Faltava pouco até começar a amanhecer e surgirem os primeiros raios de sol, e ele pensou em como era bom dirigir naquela estrada ainda vazia. Nada daquele trânsito insuportável, que ele tinha que pegar toda manhã para ir trabalhar, nada de sinais fechados, cruzamentos com um nó de carros, sons de buzinas, motoqueiros malucos ou motoristas de ônibus mal-educados. Chega! O stress começava antes mesmo de chegar ao trabalho e não gostava nem de pensar na volta para casa. Todo dia sempre a mesma coisa. O mesmo inferno para chegar ao trabalho e para voltar, fora o inferno do trabalho em si. Hoje e dali em diante, não ia querer mais nada dessas coisas em sua vida. Prometera a si mesmo que levaria outro estilo de vida, mais leve, mais calmo. Estava cansado de buscar o "American way of life".
"A Alvorada também era tão relaxante" - pensou ele. Aquela sensação do frio da noite, que se extinguia, e o calor dos primeiros raios de sol do dia confortavam-lhe o espírito e tornavam tudo tão revigorante. Pareciam fazer com que pisasse mais fundo no acelerador do carro. Uma sensação de controle total sobre si e sobre o que lhe rodeava, apoderava-se totalmente de seu corpo. Quanto mais ligeiro o carro seguia, mais rápido os pensamentos fluíam em sua mente. Será que estava tudo tão depressa por causa do turbilhão de pensamentos ou seus pensamentos é que estavam rápidos por causa da velocidade que se encontrava? - Pensou por um instante. Enfim, isso não importava. A questão é que nunca se sentira tão livre, ou pelo menos não se lembrara de tal sensação.
Mas ainda havia este turbilhão de coisas girando em sua cabeça enquanto dirigia. No seu trabalho, por exemplo, o que iriam dizer quando percebessem que ele não foi naquele dia? Pior, quando notassem que ele não voltaria nunca mais para trabalhar? E, quando fossem procurá-lo, pensariam que teria morrido? Que fora sequestrado? Cogitariam uma dezena de hipóteses que poderiam ter ocorrido com ele até se darem conta de que ele simplesmente não voltaria mais para trabalhar por conta própria.
Talvez pensassem que enlouquecera, ou que encontrara um novo amor. Quem sabe, sofrera algum trauma durante o final de semana? Uma decepção amorosa? Stress? A verdade mesmo é que não se importava nem um pouco sobre o que seus colegas ou o chefe fossem ponderar a respeito. Até sentiu um pouco de prazer em pensar no rebuliço todo que causaria, e uma pequena expressão de prazer se formou no canto direito de sua boca.
Não havia nada naquele escritório enfadonho de que fosse sentir falta. O relógio de ponto que parecia persegui-lo, a mesma conversa chata na salinha do café, o relógio na parede, que costumava teimar e fazer com que seus ponteiros girassem em câmera lenta. Até a gravata que era sua, parecia estar comungada com as pessoas e objetos do escritório e passava o dia a sufocá-lo. Seu chefe, então, nunca ele conhecera alguém tão autoritário e sistemático. Não importava o que o funcionário fizesse. Nunca estava bom.
Mas, pensando bem, havia alguém de quem fosse sentir falta: a Carminha, a maravilhosa secretária do escritório. Que espetáculo de mulher! Cabelos ruivos, seios voluptuosos, coxas grossas, bunda arrebitada, cintura fina. Aquela mulher era fora do comum, algo a se contemplar horas a fio. Era perfeita, um verdadeiro convite ao pecado. Desconfiava, inclusive, de que ela usava óculos apenas para fazer charme e bancar o estilo intelectual, pois ora ela dizia que tinha miopia, ora astigmatismo, não se definia. E aquela tatuagem que ela tinha em seu corpo? Era um mistério à parte. Ela dizia a todos que tinha apenas uma única tatuagem, porém, nunca havia mostrado para ninguém do escritório. E, o que tornava a coisa mais intrigante ainda, era que essa tal tatuagem começava nas costas, um pouco abaixo do pescoço, e terminava na lateral da coxa, próximo ao lado esquerdo do joelho da perna direita. Eram os únicos dois pontos visíveis. Uma vez, fizeram um bolão para tentar descobrir qual era o desenho. Chegaram a tentar entrar em contato com o namorado dela, porém ela descobriu e terminou com ele antes que fosse contatado e revelasse tal desenho.
