Cartas Sonoras

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— Et habebat! — Sigard tentou pela terceira vez.

A carta em mãos continuava lacrada. Tateou pelas bordas do envelope e sentiu a textura suave do papiro. Estava começando a enfurecer, inflando as bochechas e coçando a cabeça.

Não podia pedir ajuda, é claro. Afinal, que efeito teria sobre sua reputação se alguém soubesse que era um mago analfabeto? O sistema de cartas sonoras era excelente para esse tipo de gente, que consistia em um simples método: ao passar as pontas dos dedos sobre as palavras escritas, a voz de seu emissor as pronunciava em voz alta.

Era genial, mas o grande Profeta Aara havia se esquecido de conjurar as runas sobre a palavra-chave, o que significava que a carta permaneceria fechada até que alguém a dissesse em voz alta.

Ergueu o dedo e passou sobre as inscrições.

— Todas as histórias do mundo — proclamou a voz fanha do profeta. E a seguir: — Faça bom proveito. Guarde na escrivaninha ou jogue fora, mas não rasgue.

Virou o envelope e observou seu nome, a única palavra que era capaz de reconhecer manuscrita. Logo abaixo, provavelmente a palavra-chave. A danada. Sigard tentava seguir a intuição, mas era um labirinto complexo. Havia tentado palavras em antigo latim, mandingas apaches, notas esquecidas dos rapsodos, imitado sons do vento e do fogo. Havia tentado pedir por favor, havia gritado com a carta e, talvez, dito alguns termos de pouca integridade dos quais se arrependia. Em um momento de desespero, tocou a gaita de fole para o papel. Mas nada disso teve efeito algum, e o envelope permanecia fechado.

Era impossível rasgar. Uma carta rúnica possuía o selo vital, algo intransponível para algo tão vulgar quanto a força bruta. E o pior de tudo é que a palavra-chave devia ser pronunciada com exatidão de fonema, inflexão, pausa entre os termos, tonalidade de voz. Podia ser um pio de coruja, o ruído de uma pétala, o chacoalhar de ampulheta ou um pum. De modo que estava a um passo da desistência.

Foi então que se lembrou de algo. Não sabia como aquela brincadeira havia chegado até o topo da hierarquia pensante, mas agora que refletia sobre o tema... Sim, talvez! Era uma palavra inventada, uma expressão de quando Aara e Sigard eram guris que apenas brincavam de ser magos.

Sentou-se em frente à lareira da biblioteca. Em uma das mãos, segurou o cachimbo. Na outra, o envelope repousava, sereno e níveo. Ao redor, centenas de pergaminhos em branco sussurravam segredos, incentivando. Uma apreensão infantil lhe tocou, e um surto friento caminhou pela espinha. Lembrou-se das peripécias de criança, dos amores juvenis, do toque amigável às costas e até de pactos quebrados. E então, finalmente recitou:

— XABLAU!

A carta se abriu e mil vozes ecoaram pela sala. Cada qual encaixou-se em um pergaminho. E ali estavam todas as histórias do mundo. Sigard sorriu e tragou o cachimbo. Os ouvidos teriam trabalho.

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