era um jovem e talentoso escultor de Chipre. Contudo, não estava feliz, principalmente ao observar o comportamento das mulheres cipriotas, suas conterrâneas. Ele odiava, com todas as suas forças, os defeitos ilimitados com que a natureza ornou estas mulheres. Então, um dia decidiu que jamais se casaria. Dizia para si mesmo que sua arte lhe bastava. Não obstante, vinha trabalhando numa estátua à qual dedicava várias horas e toda a habilidade do seu gênio na representação desta figura feminina perfeita. Em ofício transformou o seu desprezo pelas mulheres em força motriz para uma criação perfeita de uma representação do sexo feminino. Pigmalião começou a se afeiçoar de maneira extremosa ao seu ato de esculpir a sua estátua, talvez tomado pelo espírito de criador criando a mais linda criatura.

Ele queria trazer a luz do mundo a mais harmoniosa forma, tão maravilhosa, que pudesse mostrar a todos os defeitos das mulheres comuns. Seja como for, trabalhou com grande dedicação durante muito tempo e o resultado foi uma linda obra de arte. Pigmalião, ao olhar sua criação, não se dava por satisfeito e não cessava de aperfeiçoá-la mais e mais. E a cada dia, ao manejar seus habilidosos instrumentos, a figura tornava-se mais bela e perfeita. Aos seus olhos não havia nada que se comparasse a sua amada obra. E,quando já não havia mais nada o que acrescentar a tanta perfeição, algo de muito perturbador aconteceu com o escultor: teve consciência de sua paixão pela obra criada e comovido passou a chamar a sua amada de Galatéia. Sem dúvida, ele apaixonara-se profundamente pela estátua da mulher desconhecida e ao mesmo tempo tão íntima. Se bem que a estátua parecia muito mais com uma Deusa e muito menos com uma estátua; diante dela, ninguém afirmaria sua materialidade, mas sim daria o testemunho de que era feita de carne, ossos e sangue humanos, congelada apenas por alguns momentos. O Jovem escultor havia alcançado a suprema perfeição: a arte de ocultar a técnica artista, deixando apenas á tona à pura arte.

        A partir daí, porém, Pigmalião tornou-se o mais feliz e o mais infeliz dos homens. Todo o dia apreciava Galatéia. Ele ora delicadamente beijava-lhe os lábios suaves, ora em febre de paixão admirava elogioso o rosto e as mãos, porém os seus beijos e carícias não eram correspondidos. E mais amaldiçoava as mulheres. Depois arrependido tomava-a nos braços como o amante mais dedicado, porém ela continuava sendo uma forma fria e inerte ao calor da vida. Enfeitava-a com trajes luxuosos, experimentando os efeitos de texturas dos mais nobres tecidos, imaginando que assim ela ficaria satisfeita: "Trazia-lhe todos os presentes que as jovens de carne e osso tanto apreciam: pequenos pássaros, flores alegres e as brilhantes lágrimas de âmbar que choram as irmãs de Faetonte, sonhando que por essas coisas ela lhe agradecia com fervoroso afeto."

        Naquela época ocorriam os festivais e ritos dedicados a Deusa Afrodite, que em Chipre era chamada de Vênus, Deusa da Arte do Amor. As festividades em honra a Vênus na ilha eram especiais, pois segundo consta foi o local de nascimento da bela Deusa, que surgiu para alegria de todos da espuma brilhante do mar. Naquele dia em especial o perfume das essências mais raras e dos incensos mais caros espalhava-se por toda parte. Nos templos em honra a Deusa era recebida a população que levava muitas oferendas as Heteras, sacerdotisas de Afrodite, que recebiam todos sorrindo, tocando instrumentos de corda e cantando hinos de amor. O povo se aglomerava no caminho e na porta principal do Templo para vê-las professsarem os Mistérios em seus etéreos adornos e sagradas vestes.

Pigmalião desesperado pelo amor não correspondido, tal qual um amante desprezado, recorreu a Vênus. E indo participar das celebrações e do rito iniciático aos mistérios de Afrodite fez um pedido a Deusa dizendo: - Que ele pudesse encontrar uma jovem igual a Galatéia ou que a sua amada recebesse uma Alma! – repetia sem parar o pedido, orando devotadamente a Deusa.

Uma paixão tão interessante assim não podia continuar por muito mais tempo ignorada por ninguém, muito menos pela Deusa do Amor, que tomada de interesse por algo tão inusitado resolveu ajudar o jovem que havia se apaixonado com tanta dedicação e paixão.

