Capítulo I. As cartas da morte

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    Em algum canto dessa cidade, num desses pequenos bares fedidos a mofo, fumo barato e cerveja velha, com mesas de pinho já ressecadas e desgastadas pelo tempo (e pelas batidas de canecas cheias de Chopp), mesas de bilhar ligeiramente empenadas para a direita - as quais geram muita reclamação dos clientes quando estão completamente embriagados - um garçom de cerca de um metro e sessenta, olhos sem brilho e cabelo desgrenhado que muitos diziam lembrar os de um velho pônei de carga, carrega em seu prato de alumínio barato e já enferrujado mais uma garrafa de saquê em direção à mesa 3.
- Esses imbecis não param de beber um segundo sequer, espero que sua gorjeta seja tão grande quanto o apetite. Sussurrou alto o suficiente para que somente ele ouvisse.

Ás de copas, rei de espadas e um ás de espadas, quem diria, esse miserável está com uma boa mão, porém, "a sorte não está a favor dos tolos". Em um movimento discreto, Tiago levou a mão ao bolso de sua jaqueta de couro sintético já desbotado que havia sido um presente de seu pai pouco antes de morrer, mas, foi interrompido por uma voz.

- Espero que não faça o que pretende meu amigo, afinal, não é possível haver cartas repetidas nesse baralho velho e engordurado pelas mãos menos cuidadosas. Ou é? - Então o olhar de Tiago correu sorrateiramente para as mãos de um de seus adversários, que devorava coxas de peru fritas, um dos aperitivos feitos pela cozinheira do bar que era sempre muito elogiada.
Neste momento seu coração acelerou, seus pelos arrepiaram da jovem e mal feita barba aos pés, chatos e cobertos por botas para neve (já que a neve é um problema constante na vida dos habitantes dali), sentiu o suor frio escorrer de sua testa e cair sobre seu colo.
Nesse pouco tempo que passou a frequentar o bar, o garoto viu por vezes homens ingênuos descobertos trapaceando serem espancados ali, em maioria até a morte e ele agora por pouco não juntou-se à lista dos cadáveres daqueles que se sentiam superiores e em seu egocentrismo se perderam e disseram adeus a esse mundo.
Tiago cometeu um erro. Ao se concentrar apenas na boa mão de um de seus adversários, deixou passar despercebida a mão de seu outro oponente, talvez devido à sua desatenção ou apenas graças a seu quarto copo de saquê. Mas aquele saquê estava tão saboroso que o jovem se recusava a culpá- lo por seus erros.
Suavemente, fechou os olhos por alguns segundos e ali estava, dois três, um de espada, outro de ouro e o maldito sete de copas. Ao ver as cartas de seu oponente recém desprezado, Tiago praguejou.
- Droga, o que eu faço! - Sim, Tiago ainda estava com a mão direita no bolso, talvez já a uns quinze segundos. Então apalpou o bolso como se procurasse algo.
- Perdeu alguma coisa jovem? Perguntou um homem alto, que escorava em um pilar ao lado da mesa, e aparentava ter seus trinta e seis anos de idade, com belos olhos azuis, atentos e um nariz pontiagudo que faziam-no parecer uma Águia marinha de stelle.

- Merda, perdi minha carteira de cigarros. - Disse Tiago como se amaldiçoasse seu descuido - Vou ao balcão comprar outra, não ousem olhar minha mão de cartas.
Assim que Tiago se levantou, um vulto enorme se ergueu em um movimento brusco que pareceu mais um urso pardo tentando intimidar sua presa.
- Você não vai a lugar algum antes de terminar o jogo. - O homem agora estava visível para Tiago que decidiu continuar com a ideia de o homem ser um urso. "A primeira impressão é a que fica" pensou.
- Então eu gostaria que o senhor tentasse me impedir.
Foi então que os restantes se retiraram da mesa como animais que procuram abrigo para se esconder de uma forte tempestade que viria. Ao ouvir as ameaçadoras palavras daquele jovem arrogante, Desmond sentiu uma imensa fúria tomar conta de si, via -se nitidamente as veias de todo o seu corpo, inchadas como que por ódio ao invés de sangue, seu corpo deformado por brigas anteriores muito provavelmente naquele mesmo bar parecia ficar maior a cada segundo e sua boca espumava como um cão raivoso pronto para destroçar qualquer coisa que cruzasse seu caminho.
- Vejo que não tem muitos amigos ursão - Tiago deixou escapar um sorriso malicioso ao ver que ninguém iria ajudar o homem embestiado à sua frente.
- Hahahaha não me subestime criança eu não preciso deles, aliás, irei fazer cada um lamber o seu sangue do chão quando isso acabar.
As pessoas ali sentiram o cabelo arrepiar e intuitivamente deram mais um passo para trás ansiosos pelo desenrolar da briga. Alguns - os mais covardes, ou menos bêbados - jogaram dinheiro suficiente para o pagamento de suas contas na bandeja do garçom e se retiraram às pressas dali, ignorando o troco que ficaria de gorjeta e que certamente deixou o garçom rindo após seu expediente.
O clima de tensão estava formado, o homem de olhos vermelhos disparou na direção do garoto na velocidade de um urso atrás de sua presa.
- Tora! - Gritou Tiago e um enorme par de pesados machados duplos negros como a noite, apareceu em suas mãos. - Agora, vamos nos divertir um pouco!

