Lá estava ele, sentado, absorto em seus pensamentos e devaneios. O trem, que partira de Santa Cruz em direção à Central do Brasil, não estava totalmente cheio. Apesar de haver algumas pessoas em pé, havia ainda lugares para se sentar. Distraído que estava, não sabia se havia chegado a seu destino, ou se ainda faltava muito.
Enfim, pouco importava, quase todo dia fazia aquele mesmo trajeto. Descer na estação correta já era um procedimento praticamente maquinal. Se prestasse mais atenção ao seu redor, talvez notasse que já fizera aquele percurso com alguns dos rostos ali presentes; entretanto, provavelmente, se substituíssem aquelas pessoas por vasos de plantas, por exemplo, para ele não faria a mínima diferença. Quem sabe, nem notasse a estranheza da situação.
Mas, nesse dia isso mudou. Aconteceu algo que o fez despertar das profundezas de sua mente, de seus pensamentos mais complexos e ao mesmo tempo vazios. Com certeza, essa era a primeira vez que acontecia, ou não se lembrava de ter visto ou vivido algo semelhante. O que lhe vinha em mente é que todas aquelas viagens sempre foram cinzas. Assim como os dias nublados no inverno, nada brilhava, nada lhe saltava aos olhos. Sim, todos os dias via as pessoas magras, feias, gordas, com tatuagens, de mochila, os ambulantes com suas mercadorias esbarrando nos passageiros, idosos, jovens adultos, alguns adolescentes e algumas pessoas fedendo já de manhã. Mas já tinha feito este trajeto tantas vezes, com esse mesmo perfil de pessoas, que todas já não tinham rostos, eram apenas formas e cheiros que faziam parte de sua viagem cotidiana.
Entretanto, quando as portas do trem se abriram e ela entrou, no mesmo instante ele despertou de seu piloto automático, de seu estado mental "tão alto" quanto atingem os monges budistas tibetanos. E, como se caísse das nuvens de uma só vez, pois assim se sentiu, direto naquele vagão de trem, sentado naquele banco, voltou a si. Em uma fração de segundos, ali estava ele ao lado de pessoas novamente. Continuavam todas cinzas, é verdade, porém agora, havia entre elas algo que se destacava, que tinha cor, brilho e que, por sinal, cheirava muitíssimo bem. Tinha certeza de que foi a fragrância do perfume dela invadindo-lhe não só as narinas, mas todos os poros da pele, que o fizeram despertar e cair ali.
Ela entrou e sentou-se logo a sua frente. Tinha os cabelos pretos, a pele branca e usava um vestido tão preto quanto a cor de seus cabelos. Os sapatos... Não importa quais eram e nem sua cor. Voltou a olhar o seu rosto, pois ainda não o tinha visto por completo. Ela entrara de cabeça baixa, não tendo, assim, conseguido ver seus olhos. Deveriam ser cinzas ou castanhos bem claros. Não conseguiu chegar a uma conclusão. Dependendo do modo com que a luz batia neles, mudavam de cor.
Como se estivesse hipnotizado, seus olhos não desgrudavam da garota. Notou que ela estava usando fones de ouvido. Qual seria a música que estava ouvindo? Será que conhecia? Será que gostava? Poderia cantar para encantá--la? Poderia dizer que também gostava daquela banda ou cantor e assim conversarem a viagem inteira e, quem sabe, no final pedir-lhe o número do telefone?
Um milhão de situações e diálogos passaram-se em sua cabeça. Na maioria deles, ele se dava bem. Ela sorria, achava-o divertido, talvez tocasse em sua mão ou em sua perna. Ele retribuiria o toque colocando sua mão por cima da dela. Sorriam um para o outro e ela abaixava o rosto encabulada, ele também. Mas um pensamento, apenas um, fazia com que permanecesse sentado em seu lugar. O de que ela o rejeitasse ou ignorasse. E se ele se levantasse e fosse até lá tentar puxar assunto, e ela virasse o rosto? Ou pior, mudasse de lugar, deixando-o totalmente desconcertado? Poderia até fazer um escândalo, chamando-o de tarado!
Em sua mente, agora, rolava uma conjetura de tudo o que poderia acontecer. E agora? Tudo isso sem tirar os olhos dela, que aparentava estar alheia a todos esses acontecimentos, distraída, ouvindo e curtindo sua música. Num instante, ela pareceu olhar para ele. Sem saber o que fazer, ele abaixou a cabeça e desviou o olhar. Depois, olhou de novo e lá estava ela com seus olhos nele. Dessa vez, o rapaz manteve o olhar e foi a garota quem desviou. Rolaram mais uma ou duas trocas rápidas de olhares. Em uma delas, ela pareceu dar um microscópico sorriso, ou tinha sido impressão dele? Nesse exato momento, sentou-se, ao lado da garota, outra pessoa que acabara de adentrar no recinto. Não havia mais espaços vagos, e agora? Agora era esperar que vagasse outro espaço ao lado dela, mas, se não vagasse? E se chegasse a estação em que ele tinha que descer, ou pior, a estação em que ela fosse descer? Ele poderia passar de onde fosse saltar, mas ela definitivamente não o faria.
