não existe

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Hoje faz um ano desde a morte da mãe.

O pai foi a um congresso porque a vida continua. Se por "vida" você entender trabalhar até dormir e acordar para trabalhar, tendo como sonífero garrafas de vinho. Desconfio que aceitou participar do evento apenas para não estar por perto no aniversário de morte dela. Com sua ausência, Mateus e eu aproveitamos a solidão bem-vinda de uma casa vazia.

All my friends tell me I should move on. I'm lying in the ocean, singing your song.*

Mateus senta no banco do piano ao meu lado, virado para mim com as pernas abertas. Ele bebe um dos vinhos do pai direto da garrafa, atento a cada movimento meu. Achei que com o tempo seus olhares perderiam a intensidade e aos poucos nos separaríamos, seguindo caminhos diferentes, como aconteceu com Felipe. Até o momento estou errada.

Loving you forever can't be wrong, even though you're not here, won't move on.*

A mãe teria adorado a forma como melhorei tocando piano. Mais de quatro horas de treino diário pode ter alguma coisa a ver com meu desempenho. Nos dias em que passamos na casa de Mateus, pratico guitarra ou violão. Admito que melhorei igualmente nos dois. Além do salto que dei no canto. Mateus me ajuda quando erro e, mesmo não tendo tanta experiência além de suas aulas particulares (com professores especialistas na área), sua presença e olhar sempre atentos me fazem corrigir erros e tentar novamente.

And there's no remedy for memory, your face is like a melody. It won't leave my head.*

Os dedos de Mateus sobem e descem sobre minha camisa fina, arrepiando os pelos em minha nuca e em meus braços. Percebendo minha reação, ele sorri e continua traçando círculos em minhas costas. Sei que está tentando me desconcentrar, fazer com que lhe dê atenção e assim perca uma nota da música. Esse tem sido um dos nossos jogos ultimamente. Encontrar detalhes que atrapalhem a concentração do outro como trocar a letra da música (tornando-a obscena), mudar o tom da canção ou tocar o outro inapropriadamente. Também achei que após todos esses meses seu efeito sobre mim fosse se esvair. Ainda preciso provar o contrário.

Sem dúvidas a mãe não ficaria nada contente com tudo o que seu piano presenciou. Ou talvez nós estejamos sentados sobre muitas indecências do passado. Nunca saberei ou terei a chance de perguntá-la.

No one compares to you, I'm scared that you won't be waiting on the other side.*

Insistente, uma mão entra sob a camiseta lentamente, e me pego inclinando para ela, enquanto a outra traça um caminho tortuoso em minhas coxas. Mateus se aproxima ainda mais, deixando espaço livre apenas para meus braços se moverem sobre as teclas do piano. Seu corpo quente conforta minha pele fria, coberta apenas por sua camiseta.

There's no release. I feel you in my dreams telling me I'm fine.*

Quando solto a última tecla, Mateus se afunda em meu colo. Fecho os olhos e desejo em silêncio que minha mãe goste de como me aperfeiçoei por sua causa. A respiração pesada de Mateus esquenta meu pescoço e deixo minha cabeça cair sobre a dele ao abraçá-lo. Sua presença se tornou constante em minha vida. Muito mais do que nos acostumarmos um ao outro, nós precisamos um do outro.

Em época de escola, passamos pela aula distraídos e vamos à sua casa ensaiar ou a qualquer lugar com oportunidade de tocar ou com bebidas. Seus amigos se tornaram meus conhecidos, mesmo eu não tendo paciência ou vontade de guardar seus nomes. A maior parte são babacas que me tratam por "a namorada do Mateus", sem direito a nome próprio. Meu segundo maior prazer é esvaziar seus bolsos de filhos da elite econômica da cidade. Meu maior prazer é despejar laxantes em suas bebidas quando não estão olhando. Mateus não poderia se divertir mais com meus pequenos atos de vingança.

Sem saída [Vícios, REVISADO]Onde histórias criam vida. Descubra agora