Capítulo 26: Jantar a dois.

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Arroz, feijão, um bife de alcatra bem passado e um punhado de salada. Com o olhar meio perdido, Bel examina o prato de comida na sua frente. "Será que preciso mesmo disso? Será que preciso me alimentar como eles?" Ela tenta encontrar respostas em seu banco de dados recém descoberto, e, em um quarto de nanossegundo, encontra o que procura: o organismo sintético é capaz de ingerir comida como um humano, porém, necessita de apenas cinco porcento dos nutrientes de um adulto. Finalmente, ela entende porque sempre sentiu pouca fome, mesmo após extensa atividade física ou intelectual.

No meio da mesa, uma bandeja comporta um amontoado de bifes, outro recipiente está cheio de arroz e há ainda uma saladeira, um saleiro, um vidro de azeite e uma jarra de suco. Mesmo que as refeições tenham sido servidas previamente, a cozinheira do convento deixou porções generosas, caso os convidados, a princípio famintos, desejassem encher bem as barrigas.

A carne ainda está quente, e um cheiro apetitoso exala da bandeja de bifes, somando-se ao expelido pelo suculento pedaço no prato de Bel. O aroma invade as narinas dela e, tal como um humano, suas glândulas salivares são ativadas, enchendo a boca de água.

"Hum... Tinha me esquecido desse cheirinho...", ela se deixa levar pelo desejo humano, porém, simulado, que tantas vezes achou ser algo natural, então abocanha um pedaço de carne.

No lado oposto da mesa, sentado de frente para Bel, Davi mastiga vagarosamente enquanto observa a namorada, tentando decifrá-la. Desde o momento em que descobriu que ela não é humana, um sentimento conflitante cresceu em seu coração, agora, frente a frente com a biocomputador, uma incômoda certeza emerge: "Ela é uma máquina, uma máquina avançada, sensiente, perfeita, mas ainda assim uma máquina",  lamenta.

Aquilo começou com uma imensa tristeza, transformou-se em ódio, e por fim só restou indiferença, porém, uma ideia inusitada havia tomado forma em sua mente alguns dias atrás, e agora ele enxergava a oportunidade de colocá-la em prática. Não precisaria ir ao Brasil para receber o pagamento e conseguir uma nova identidade, bastaria usar a máquina. Pelo que supôs, não existe nenhuma I.A tão avançada em todo o planeta, Bel é, de certa forma, a biohacker mais poderosa que já pisou na face da Terra. E ele possui os contatos, as conexões, ela seria sua nova ferramenta de trabalho, seu novo CND.

Davi sorri ao vê-la finalmente engolir a comida. Termina rapidamente de comer,  apoia os braços sobre a mesa, empurrando o prato para frente.

- Então, vai me ignorar por quanto tempo?

Bel olha para ele, sente como se não conhecesse mais o rapaz, apesar de ter convivido com Davi durante um bom tempo. Ela tenta pensar na melhor resposta possível, mas sua mente biológica está um caos.

- Aconteceu muita coisa comigo, Davi. Ainda estou tentando me entender - desvia o olhar novamente, pegando mais um pouco do bife.

Ele fecha a cara, esperava ouvir outra coisa. Após alguns segundos, volta a falar:

- Você provavelmente não precisa disso.

- Disso o quê?

- Da comida!

Bel faz uma careta.

- Preciso sim. Só que em quantidades menores.

Os dois ficam em silêncio. Ela volta a comer enquanto Davi a fita com seriedade.

- Você... ainda... me ama?

A sala de jantar parece ter se transformado em uma tumba. O biohacker estreita os olhos. Bel coloca os talheres na mesa.

"Droga. Porque diabos ele quer conversar sobre isso logo agora?"

Tenso, o rapaz espera pela resposta; o tempo congela por um momento. Bel quebra o gelo.

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