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Abro os olhos. O dia ainda não nasceu. Mais uma noite em sobressalto. Porque será que me sinto tão inquieta? Nem tenho motivos para isso. Não dependo de ninguém, tenho o meu espaço, adoro o meu emprego... Se tivesse aqui o meu pai, eu bem sei o que ele diria "Marta, abre o coração ao amor",parece que o estou a ouvir. Foram estas as suas últimas palavras. E ele proferiu-as com razão. Já faz muito tempo que não tenho ninguém na minha vida. Mas é tão complicado! Ou melhor, os homens são tão complicados! Uns porque não estás disponível 24 horas por dia, outros porque ganhas mais que eles, outros porque te tratam como uma boneca de porcelana e outros que partem a boneca toda... Uns contam-te a toda a sua vida, desde do momento em que tiveram sarampo, outros não te contam nada. Uns mentem, outros mentem e todos mentem! Uff, não tenho mesmo paciência...
Bem, tenho de deixar estes pensamentos de lado. Vou tomar um duche e preparar-me para mais um dia.

Check list ao espelho: cabelo ok; fato ok; sapatos ok; mala ok; cara... Nada ok, parece que fui atropelada por uma mula... Que raios! Esqueci-me da maquilhagem. Coloco rapidamente a base, uma cor nos lábios e confirmo que a cara de "atropelada" ficou escondida debaixo de tanto adorno. Agora sim, tenho tudo. Vamos lá enfrentar o Mundo.

Para variar o trânsito está congestionado. Ainda bem que saio sempre mais cedo de casa, para estas eventualidades. Vou ver o email enquanto isto não anda. Agarro no telemóvel e vejo 25 emails novos... Isto hoje promete... 5 emails com pedidos internos; 10 emails com "palha" da Soraia; 3 convites para beber um copo...; 1 muito urgente do chefe? Oh não! Outra vez para Londres? Mas que raio se passou agora? Detesto ir a Londres com o chefe. Sou obrigada a traduzir TUDO o que lhe dizem, incluindo os piropos das "Senhoras"... Sinto-me tão sozinha em Londres, pois acabo sempre por passar a noite a tratar de assuntos do trabalho enquanto o chefe passa a noite a decidir se dorme com uma ou com duas...

Chego ao escritório e a Soraia vem ter comigo assim que entro no meu gabinete. Vem com aquela cara de "é um bom dia ou um mau dia?". Gosto muito da Soraia, mas começar o dia com o rol de desenvolvimentos amorosos e não amorosos, de toda a malta do escritório, não é propriamente a minha onda. Gosto de começar o meu dia de trabalho, com uma boa chávena de café, porta do gabinete fechada e silêncio.

"Marta, já tenho os bilhetes de avião comprados, hotel reservado, aluguer de carro com motorista confirmado e deixo tudo na tua secretaria ao final do dia." - A Soraia é uma assistente pessoal muito eficiente. Lembro-me quando a entrevistei. Estava muito nervosa e não conseguia parar quieta na cadeira. Recordo-me de pensar que já tinha estado naquele lugar, quando o chefe me entrevistou para Assessora e que eu estava tão à vontade, que quem ficou intimidade foi o chefe e não eu.

Agradeço à Soraia e peço que me traga um café, quando uma floresta de cabelos loiros me entra de rompante no gabinete - "Marta, soube que vais a Londres. Já sabes o que aconteceu?" - pergunta-me a Vera com um tom irónico, mas divertido.

"Sei que vou a Londres, sei que é urgente, mas não sei o que aconteceu." - Digo-lhe com pouca vontade de entrar em pormenores. A Vera é vista como a "ovelha negra". Dorme com tudo o que se mexe, desde que seja do sexo masculino. - "Ouvi dizer que o chefe vai vender parte da empresa e que está em negociações com a malta de Londres." - Como é que ela descobre estas coisas? Nem a Soraia sabe os pormenores desta viagem. Bem, com quem será que anda a dormir nestes dias para saber disto?

"Vera, sabes que não discuto assuntos confidenciais com pessoas não envolvidas "na confidência". - Respondo-lhe, fazendo ênfase nas palavras, acompanhando-as com gestos de aspas quando as digo.

