Hoje faz seis meses desde que a mãe morreu.
Seis meses desde que um motorista achou que estava bem o suficiente para dirigir alcoolizado na estrada.
Seis meses desde que entrou em coma após ter tirado minha mãe de nós.
Seis meses desde que arrancou uma parte vital de mim no processo.
Seis meses desde que quebrou algo em meu pai impossível de consertar.
Seis meses desde que há algo inerentemente errado comigo.
Fecho os olhos e tento imaginar que há exatos cento e oitenta e quatro dias, o coração da melhor pessoa que conheci (e, às vezes, a mais odiada) parou de bater. Quais foram seus últimos pensamentos? Será que sentiu medo? Dor? Esperança? Será que se lembrou de mim e me culpou por ter passado mal e precisado de remédios?
Pelo tamanho da poça de sangue na estrada no dia seguinte, aposto que foi muito mais agourento do que ela merecia. Que tipo de justiça é essa em que um bêbado entra na contramão, acerta outro carro na lateral com tanta força que o joga para fora da pista, e sofre apenas alguns arranhões caindo num coma estúpido, dormindo impunemente?
Eu sei qual é esse tipo de justiça. É o tipo que não existe.
– Como está se sentindo? – pergunta Mateus. Seus olhos devoram os meus, atentos a cada detalhe. Diferente de todo o resto, ele não me encara como se eu tivesse uma doença incurável e terminal. Ele não me afoga em sua pena e isso é tudo o que posso pedir.
– Sentir? O que é isso? É de comer? – Com a guitarra pesando sobre os ombros, encosto a cabeça na parede pegajosa da rodoviária. O último ônibus do dia vai chegar em alguns minutos e me levar para perto de casa, me abandonando em um ponto onde teria que ligar para meu pai me buscar ou caminhar sete quilômetros até em casa. Pode parecer muito, mas a segunda opção é mais provável.
– Impossível você não ter sentido algo quando tocou "Somebody to love" mais cedo. Aposto que nem percebeu a forma como o pai de Felipe não tirava os olhos de você... tenho certeza de que o vi limpar uma lágrima. – Seus dedos deslizam em meu antebraço, tão leves que é impossível não sentir o calor e a eletricidade que saem dele. Mateus tem razão, ainda posso sentir a música de Queen ressoando em minha mente, um zumbido constante que abafa os sons de fim de noite da rodoviária. – Você devia cantar mais vezes. E tocar mais vezes. E ficar perto mais vezes.
– Só cantei porque aquela é uma das músicas favoritas da mãe e eu queria fazer algo para ela. – Suspiro ao perceber que falei como se ela ainda estivesse viva e gostando de coisas. O ar sai dos meus pulmões pesando uma tonelada. Como é possível estar tão cansada e tão agitada ao mesmo tempo? Eu não quero fazer nada, mas quero que alguma coisa aconteça. Quero sentir algo de novo. Quero que a mãe me faça endoidecer com seu perfeccionismo passivo-agressivo. Quero que me acorde de manhã gritando que hoje vai ser o melhor dia de todos. Quero que faça o pai parar de trabalhar dezesseis horas por dia. Quero que volte a ser a cola que une a nossa família. Quero ter uma família de novo.
Quero o mundo e ao mesmo tempo não quero nada.
Quero apenas sentir algo de verdade.
– Você fez e vai continuar fazendo – sussurra Mateus próximo demais para ser considerado apropriado.
"Apropriado" porque Felipe e eu não estamos não-namorando oficialmente. Antes de ser praticamente expulsa do colégio, meses atrás, algo estava rolando entre nós. Nós frequentávamos a mesma escola, a qual tive que suar noites a fio estudando para entrar. Não que eu gostasse de estudar, mas minha melhor amiga iria fazer a prova (e passar, sem dúvida) e eu não queria ficar para trás. Dane-se quem diz que melhores amigas não competem. Essa deve ser a motivação de infinitas amizades. Então estudei, passei por pouco e conheci o garoto legal que gosta de tocar violão no tempo livre. Suas covinhas, seu sorriso caloroso e sua música medíocre, mas cheia de emoção, me atraíram imediatamente.
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Sem saída [Vícios, REVISADO]
Short StoryE se certos momentos (aqueles que ninguém vê, mas guardamos com pesar na memória) fossem palavras-chave que te definem para o resto da vida? E se você vivesse sempre moldados por elas, sem qualquer sombra de controle, até se dar conta do que se torn...