♥ DANIEL ♥

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A cidade de Verona ainda é a mesma de quinze anos atrás. As ruas continuam lotadas de turistas de todas as partes do mundo, andando em bandos, todos com seus respectivos guias segurando bandeirinhas para se localizarem. Tirando fotos de tudo, falando alto, visitando os mesmos lugares e comendo nos mesmos restaurantes. Estudantes usando bermudas caqui e coturnos, carregando enormes mochilas nas costas, descem dos trens na estação Porta Nuova vindos de toda parte da Itália. A única diferença é que hoje, a maioria deles carrega um celular que faz de tudo ao invés de enormes câmeras penduradas em seus pescoços.

Enquanto caminho pelas ruas à procura de um hotel, sou acometido por lembranças de uma época em que tudo parecia mais fácil, mais alegre. Uma época em que eu era feliz de verdade.

Que merda eu estou fazendo aqui?

Até agora, estou tentando entender por que eu entrei em um trem para Verona ao invés de pegar um táxi para o hotel cinco estrelas que meu irmão havia reservado em Milão.

Amanhã eu vou embora, penso, enquanto procuro um lugar decente para passar a noite. Deveria ter feito isso pelo celular enquanto estava no trem, mas meu celular ficou sem bateria e descobri, enquanto buscava pelo meu carregador dentro da mochila, que ele não veio comigo, ou talvez, ele esteja dentro da mala. Vou torcer para ser isso.

Um antigo hotel na pequena rua ao lado da Arena de Verona atrai a minha atenção. Suas paredes de cor terracota estão desbotadas pelo tempo e parcialmente cobertas por trepadeiras. As janelas são verdes ornamentadas por flores brancas. Parece mais uma antiga casa da Toscana. A placa na frente diz: "temos vagas". Não é bem o que eu procuro, mas por uma noite servirá e, depois, eu já estou cansado de andar arrastando essa mala. O que me faz pensar em por que não peguei um táxi?

Faço o check-in rapidamente e vou para o segundo andar. O quarto é bem simples. O papel de parede com estampa floral em tons de verde claro e algumas flores parece velho demais. A cama de madeira que fica no meio do quarto deve ter mais de cem anos. O criado mudo parece frágil demais para sustentar o pequeno abajur que, aparentemente, não funciona. O guarda-roupa fica no outro canto da parede. Tudo velho demais. Não consigo conter meu desagrado e penso seriamente em dar meia volta e procurar por um hotel de verdade.

Mas a vista me faz mudar de ideia.

Através da janela, posso ver a Piazza Brà ganhando vida com o cair da noite. Por um pequeno instante, esqueço de tudo e fico apenas observando o sol dando a lugar as estrelas. Quando as lembranças ficam vivas demais, fecho a janela — que por sinal range muito — e vou tomar um banho.

O banheiro é bem pequeno, mas limpo. Essa é a minha única exigência: banheiro privativo. Não consigo me imaginar usando o mesmo banheiro que pessoas vindas, sei lá de onde, também usam. Meu Deus! Eu estou ficando muito chato. Preciso concordar com a minha irmã. Eu não ligava para isso quando tinha dezoito anos e passei quase um ano viajando. Cheguei a ficar dois dias sem tomar banho porque acabou a água do albergue em que estávamos hospedados e não havia mais vagas em lugar nenhum. Onde foi isso mesmo? Não consigo me lembrar direito, acho que foi em Paris ou Berlim.

Depois de um banho rápido decido sair para dar uma volta. Estou morrendo de fome e o hotel só oferece café da manhã. Mas tenho certeza de que não vou comer nada nesse lugar.

Enquanto caminho pelo pequeno corredor, penso em tudo o que aconteceu em minha vida desde a última vez em que estive nessa cidade. Em como tudo dentro de mim havia mudado e... E então acontece.

Alguém bate em meu peito bruscamente e cai de costas no chão no momento em que viro no corredor seguindo para a recepção. No mesmo instante, sinto um líquido escuro e gelado na minha camisa branca. Não é só uma camisa branca, é uma John Varvatos nova, que provavelmente eu terei que jogar fora.

Ótimo! É tudo o que eu preciso agora.

― Desculpa. — sinto um nó se formar em minha garganta quando ouço a sua voz. A sua voz... — Eu estava distraída olhando para o...

— Celular? — aponto para o aparelho caído do outro lado do corredor e volto a olhar para a minha camisa encharcada.

— Não. — ela nega veemente, mas não me encara. — Eu não estava olhando para lugar nenhum, estava só... Eu sou um pouco desajeitada, às vezes.

— Eu percebi. — puxo o ar e levo uma mão ao cabelo quando minha voz se altera. — Desculpa, eu só... — e então ela levanta o rosto e seus olhos encontram os meus. Olhos verdes, brilhantes e perturbadores. Sua face está corada e isso faz a minha pele pinicar de um jeito estranho. Muito estranho. Deve ser por causa da viagem. Estou sem comer há mais de vinte horas e ainda tem o uísque no avião. Some isso ao meu stress e ao jetlag. — Eu só estou um pouco cansado.

— Eu percebi. — seus lábios começam a se curvar para cima e sinto que os meus fazem o mesmo. Ela apoia as mãos no chão e ameaça se levantar. Imediatamente, estendo minha mão para ela e nem sei por que faço isso.

― Deixa eu te ajudar. ― ela hesita, apenas por alguns instantes e, quando as pontas dos seus dedos tocam a palma da minha mão, sinto que a minha pele está queimando. A sensação é tão intensa que meu corpo inteiro responde. Até o meu coração acelera.

Que porra é essa?

— Eu acho que estraguei a sua camisa.

— Não tem problema.

— Sério? Porque você ficou tão irritado quando aconteceu. — ela está sorrindo. E acho que nunca vi um sorriso tão perfeito quanto o seu.

Agora chega, Daniel! O que está acontecendo com você?

— Se você q -quiser posso lavar para você.

— Você faria isso? — não consigo me segurar, principalmente depois que ela gagueja.

Éééé... — sua voz falha miseravelmente.

— Não precisa. — e quando digo isso, ela solta o ar com força, aliviada.

— Graças a Deus, porque eu não tenho a mínima ideia de como se faz isso.

Abro a boca para dizer... O quê? Não consigo fazer com que as palavras saiam da minha boca. Não consigo pensar em nada, somente em: Que garota é essa? Ela pega o celular, guarda-o no bolso de trás da calça jeans, pega o enorme copo de chá, agora vazio, que arruinara a minha camisa, ajeita a bolsa de couro marrom no ombro direito e, com a outra mão, segura a alça da sua mala vermelha de rodinhas.

― Você quer que eu te ajude a levar suas coisas para o quarto?

― Não precisa se preocupar. ― ela olha para mim mais uma vez antes de começar a andar pelo estreito corredor que leva até a escada.

O jeans escuro e apertado que ela usa revela pernas longas e torneadas. Uma camisa branca e sem mangas, faz um contraste perfeito com sua pele levemente bronzeada. Seu cabelo castanho está preso em um coque bagunçado no alto de sua cabeça, revelando uma pele macia e um pescoço longilíneo.

― Desculpa outra vez. ― ela se vira para mim de repente e me flagra olhando para ela. Para as suas costas ou... ― Talvez a gente se encontre por aí.

E antes que eu tenha tempo de responder, ela desaparece pelas escadas.

— É. Talvez.

Talvez ficar aqui mais um ou dois dias não será tão difícil. 

♥ POR TRÁS DAQUELES OLHOS - Degustação ♥Onde histórias criam vida. Descubra agora