O jovem escultor sem obter resposta clara retornou para casa e para a sua amada Galatéia. E como de costume lá estava a sua musa em seu pedestal, a esperá-lo: lindamente vestida, adornada e bela. Como sempre lhe tocou os braços e os ombros, acariciou-a demoradamente, porém algo estava diferente. Seria um engano dos seus sentidos ou a Deusa havia atendido o seu pedido. Ele realmente a sentira quente ao seu toque e terrível a rigidez anterior não mais existia. Era como a cera amolecendo ao contato com o calor de Hélios. Apertou-lhe o pulso e percebeu que algo ali fremia e tomava vida, ainda fraco o tambor do coração ali pulsava. Nervoso lembrou-se de seu pedido a Vênus; tratava-se, sem dúvida, de uma benção da deusa em sua vida. Pigmalião voltando de suas divagações olhou para a face preciosa que abriu os olhos e sorriu; vendo-a sorrir e corar enquanto olhava para ele, desmaiou tal a força da emoção que lhe atingiu o coração. Ao recobrar os sentidos viu Galatéia ajoelhada ao seu lado e mais atrás o pequeno Cupido, filho de Vênus, sorrindo galhofeiro. A partir daí ele lhe ensinou tudo o que sabia, preparando-a habilidosamente para a vida social. Sem muita demora casou-se com a linda, inteligente e pura Galatéia, para o escândalo das mulheres cipriotas que não a reconheciam como semelhante. Pigmalião e Galatéia tiveram uma filha, Metarme e um filho, que chamaram de Pafo, nome que mais tarde passou a designar a cidade favorita da Deusa Afrodite.

Os cronistas da época contam que Galatéia causou muito ciúmes a Pigmalião, pois era admirada por muitos homens que sonhavam em tê-la para si. Era inteligente e habilidosa suplantando mesmo o famoso escultor em seus dias de gloriosa existência. Galatéia sobreviveu a Pigmalião, pois era de outra qualidade a matéria de que era feita. Dizem até que ela ainda vive nos dias de hoje. 

A origem do mito

A lenda mítica de Pigmalião e Galatéia é originária da ilha de Chipre, onde havia um importante Templo dedicado a Afrodite, em Palea Pafos ("a antiga Pafos"), ativo até o século IV. "Pigmalião" é a versão grega de Pumayyaton, rei fenício que viveu em Tiro, entre -820 e -774.

No mito, Pigmalião (gr. Πυγμαλίων) era um exímio escultor cipriota que, horrorizado pelo comportamento impróprio das mulheres de Chipre, optou por viver isolado e imerso em seu trabalho. Mas, como não era insensível à beleza feminina, esculpiu uma imagem feminina perfeita, em marfim, para fazer-lhe melhor companhia.

A figura esculpida era de uma beleza tão grande, trabalhada com tanta arte e vivacidade, que o escultor apaixonou-se por sua obra... Beijava-a, dava-lhe roupas e jóias, e chamava-a de Galatéia. Depois de algum tempo, tão atormentado ficou que implorou a Afrodite, durante um festival em sua honra, que lhe permitisse encontrar uma mulher igual à estátua de marfim.

A deusa ouviu a súplica e, radiante, atendeu o seu pedido. Quando Pigmalião regressou à sua casa, a estátua de marfim ganhou vida e se tornou sua esposa. Tiveram um filho, Pafos, epônimo da cidade cipriota de Pafos, e uma filha, Metarme.

Fontes do mito, iconografia e influência literária

A mais antiga fonte da lenda é uma obra de Filostéfano de Cirene (fl. séc. -III), De Cypro, uma história da ilha de Chipre. O relato mais conhecido, no entanto, é o de Ovídio (Met. 10.243-97), utilizado nesta sinopse. Clemente de Alexandria (Protr. 4.57) menciona, igualmente, o mito; na versão do Pseudo-Apolodoro (3.14.3), Pigmalião é o rei de Chipre. Note-se que o nome "Galatéia" não aparece em nenhum texto da Antiguidade; foi utilizado pela primeira vez, aparentemente, por Jean-Jacques Rousseu (1712/1778) no drama musical Pygmalion, de 1762.

Não há representações do mito em obras da Antiguidade. Muitos pintores e escultores do século XIX, no entanto, recorreram a esse tema em suas obras: Jean-Léon Gérôme, Edward Burne-Jones, Auguste Rodin, Francisco Goya, Franz von Stuck e muitos outros. O mito inspirou óperas (Jean-Philippe Rameau, 1748; Gaetano Donizetti, 1816), poemas (John Dryden, 1703; Carol Ann Duffy, 1999), peças de teatro (William Gilbert, 1871; Bernard Shaw, 1914) e ballets (Marius Petipa e Nikita Trubetskoi, 1895). Shakespeare apresentou uma versão da lenda da estátua viva na comédia Conto de Inverno (1623). O tema está presente nas novelas Frankenstein, de Mary Shelley (1818), O Homem Positrônico, de Isaac Asimov e Robert Silverberg (1993) e Galatea 2.2, de Richard Powers (1995).

Mulher Galatéia- a canção do corpo em Adalgisa Nery -Where stories live. Discover now