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"Atenção usuários, infelizmente houve um breve imprevisto nos trilhos da linha Tóquio - Ottawa, pedimos aos passageiros que aguardem a liberação do trecho em seu assento. A Subcity agradece a compreensão."
Se ao menos eu estivesse sentado, pensou Daisuke enquanto desentrelaçava os fones. Pelo menos tinha esse passatempo, que aparentemente levaria horas até ser concluído. Por algum motivo os malditos fones sempre acabavam entrelaçados após um dia inteiro dentro da mochila. Podiam parar de inventar descascadores de batata automáticos e criar um desembolador de fones. Isso sim seria útil.
- Esse cachecol cobre seu sorriso mocinho, já avisei para não usá-lo.
Daisuke deixou um sorriso bobo escapar. Aquela voz era sua favorita, acalmava sua mente e acelerava seu coração, fazendo-o arrepiar completamente.
Virando-se para a esquerda Daisuke a viu. Aqueles olhos castanhos cheios de brilho pareciam prendê-lo, aquela boca delicada parecia um fruto o qual ele nunca provou. Qual seria o sabor? Essa dúvida o assolava, mas ele se mantinha quieto, tímido, acanhado.
- O-olá Júlia, tudo bem?
- Não seja tão formal Dai. Me chame de Ju. - A garota disse sorrindo e o mundo do garoto se iluminou com um forte brilho. - Vou bem sim e você?
Júlia foi sua colega de classe durante todo o ensino médio, simpática, alegre e sempre muito gentil. Sua vontade era responder com uma frase legal como as que via em filmes, mas, sua timidez proporcionou apenas um "sim" nessa oportunidade.
Ali naquele metrô, conversaram bastante. Falaram de assuntos adultos como as provas de vestibulares que teriam pela frente, sobre sonhos adolescentes como sair de casa e morar sozinhos, mas, também falaram sobre assuntos inocentes, por exemplo a volta da serialização de um de seus animes favoritos, Shingeki no Kyojin que levara nada menos que oito anos para ser retomada.
"Atenção senhores usuários, estamos retomando o curso. Pedimos desculpas pelo transtorno e desejamos uma boa noite."
- O que está escutando aí? Rock?
- É uma antiga banda canadense, Three Days Grace. Conhece? Disse Daisuke entregando o celular para que a garota ouvisse.
- Nossa que som maneiro! Eu ador...- a garota foi interrompida pela voz do motorista.
"Estação Moscou, desembarque pelo lado direito do vagão"
- Bem, eu fico nessa estação Ju. Pode ficar com esse aparelho, como um lembrança minha.
- Prometo cuidar bem dele! Mas antes, deixe -me te dar uma lembrança minha também...eu sempre quis te dar isso!
Julia levou suas mãos, delicadas como uma flor copo de leite, até o rosto do garoto, se aproximou suavemente e o beijou. O sabor era inimaginável, a sensação de ter os lábios da garota sobre os seus o lembrava um roseiro sendo podado, com rosas caindo lentamente sobre um chão de terra macia, fértil.
Enquanto se despedia do lado de fora do metrô, ouviu a garota sussurrar palavras abafadas pelas vozes ao seu redor.
"Leve como lembrança o meu amor, Dai" era o que as palavras diziam.

*#*# Fim do capítulo 1 *#*#

S4VIOR - Os Guerreiros Do GeloOnde histórias criam vida. Descubra agora