que continua.

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Faz vinte e quatro meses desde que comecei a perder várias partes de mim.

Primeiro minha mãe, depois meu pai, logo em seguida minha vontade de qualquer coisa. Meus melhores amigos foram os próximos. Acho que parte do meu orgulho se esvaiu no caminho.

Em compensação, ganhei algo que talvez tenha valido a pena.

– Aquela foi nossa melhor noite! Melhor plateia! Melhor apresentação! Melhor tudo! – diz Mateus, sorrindo feito louco. Ele fecha a mala do carro ao terminarmos de guardar todos os instrumentos que trouxemos, as caixas de amplificadores, pedais e outros acessórios. Do outro lado do estacionamento, nossos dois outros companheiros de banda, um baixista e um baterista, acenam se despedindo, nos deixando sozinhos na rua às quatro da manhã.

– Não foi tão ruim assim – digo. Suas mãos agarram minha cintura, empurrando-me contra o carro num beijo. "Não foi ruim" é eufemismo. Foi nosso maior público até o momento, desde que Mateus começou a arranjar apresentações em bares, festas e outros eventos nas cidades vizinhas. A verdade é que contamos com boa dose de sorte, já que temos um carro para carregar os instrumentos (que seus pais lhe deram por ter passado de série no ano passado. Sim, esse é o tipo de família de onde Mateus vem), temos o melhor baterista que já conheci e temos certa fama online.

É claro que o fato de ensaiarmos todas as horas vagas do dia tem algo a ver com contratarem nossa banda para tocar em lugares em que minha idade não importa.

– Sempre querendo o melhor, não é, Jota? – diz Mateus sem tirar os olhos os meus. Ultimamente o "melhor" não basta. Quero algo além, perfeito, que não deixe espaço para críticas.

Também tenho ajudado a editar os vídeos que postamos online e me assegurado de que são as melhores versões possíveis. Mesmo que para isso eu tenha que usar saias curtas e blusas decotadas por baixo de minha jaqueta de couro, além de maquiagem que demora séculos para ser removida. Porém, como Mateus previu, a recepção do público só aumentou. Suas calças justas e camisetas apertadas também merecem crédito.

– Nada menos que o melhor. – Não estou com humor para suas mãos chapadas sob minha camisa, então me afasto e observo a rua vazia e escura. Lugares mal iluminados e o frio úmido da madrugada são meus novos melhores amigos. Essa não é a primeira vez que tocamos nesse bar, mas definitivamente foi a melhor. Toda a propaganda que fazemos finalmente está funcionando. Mateus se aproxima novamente e beija meu pescoço sem pressa. Às vezes odeio como ele sabe exatamente o que fazer para me trazer de volta às suas garras.

– Quer? – pergunta, estendendo a chave do seu carro na minha frente. Ainda não tenho licença, mas assim que seus pais lhe deram o veículo Mateus me ensinou a dirigir usando a estrada secundária e deserta que leva à minha casa. Seu carro e eu desenvolvemos uma conexão muito maior do que jamais terei com o dono, por mais que o último saiba a fórmula exata para me desmoronar.

Dou a volta no carro e sento no banco do motorista, colocando o cinto automaticamente. Mateus sobe no carona e liga seu Ipod antes mesmo de se prender ao banco. Sem dúvida, dirijo o carro com muito mais frequência que ele. Dou ré no estacionamento quase vazio e entro na rua principal da cidadezinha. São pouco mais de trinta quilômetros até em casa.

A animação por ter feito um show memorável se dissipa aos poucos, sendo substituída pelo entorpecimento cotidiano. Parece que só acordo quando estou no palco (o que ocorre apenas aos finais de semana) e no resto dos dias a vida passa por mim, como esta cidade passa por nós. Aulas, ensaios e encontros esporádicos com meu pai, nos raros momentos em que estamos em casa ao mesmo tempo. À propósito, parece que alguém descobriu o número particular do fornecedor de vinhos do supermercado.

Sem saída [Vícios, REVISADO]Onde histórias criam vida. Descubra agora