Capítulo I

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Primavera de 1976

O rádio-relógio ligado sobre o móvel de cabeceira emite um chiado de estática enquanto se conecta à rádio após ter tocado o meu despertador matinal, às 7 horas da manhã.

Abro os olhos e meus cabelos pretos cobrem minha visão, bloqueando a luz matinal momentaneamente. Finalmente a estação sintoniza e o alto-falante começa a emitir o agradável som da voz da Thelma:

''Pelo o que parece, temos um congestionamento matinal Golden Gate, como se isso fosse surpreendente.''

— Bom dia para você também, Thelma. - Murmuro, ainda sonolento.

Estico meus braços compridos e escuto um estalo acima do ombro, acho que estou com um torcicolo há alguns dias por ter andado tempo demais abaixado dentro do depósito da construção. Todo mundo quer ser alto, mas ninguém fala dos problemas que vem com isso. Ter dois metros de altura tem sido a maior provação pela qual já passei na vida adulta, o mundo não foi feito para nós, os gigantes.

Thelma continua falando, dessa vez sobre as ditaduras sul-americanas, não é um assunto pelo o qual eu me interesse, mas gosto de ouvir ela falar, me sinto informado sobre o que acontece no mundo enquanto permaneço preso na sempre ensolarada Califórnia. Vou para o meu primeiro banho do dia, não sem antes dobrar meu pijama de flanela cuidadosamente e guardar na primeira gaveta do armário de puxadores.

A vida flui mais fácil para quem é organizado, por esse motivo tudo na minha vida tem hora e lugar específico para acontecer e estar. Minha irmã caçula, Rebecca, diz que eu tenho um desses transtornos modernos compulsivos, eu prefiro dizer que sou "focado", é o que diz a tatuagem em meu peito, focus, que fiz no píer 29 assim que entrei para a faculdade há alguns anos.

Para o dia separo as roupas de terça-feira, calça verde-escuro boca de sino, botas pretas e uma camisa listrada de mangas longas. Tenho um par de roupa para cada dia de trabalho, assim sempre há algo limpo e passado no closet, o que me leva na contramão do atual sistema de consumismo desenfreado. Divido o cabelo ao meio, livrando meus olhos azuis para poder enxergar, e os fios pretos longos fazem uma leve dobra na ponta.

Minha mãe diz que estou parecido com o John Lennon, e isso é péssimo, pois não há nada que ela odeie mais do que o movimento hippie e seus representantes.

Antes de sair, enrolo as enormes páginas do projeto que estive trabalhando durante a noite e guardo no tubo para não amassá-los. O Ford Mustang preto me aguarda estacionado na porta do prédio de quatro andares no qual eu moro. Não tenho uma personalidade aventureira, sempre fui calmo e contido, mas há algo no ronco do motor desse carro que deixa meu coração acelerado por ultrapassar limites.

O caminho até o trabalho é tranquilo, estou alocado nos últimos meses no mais novo empreendimento da Ambience Engenharia, um hotel de luxo às margens do Oceano Pacifico, o que há de mais moderno no ramo da construção. Estou assinando o projeto como engenheiro principal, o que significa que qualquer coisa que aconteça, as boas e ruins, principalmente as ruins, são de minha responsabilidade.

Estaciono na vaga de sempre e dou uma bela olhada na construção ao descer do carro, sou apaixonado por esse ramo. Apesar de fazer as mesmas coisas diariamente a ponto de me tornar metódico, a engenharia permite que nada permaneça igual, todos os dias algo novo acontece, um piso é instalado, uma viga é erguida... e assim, de pequenas à majestosas modificações, eu me encanto pelo o que faço cada vez mais.

Vejo de longe o Joshua Ramone, meu engenheiro assistente, e, colega dos anos de faculdade. Nossa "amizade" de longa data não garante que nós nos gostemos, aliás, corto caminho apenas para desviar dele. Desprezo da sua personalidade narcisista e tentativas falhas de sempre chamar a atenção para si, sem falar do chiclete de barulho irritante que ele sempre está mascando.

Já não éramos muito próximos desde que eu sempre me saia à frente na faculdade e ele necessitava de ajuda extra, ou que seu pai subornasse algum professor. E as coisas pioraram desde que ele e minha ex-namorada, na época atual, acharam uma boa ideia me trair na noite de ano novo, no tradicional réveillon da empresa. Cortei qualquer laço que tinha com os dois, até ser colocado para trabalhar com esse estorvo contra a minha vontade.

Minha irmã acha que eu deveria botar fogo nos dois, mais a Becca tem fortes tendências sociopatas, então ignorá-los já é bastante para mim. Se eu fosse dar ouvidos a tudo que aquela maluca fala...

Continuo o caminho estranho e enlameado por trás dos guindastes, ser fujão tem seus malefícios, minhas botas já estão emprestadas de terra vermelha quando escuto um grito ao longe. Parece ser o meu nome, por isso fico alerta, olho para os lados e dessa vez o que escuto é um som metálico de cortar os tímpanos, é tão agudo que fecho os olhos em pura agonia, e então já não vejo mais nada. 

Duas Vezes Você [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora