Naquele dia, a árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci;
recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se
gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de
fidalgos. Não é impossível que meu pai lhe ouvisse tal declaração;
creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratificá-la
com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o herói
da nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais
lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo oficial de infantaria,
achava-me um certo olhar de Bonaparte, coisa que meu pai não pôde
ouvir sem náuseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-
me cônego.
- Cônego é o que ele há de ser, e não digo mais por não parecer
orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o destinasse a um
bispado... É verdade, um bispado; não é coisa impossível. Que diz
você, mano Bento?
Meu pai respondia a todos que eu seria o que Deus quisesse; e
alçava-me ao ar, como se intentasse mostrar-me à cidade e ao
mundo; perguntava a todos se eu me parecia com ele, se era
inteligente, bonito...
Digo essas coisas por alto, segundo as ouvi narrar anos depois;
ignoro a mor parte dos pormenores daquele famoso dia. Sei que a
vizinhança veio ou mandou cumprimentar o recém-nascido, e que
durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em nossa
casa. Não houve cadeirinha que não trabalhasse; aventou-se muita
casaca e muito calção. Se não conto os mimos, os beijos, as
admirações, as bênçãos, é porque, se os contasse, não acabaria mais
o capítulo, e é preciso acabá-lo.
Item, não posso dizer nada do meu batizado, porque nada me
referiram a tal respeito, a não ser que foi uma das mais galhardas
festas do ano seguinte, 1806; batizei-me na igreja de São Domingos,
uma terça-feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo
padrinhos o Coronel Rodrigues de Matos e sua senhora. Um e outro
descendiam de velhas famílias do Norte e honravam deveras o
sangue que lhes corria nas veias, outrora derramado na guerra
contra Holanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras
coisas que aprendi; e certamente os dizia com muita graça, ou
revelava algum talento precoce, porque não havia pessoa estranha
diante de quem me não obrigassem a recitá-los. - Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu
padrinho.
- Meu padrinho? é o Excelentíssimo Senhor Coronel Paulo Vaz Lobo
César de Andrade e Sousa Rodrigues de Matos; minha madrinha é a
Excelentíssima Senhora D. Maria Luísa de Macedo Resende e Sousa
Rodrigues de Matos.
- É muito esperto o seu menino! exclamavam os ouvintes.
- Muito esperto, concordava meu pai; e os olhos babavam-se-lhe de
orgulho, e ele espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me
longo tempo, namorado, cheio de si.
Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo.
Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar às
cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de pau.- Só só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo chocalho
de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente,
cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e
fiquei andando.
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Memórias Póstumas de Brás Cubas
NouvellesNarrado em primeira pessoa e em tom cáustico, este romance conta a história de Brás Cubas, homem que morre de pneumonia mas mesmo assim deseja escrever a autobiografia. Pertencente à elite carioca do século XIX, esse "defunto-autor" fala sobre a esc...