Sua apreensão ia aumentando. Agora, suas dúvidas eram se deveria ir atrás dela ou não, caso ela se levantasse. Seu campo de visão foi estreitando, diminuindo. Ela era o foco, ele só conseguia enxergá-la. Todo o resto estava desfocado, embaçado. Neste momento, o trem parou em uma estação. Ele virou-se para olhar e ver qual estação era. Quando retornou a olhar para frente, viu um espaço vazio, desocupado. Seu coração quase lhe foi à boca, sentiu um aperto no peito e um frio na barriga, tudo ao mesmo tempo. Onde ela estava? Ela tinha saltado do trem e ele não viu. Não tirara os olhos da garota desde o momento em que ela entrou no trem. E no único instante em que ele desviara apenas para ver a estação em que estavam, numa fração de segundos, ela sumiu, desapareceu. Maldita hora! Por que foi desviar o olhar dela? Por que foi querer saber em que estação estavam? Poderia ter saltado ali e procurado por ela; todavia, o choque foi tão grande que, quando se deu conta, a porta do trem fechou e o mesmo voltou a andar. Quem era ela? De onde vinha? Para aonde foi? Qual era o seu nome? Nunca saberia nem seu nome e nem sua idade.
No resto da viagem, ele foi praguejando, lamentando em seus pensamentos tudo o que poderia ter feito, que poderia ter agido mais rapidamente, que poderia ter feito isso ou aquilo, mas, agora, de nada adiantava, já estava feito, ela já tinha ido embora e ele perdido a oportunidade de conhecê-la. Os mais variados pensamentos lhe vieram à mente neste dia. À noite, foi difícil dormir.
No outro dia, lá estava ele, no mesmo horário, no mesmo vagão, no mesmo banco. Quem sabe ela apareceria de novo? Quem sabe tivesse aparecido outras vezes e ele não tivesse percebido? Mas desta vez estaria atento. Estava tão atento que percebeu a senhorinha que sempre viajava ao seu lado bordando, com muito esmero, um pano de prato. Percebeu o senhor obeso, mais à esquerda, que viajava com um sorriso no rosto, talvez de satisfação ou por alguma coisa que o rapaz desconhecia. Notou que tinha um cara todo engravatado que usava dois celulares, um para falar e o outro para digitar de forma bem ágil. Havia, também, as meninas, estudantes uniformizadas e de grandes mochilas nas costas, porém sorridentes e tagarelas, em pé, perto da porta à direita do vagão.
De repente, ele começou a perceber toda uma vida que transcorria ao seu redor dentro daquele trem. Pessoas entrando e saindo a cada estação. Algumas mais serenas, tranquilas, outras bem mais agitadas. Os ambulantes oferecendo seus produtos com as mais variadas e engraçadas formas de se ofertar. Ele prestou atenção em tudo isso; contudo, até então, nada daquela moça. Já se haviam passado uns dez ou onze dias e nada.
Passaram-se trinta, cinquenta dias e nem sinal. Três meses e nada dela. Até o ponto em que ele começou a questionar se ela realmente existira ou fora uma invenção de sua cabeça. Talvez um sonho. Talvez tenha dormido durante a viagem e sonhado tudo aquilo. De fato, depois daquele ocorrido, chegou a sonhar com a garota algumas vezes. Uma vez, sonhara que ela, ao partir, tinha-lhe jogado um papelzinho com o número do telefone, noutra que ela sorrira e mandava-lhe um beijo. Talvez isso explicasse tudo, o fato de nunca mais tê-la visto ali depois daquele dia. Só podia ser um sonho. E lá estava ele naquele trem novamente, quase todos os dias. Não sabia até quando seria assim. Não se lembrava de quando exatamente começou a pegá-lo para ir ao trabalho e nem sabia quando o deixaria de pegar. Ao decorrer dos dias, tudo voltara a ficar cinza novamente, com as pessoas a perderem suas características e ganharem formas e cheiros: gordas, magras, velhas...
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Os Contos de Nossas Vidas
Short StoryCom certeza você já passou, ou conhece alguém que tenha passado, por alguma das situações aqui descritas. Seja uma paquera no trem ou na rua, uma situação constrangedora dentro do elevador, vontade de largar tudo para trás ou até uma situação em que...