A chuva caía mais imperdoável agora, e não dava sinais de que pararia até a madrugada. Eu sentia, contra a pele de meu pescoço, meu pulso mais rápido, como um metrônomo em 140, e as gotas geladas escorrendo por dentro de minha blusa enquanto corríamos até o carro - eu me controlava para não estremecer. Acabara de fechar a porta do passageiro quando meu primo acelerou bruscamente, e saímos disparatados e perdidos pelo asfalto perfeito e molhado.
Estava quente dentro do veículo, mas eu não conseguia parar de tremer. Abracei a mochila, procurando algum conforto. Tive vontade de que Santiago me segurasse a mão, esquentasse meus dedos pequenos. Uma vez, quando éramos crianças ainda, estávamos voltando da escola a pé. Um frio horrível, cortante. Eu estava todo agasalhado, mas perdera minhas luvas, e, portanto, minhas mãos estavam geladas, e meus dedos doíam, prestes a ficarem dormentes.
"Tô com frio nas mãos." reclamei só por reclamar, a voz meio ausente, os bolsos do casaco incapazes de diminuir meu desconforto.
"É porque suas mãos são muito pequenas." Santiago respondeu. Lembro que me assustei um pouco com sua resposta, porque não achara que ele estava realmente escutando. Então, ele me fez parar de caminhar, ficou de frente para mim, tirou minhas mãos de meus bolsos e as cobriu com as suas, esfregando-as para esquentá-las. Tive uma estranha sensação de retorno ao meu corpo naquele momento; senti-me como eu era então (e como ainda sou): pequeno, de mãos inaptas, em uma caminhada longa demais para minha casa. Mas pelo menos meus dedos não doíam mais de frio. Pelo menos meu primo estava sorrindo para mim e me empurrando de leve para continuar caminhando.
No carro, quase 7 anos depois, no entanto, ele parecia extremamente ocupado, tentando, ao mesmo tempo, dirigir o mais rápido possível, não bater num poste e enxugar as lágrimas que ele não tinha a capacidade de interromper, para que elas não embaçassem muito sua visão.
"Santiago, por tudo que é mais sagrado, me diz o que que aconteceu antes que eu enlouqueça." falei.
"Acredite, você vai querer estar em casa pra ouvir isso."
"É tão ruim assim?"
"Pior do que qualquer coisa que você algum dia pode ter imaginado."
A honestidade em seu tom de voz me esmurrou no estômago. Meu mundo virou do avesso. Senti vontade de vomitar o que não tinha comido de manhã. "Por favor, me conta. Por favor." implorei. Ele fechou os olhos com força por um segundo, balançou a cabeça como se não quisesse escutar minha voz, como se o som dela lhe trouxesse dor. Vi uma gota salgada sair do canto de seu olho esquerdo e pousar entre seus lábios.
"Para, Ali. Deixa a gente chegar em casa."
É interessante como a vida real funciona. Pegamos um engarrafamento em uma rua a poucos quarteirões da minha casa. Veja, eram umas 8 da manhã. Todos estavam indo para o trabalho, plena segunda-feira, e faziam 3 minutos ou mais que nenhum dos carros se movia. A esse ponto, eu estava prestes a matar alguém. Literalmente. Eu carrego um canivete na mochila, e estava prestes a enfiar ele na garganta de alguém, ver o sangue pulsante cascateando, manchando um banco de um carro qualquer, tingindo minhas mãos.
"Santiago. Me diz. Agora."
"Não! Cala a boca e para de pedir."
"Vai se fuder, caralho, eu preciso saber! Você me arranca da minha aula chorando sem parar, me enfia dentro do carro, diz que aconteceu uma coisa horrível e não quer me contar o que foi!"
"Você não tem ideia. Você não tem a menor ideia, você nem sabe, e eu não pretendo te contar dentro da porra de um carro no meio da porra de um engarrafamento!"
"Eu te odeio, puta que pariu, me conta antes que eu te mate!"
"Não! Não, eu não vou contar porque eu não vou aguentar te ver sofrer!" ele estava praticamente soluçando agora. Tive vontade de esmagar a cabeça dele contra o vidro da janela.
"Eu já tô sofrendo, porra!"
"Não, você não está. Você não tem a menor noção. Você ainda não sabe o que é sofrimento."
Um carro buzinou atrás de nós, o motorista xingou alto. Eu explodi. Minha mão voou sem meu consentimento, as costas dela se chocaram contra a face de Santiago, o barulho do tapa alto e herético. Pela primeira vez em anos, senti meus olhos queimarem com a possibilidade de lágrimas. Abri a boca para pedir desculpas, mas meu primo meramente me encarou com um olhar tão dolorido e cheio de pena.
Santiago suspirou, e enquanto eu viver e pensar eu não esquecerei daquele suspiro profundo, longo demais, cortado no meio por resquícios pobres de soluços, daquele suspiro que me pareceu conter toda a tristeza do mundo.
Algo quente escorreu pelo meu rosto - uma única lágrima. Odiei-a com todas as forças. Odiava chorar. Odeio ainda hoje, mesmo depois de tudo, mesmo depois de tanta coisa que eu fiz e que fizeram em mim e para mim. Meu primo estendeu a mão, limpou a gota com o polegar enquanto seus outros dedos faziam uma pressão morna em minha nuca. Suas faces começavam a avermelhar. Ele aproximou o rosto do meu, sua respiração quente contra minha pele. Pela primeira vez desde que nascera, não consegui distinguir precisamente seu olhar.
"Você quer mesmo saber? Pois bem. Teu pai morreu, Aliócha. Acharam ele hoje de manhã. Morreu com um tiro. Teu pai morreu e não vai mais voltar. Era isso que você queria?"
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Por isso eu te amava
General FictionAli pode ser definido pelas coisas que ama: livros, seu velho piano, sua família, seus dois melhores amigos. E, acima de tudo, acima do mundo inteiro, seu pai, Heitor. Quando o cadáver de Heitor é encontrado em uma praça da pequena cidade aonde vive...