Ele pensou também em seus pais, mas depois telefonaria e explicaria tudo com calma. Pensou em lhes revelar pessoalmente seu plano de sumir no mundo, em seguir para onde o nariz apontasse, porém provavelmente o desaprovariam e tentariam persuadi-lo a mudar de tal ideia, e, com tanta perturbação, talvez o convencessem. Seu pai viria com os sermões sobre ser alguém na vida, ter um emprego estável, uma família, um lar, contas para pagar, uma aposentadoria segura, um emprego que lhe desse um bom plano de saúde. Sua mãe viria outra vez com aquela história de que já estava na hora de casar, arrumar uma boa garota, de lhe dar um ou dois netos, no máximo. Não cinco como fez seu irmão mais velho. Que deveria morar mais perto deles e não ser um desnaturado como sua irmã, que, além de morar longe, só ligava para pedir dinheiro emprestado e nunca pagava. Realmente, foi uma boa decisão partir sem avisar ninguém. Estava realmente convicto de sua decisão. Não tinha e nem haveria de ter arrependimentos. Na sexta-feira, deveria ter entrado na sala do chefe, abrindo a porta sem bater antes, lhe arrancando o telefone das mãos, subido em sua mesa e sapateado em cima dela, chutando tudo que estivesse em cima, abaixado as calças mostrando a bunda, e saído dali antes que o chefe, estupefato, chamasse os seguranças, mas não, sem antes, lhe mostrado o dedo "do meio", mandando-o para aquele lugar. Seria o ápice da sua vida naquele escritório. É, mas não fez isso. Por algum motivo, achou melhor encerrar o expediente como todos os outros dias, batendo o ponto e indo embora normalmente. O simples fato de não aparecer na segunda-feira, ter sumido sem dar nenhuma satisfação, talvez já mandasse uma mensagem, singela, é verdade, mas efetiva.
Já deveria ter rodado uns oitenta quilômetros em direção ao norte, quando, de repente, toca o telefone. Indagou a si mesmo porque ainda não o havia desligado ou jogado fora. Naquele novo estilo de vida, que estava destinado a seguir, não haveria mais lugar para telefones celulares, tablets ou computadores. Pegou o aparelho e estava pronto para jogá-lo janela quando viu, no visor, o nome dela. Era a Carminha, a secretária. Atende, não atende... Titubeou e acabou atendendo.
Ela estava desesperada, pois o expediente começaria dali a uma hora e ela não encontrava o relatório que ele tinha feito para ela entregar ao Dr. Carlos logo no primeiro horário. Precisava da ajuda dele, ou estaria perdida. Para se livrar logo da moça, respondeu que ela ficasse calma pois ele daria um jeito. "Paciência" - pensou ele, ao desligar o telefone. "Não tenho mais nada com isso." E seguiu em frente.
Não andou mais do que um quilômetro estrada a fora e virou o carro com tudo para a esquerda, chegando até a cantar os pneus, e pegou a estrada no sentido contrário, voltando. "Maldição!!!" - resmungou. "Por que fui atender a esse maldito telefone???"
E lá estava ele voltando para sua vida de sempre, cheia de rotina e vazia de surpresas. Agora, teria um longo caminho para pensar na explicação do motivo pelo qual estava chegando atrasado em plena segunda-feira. Contudo, uma coisa tinha em mente: iria descobrir qual era o desenho tatuado no corpo da Carminha. Por fim, suspirou: "Ainda bem que não entrei daquele jeito na sala do meu chefe. "
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Os Contos de Nossas Vidas
Short StoryCom certeza você já passou, ou conhece alguém que tenha passado, por alguma das situações aqui descritas. Seja uma paquera no trem ou na rua, uma situação constrangedora dentro do elevador, vontade de largar tudo para trás ou até uma situação em que...