CAPÍTULO VII / O DELÍRIO

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Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o


eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação


destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à


narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é


interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns


vinte a trinta minutos.

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro,


escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões


e confeitos: caprichos de mandarim.



Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de São


Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com


fechos de prata e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais


completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as


minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre,


alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a


imagem de um defunto.



Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo,


que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou


confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou


vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe


disse que a viagem me parecia sem destino.



- Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos.



Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me


entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e,


perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo


de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto


peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha


parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá


de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade,


por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa


como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou


menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de


cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho;


lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e


que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos


gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal


galopava numa planície branca de neve, e vários animais grandes e


de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei


falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:

Memórias Póstumas de Brás CubasOnde histórias criam vida. Descubra agora