CAPÍTULO X / NAQUELE DIA

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Naquele dia, a árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci;


recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se


gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de


fidalgos. Não é impossível que meu pai lhe ouvisse tal declaração;


creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratificá-la


com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o herói


da nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais


lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo oficial de infantaria,


achava-me um certo olhar de Bonaparte, coisa que meu pai não pôde


ouvir sem náuseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-


me cônego.



- Cônego é o que ele há de ser, e não digo mais por não parecer


orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o destinasse a um


bispado... É verdade, um bispado; não é coisa impossível. Que diz


você, mano Bento?



Meu pai respondia a todos que eu seria o que Deus quisesse; e


alçava-me ao ar, como se intentasse mostrar-me à cidade e ao


mundo; perguntava a todos se eu me parecia com ele, se era


inteligente, bonito...



Digo essas coisas por alto, segundo as ouvi narrar anos depois;


ignoro a mor parte dos pormenores daquele famoso dia. Sei que a


vizinhança veio ou mandou cumprimentar o recém-nascido, e que


durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em nossa


casa. Não houve cadeirinha que não trabalhasse; aventou-se muita


casaca e muito calção. Se não conto os mimos, os beijos, as


admirações, as bênçãos, é porque, se os contasse, não acabaria mais


o capítulo, e é preciso acabá-lo.



Item, não posso dizer nada do meu batizado, porque nada me


referiram a tal respeito, a não ser que foi uma das mais galhardas


festas do ano seguinte, 1806; batizei-me na igreja de São Domingos,


uma terça-feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo


padrinhos o Coronel Rodrigues de Matos e sua senhora. Um e outro


descendiam de velhas famílias do Norte e honravam deveras o


sangue que lhes corria nas veias, outrora derramado na guerra


contra Holanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras


coisas que aprendi; e certamente os dizia com muita graça, ou


revelava algum talento precoce, porque não havia pessoa estranha


diante de quem me não obrigassem a recitá-los. - Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu


padrinho.



- Meu padrinho? é o Excelentíssimo Senhor Coronel Paulo Vaz Lobo


César de Andrade e Sousa Rodrigues de Matos; minha madrinha é a


Excelentíssima Senhora D. Maria Luísa de Macedo Resende e Sousa


Rodrigues de Matos.



- É muito esperto o seu menino! exclamavam os ouvintes.



- Muito esperto, concordava meu pai; e os olhos babavam-se-lhe de


orgulho, e ele espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me


longo tempo, namorado, cheio de si.



Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo.


Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar às


cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de pau.

- Só só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo chocalho

de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente,


cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e


fiquei andando.

Memórias Póstumas de Brás CubasOnde histórias criam vida. Descubra agora