Tenho passado horas olhando para a página em branco à minha frente tentando descrever o que eu senti quando Santiago me contou, no seu carro no meio de um engarrafamento enorme e embaixo de chuva, que meu pai morrera. Acabei de decidir que não consigo. Vou dizer então o que se seguiu.
Eu lembro que gritei. Gritei muito. Gritei como se estivesse morrendo. Gritei para que Santiago encostasse o carro; no momento em que ele conseguiu fazê-lo, eu disparei para fora, ajoelhei-me na terra enlameada do acostamento e vomitei tudo que não tinha comido de manhã e na noite anterior. Se eu me concentrar agora, ainda consigo sentir o gosto amargo da bile de um amarelo doentio e enjoativo que manchou meus lábios e diluiu-se na água suja do chão terroso e escuro como um solo de cemitério.
Tentei me levantar - minhas pernas falharam, não pude firmar meu corpo, minha vista foi, lenta e agoniante, tornando-se completamente negra.
"Oh, Ali..." ouvi meu primo murmurar ao meu lado, e é a última coisa da qual me lembro antes de desabar em seus braços.
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Eu sou uma pessoa pequena. Sempre fui. Assim sendo, assumo que meu primo não usou de esforço algum para me carregar até nossa casa, como já fizera tantas vezes antes, me levando nas costas de volta da escola, da biblioteca, da aula de piano na casa da minha antiga professora que cheirava a pó de maquiagem, da casa de Rita.
Perguntei a ele ontem como ele descreveria ter me carregado enquanto eu estava desmaiado. Ele disse que preferiria não lembrar disso. Depois, disse que parecia que estava levando um corpo morto, e que constantemente punha a mão próxima a meu nariz para ver se eu ainda respirava.
"Não gosto de lembrar daquele dia, Ali." disse ele ontem.
Quantas pessoas que não são heroínas fictícias de livros do Romantismo podem dizer que já desmaiaram de desgosto?
Eu acordei não muito tempo depois em minha cama. O quarto estava agradavelmente escuro, mas eu ainda sentia um gosto amargo na boca e minhas roupas ainda estavam sujas de lama. Tive, por alguns segundos desesperadores, uma sensação pura e destilada de estar perdido, antes de recordar-me da voz desolada de Santiago anunciando que meu pai estava morto. A pressão de seus dedos em minha nuca continuava, fantasma e sem misericórdia, um afeto e segurança que não estavam lá.
Minha mãe entrou em meu quarto pouco depois. Virei-me na cama para que ela soubesse que eu acordara, mas não falei com ela ou olhei para seu rosto - apenas cobri-me com o edredom e fingi adormecer. Criei um padrão lento para minhas respirações.
Ela acreditou; ou, se não, pelo menos fingiu acreditar. Tenho demais do meu pai, mas o talento de mentir herdei de mamãe. Ocupou-se em tirar minhas roupas sujas e em enxugar meu cabelo molhado de chuva com uma toalha da melhor maneira que podia. Eu a ouvia chorar baixo, constante. Tive ódio naquele momento, quis empurrá-la para longe, derrubá-la no chão, chutar suas costelas. Mas não tive energia. Permaneci imóvel com os olhos fechados enquanto ela chorava sobre mim, gemendo combinações confusas entre o nome de papai e o meu.
Acabei realmente caindo no sono. Quando acordei, saí do meu quarto e caminhei pela casa em um torpor confuso e zonzo. Meu pai. Meu pai morrera. Era tudo em que eu conseguia pensar. Tudo que eu via, todos os móveis e livros espalhados, havia tornado-se levemente embaçado, como se eu estivesse aberto os olhos enquanto submerso em uma piscina.
A parte de trás de duas cabeças no sofá me chamou a desorientada atenção. A televisão estava no mudo, um daqueles programas de audiência estupidamente passando segundo a segundo. A tela brilhante aumentou minha dor de cabeça, e desviei o olhar.
Meu tio virou a cabeça, analisou-me de cima a baixo como sempre fazia, como sempre fazia com todo mundo, como faz ainda hoje. Na luz mais ou menos fraca, tudo desligado menos a TV, a tela chapiscada, preto e branco, eu ainda conseguia ver seus olhos vermelhos e as linhas de cansaço do seu rosto. "Vem pra cá, Ali." disse ele.
