O alarme toca. Sento na cama.
No silêncio da manhã com o brilho do sol espalhando-se na cama eu não consigo pensar em nada. Serei uma tela em branco onde me tornarei uma obra de arte quando o meu fim chegar?
Minha mãe me disse que o resto da minha educação somente o mundo poderia dar, quem é esse mundo? Nós? As pessoas são duras como o chão, outras maleáveis como a água, nós somos o mundo, sim.
O que ele tem para nos ensinar? Eu nunca confiei em ninguém, porque as pessoas são estúpidas e sofrem de estupro mental.
Os animais mais selvagens não foram extintos há 65 milhões de anos, os animais mais selvagens ainda estão sobrevivendo, enquanto isso eu estou esperando algo dizimá-los assim como foram com os dinossauros.
O que me faz viver suportando isso? As prostitutas sobrevivem usando drogas, eu sobrevivo ouvindo música.
Levanto. Vou para o banheiro.
Estou de frente para o espelho. Carne, sou apenas carne. Seria audácia minha dizer que não tenho alma? Nephesh, deriva do hebraico que significa "vida" ou "criatura", não é audácia minha, eu não tenho alma.
Visto uma roupa. Pego as chaves. Fecho a porta. Desço as escadas. Estou na rua.
A parada do ônibus é o lugar onde vejo mais pessoas durante o meu dia inteiro, elas me olham como se eu fosse de outro planeta e quando as olho elas disfarçam como se eu não soubesse, mas uma não disfarçou, ela sorriu.
É o meu ônibus.
O motorista segue em frente. Olho no canto da janela, as pessoas me encaram seriamente por um instante, a procuro, mas vejo apenas folhas sobre a calçada marcando o seu lugar, ela já se foi.
O barulho enferrujado do ônibus se perde quando ponho os meus fones de ouvido. Relaxando o meu corpo estico-me sobre a pequena poltrona e abro a janela.
Os arranhões da guitarra enchem os meus olhos de lágrimas.
É a minha hora de descer.
Estou de frente para o meu trabalho, pessoas saem e entram do prédio, todas sem brilho nos olhos, será que os meus olhos ainda brilham?
Estou acorrentada ouvindo vozes que dizem que não tenho outra saída. Vou trabalhar.
*
Hoje foi um dia cheio. Estou no ponto do ônibus. Faz 20 minutos que saí do trabalho, não quero ir para casa. Pensar que não tenho outro lugar para ir me faz ficar inquieta. Estou ficando sozinha, os ônibus passam e levam as pessoas.
Um deles está vindo, uma senhora dos cabelos curtos e brancos está com pressa, ela caminha para a beira da rua, ao descer da calçada a sua bengala engata em uma rachadura, sem forças para tirar ela premedita que vai perder a sua vez. Eu corro e aceno para o motorista, dou um chute de leve na bengala e ela sai da rachadura, a senhora sorri enquanto entra.
É ela, o seu cabelo ruivo, ela está nesse ônibus. Verifico o dinheiro que tenho no bolso e entro logo depois da senhora que ajudei.
- Oh, para onde você vai mocinha?
- Vou verificar se chegará com segurança em sua casa – sorrio e seguro em suas mãos enrugadas.
Um grande espelho oval que está acima do motorista é estampado pela sua beleza, seu cabelo é igual o da Hayley Williams, seus olhos parecem tristes. Ela abre a mochila que está em suas pernas, tira seus fones de ouvido enrolados no seu celular, os usa. Quando ela fecha os olhos eu me sinto mais a vontade para ficar lhe admirando.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Júlia, quando ninguém amou
Romance"No silêncio da manhã com o brilho do sol espalhando-se na cama eu não consigo pensar em nada. Serei uma tela em branco onde me tornarei uma obra de arte quando o meu fim chegar?" Um drama narrado por alguém que nunca entendeu o sistema em que vive...