"Eu sei que não, mas também sabes que eu não deixo passar nada e que fico preocupada. Se a empresa for vendida, podemos perder o emprego." - Ela diz-me com a sua típica cara de varina.

"Vera, ninguém falou em perder empregos e se sabes de tudo o que se passa, então essa questão nem sequer se põe, como tu sabes ou como julgas saber." - As minhas feições transformam-se numa de poucos amigos. Sou salva pela Soraia, que entra no gabinete, com o meu café, dizendo que tem um assunto urgente para tratar comigo. A Vera despede-se com um "até já", dando meia volta sobre si mesma, atirando o cabelo para detrás do ombro enquanto se bamboleia como se numa passerelle.

A manhã passa depressa, uma vez que tenho vários assuntos a tratar, antes de me ausentar por dois dias em Londres. Londres, aquela cidade cinzenta, com habitantes amistosos mas onde não conheço ninguém. Onde a nostalgia se mistura avidamente com o sentimento de tristeza. Mas focar-me-ei nisso mais tarde, quando lá estiver. Agora, ainda tenho duas reuniões à tarde e estas ainda exigem muito.

Termino a ultima reunião e ao sair da sala, já tenho a Soraia à minha espera, com ar de urgência, como quem necessita mesmo da minha atenção. - "Que se passa, Soraia?" - Pergunto, intrigada.

"Preciso de 5 minutos da tua atenção e o chefe aguarda-te no seu gabinete". Ao entrarmos no meu gabinete diz com um ar muito decidido. - "Marta temos um problema. A reunião de Londres vai ser presidida por alguém que não conhecemos. O chefe está sem saber o que fazer. Sabes que ele conta sempre que sejas tu a tomar as rédeas..."

"Que raio! Como é que não se sabe quem é? Mas quem tratou de agendar a reunião?" - pergunto-lhe, já com mil cenários a passarem-me pela mente.

"Não sei Marta, mas o chefe espera por ti".

Saio do meu gabinete e em passo largo dirijo-me ao chefe, com cara de quem todos me devem, mas ninguém me paga. -"Posso saber qual é a jogada? Entendo que a Soraia não saiba de tudo, mas achei que estava demasiado preocupada com um assunto que desconhece." - Disparo assim que entro no gabinete, ansiosa com todas as possibilidades.

"Tem calma, Marta. Eu explico-te tudo."Diz-me, num tom que eu tomo como cuidadoso, após ver a minha postura para com toda esta confusão. - "Sabes que esta negociação não tem sido fácil. Há muitos a quererem atirar-se ao mar e nem todos sabem nadar". - Eu suspiro de cansaço e ele continua. - "Parece que há uma nova empresa interessada em adquirir as acções que queremos vender, mas fazendo parceria com a malta de Londres. Eu desconheço quem seja. Não sei que empresa é, quem a dirige nem em que condições. Parece que vai ser tudo apresentado na reunião de amanhã."

Eu interrompo, antes que ele continue, para fazer algumas perguntas. - "Mas, se não sabes quem é, como é que acedes fazer a reunião sem teres qualquer informação?"

Ele explica o que sabe, deixando-me ainda mais confusa, irritada e com vontade de desatar aos gritos e à chapada. Por fim pergunto. - "O que queres que faça?" - Ao que ele me responde. - "O que sabes fazer melhor".

Saio do gabinete e chamo a Soraia. - "Trás o bloco de notas e café para as duas. Vamos demorar."

Descarrego um sem número de tarefas à rapariga, desde agendamentos a pedidos de relatórios, e passado quase uma hora, dou por terminada a "tortura" que lhe acabo de infligir. No entanto, deixo-lhe um último pedido. - "Por favor, certifica-te que enquanto eu estiver ausente, me colocas a par de tudo o que se passa por aqui, via email, SMS, chamadas e/ou sinais de fumo." - Ela sorri e despede-se de mim afectuosamente.

Saio do escritório já de noite e antes de seguir para casa, com a tarefa de fazer a mala e deixar tudo organizado, decido ir comer qualquer coisa. Paro num local que ainda não conheço, entro e sou recebida por um empregado jovem, de olhos escuros, postura muito profissional.

"A Senhora espera alguém?" - Pergunta amavelmente, ao que respondo, num murmúrio. -"Apenas eu..."

Corações InquietosOnde histórias criam vida. Descubra agora