Obedeci, caminhei devagar, deixei meu corpo cair no sofá. Santiago se agarrava ao tio, as mãos segurando-lhe com força a parte da frente da camisa, o rosto quase sereno em sua tristeza. Lorenzo tinha o braço ao redor do ombro do meu primo, uma promessa silenciosa. Encostei-me nele também, pus a cabeça em seu ombro, inspirei seu cheiro de pasta de dente de menta e amaciante. Senti minha garganta contrair-se em angústia - era assim que eu passava as noites de sábado com meu pai, enrolados ambos no sofá, conversando ou lendo livros ou simplesmente existindo perto um do outro.
"Cadê mamãe?" perguntei, minha voz saindo baixa e rouca.
"No quarto com Laura." meu tio me respondeu, e as reverberações do seu falar foram sentidas profundamente pelo meu corpo, tão próximo do dele quanto possível.
"Vocês viram o corpo?" indaguei. Santiago voltou o rosto lentamente para mim, encarando-me cansado.
"Sim." responderam ambos em uníssono. Eram tão parecidos.
"Como ele morreu?"
"Un tiro en la cabeza." a voz de Lorenzo tremeu. Eu nunca o vira daquele jeito, frágil, como se fosse se dissolver com um sopro muito forte.
"Por que?"
"Tu madre dijo que fue suicidio."
"E foi?"
Nesse momento, o olhar de Santiago capturou o meu. Ele balançou a cabeça. Não pergunte. Agora não. O peito de meu tio subia e descia sem ritmo em soluços que eram capturados antes que pudessem ser libertos ao ar, e eu sabia que ele estava chorando, o choro exausto de quem já passou um dia se desfazendo em tristeza. Segurei sua mão e deixei a noite passar.
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Os lábios eram familiares demais para Gregório, como o era o corpo contra o seu, os cabelos cor-de-rosa entre seus dedos, a voz que murmurava seu nome.
Gregório pensava em mil coisas enquanto beijava Kit. Estavam no carro, atrás da escola vazia devido ao período de férias, Kit com as mãos segurando-lhe o rosto enquanto se entregava impudico para o garoto acima de si. Conclusão esperada. O carro estacionara na casa de Gregório naquela manhã, a pessoa que o dirigia perguntando se tinha a tarde livre e se queria ver algo no mínimo interessante. Cadáver no chão, a poça de sangue ao redor da cabeça. A semelhança com Ali era quase herética de tão evidente. Mesmo que não fosse. Todos conheciam Heitor. Era impossível não conhecer.
"Mas se o pai de Ali morreu, com certeza alguém matou." pensava, pensava, pensava. "Meu Deus, eu tava com saudade de Kit. Meu Deus, como posso amar dois ao mesmo tempo? Kit não merece isso, eu não mereço ele. Deus pode muito bem ir se fuder. Eu poderia encontrar o assassino. E daí, o quê? Se bem que... Porra, Kit, eu te amo muito, me perdoa. É tudo culpa tua, Ali. Eu te amo demais."
Deixou-se ainda sentir a doçura dos lábios da pessoa de cabelos coloridos por um segundo antes de desvencilhar-se e sentar no banco. Kit entendeu e distanciou-se, encarou-o com os olhos grandes, cinzentos e tristes. Resignados.
"Já vai?" perguntou Kit.
"Vicente vai estranhar se não for." explicou Gregório, enquanto vestia a blusa e tentava arrumar os cabelos e controlar a própria respiração.
Kit era branco, de um branco rosado, e uma marca roxa deixada pelo outro garoto em seu pescoço já se manifestava, explícita como um ferimento.
"Gregório."
"Fala."
"Volta comigo?" a pergunta de sempre.
"Próxima semana." a resposta de sempre. Gregório fechou a porta do carro, saiu caminhando pelo estacionamento vazio e desolado por estar vazio. Uma chuva fina e gelada começava, e uma gota fria caiu na testa do garoto, assustando-lhe.
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Por isso eu te amava
Ficção GeralAli pode ser definido pelas coisas que ama: livros, seu velho piano, sua família, seus dois melhores amigos. E, acima de tudo, acima do mundo inteiro, seu pai, Heitor. Quando o cadáver de Heitor é encontrado em uma praça da pequena cidade aonde vive...